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segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Ce n'est qu'un au revoir


Há anos que vivia no medo deste dia.

Ei-lo. Chegou.

Em 2016 perdi David Bowie e, principalmente, Leonard Cohen. Em 2017 perdi Jean d'Ormesson (e a cabra da Academia Nobel, que teima em armar-se em interessante e em laurear escritores  que não lembram nem ao Menino Jesus em palhas deitado, lá o deixou partir sem lhe dar o prémio que o meu coração exigia havia anos, "Que seja ele! Que seja ele!"). Como fez com Proust, com Borges e com Jorge Amado, só para referir os mais gritantes. Como o deu a Saramago (fiquei contente, apesar de tudo) e o negou a Vergílio Ferreira, que o merecia infinitamente mais. Uma extensa lista de vergonhas, em suma. Em 2018, hoje, 1 de Outubro, perdi Aznavour, Só me falta um gigante, Stephen Sondheim.

Noutro dia que não este, talvez seja capaz de vos contar da importância deste Senhor na minha vida. De como ele e Proust, de mãos dadas, num exercício de autodisciplina, me resgataram para a vida num distante Dezembro de 1981, eu com apenas 21 anos, lendo ferozmente um, ouvindo desgarradoramente o outro, insistindo especialmente em Il Faut Savoir, centenas de vezes ouvido e assumido como um Credo.

Aznavour faz mais parte da minha vida do que muitas pessoas de carne e osso, perdê-lo beira o intolerável. E intolerável é também não conseguir agora pôr aqui música, porque é em música que melhor sei traduzir-me, sempre foi. Depois de muitas hesitações, a escolha recairia provavelmente em Hier Encore, sempre. «Hier encore, j'avais vingt ans...»

Justamente por isso escolhi esta fotografia, um Aznavour de cara sulcada de rugas, a nobreza enorme da idade, das experiências, amálgama de alegrias e dores, toda uma vida, uma tão longa e fecunda vida.

Je vous aime éperdument, Monsieur Aznavour. Je vous aimerai toujours, jusqu'au dernier jour de ma vie. Ce n'est qu'un au revoir.






sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Obituário

Vale a pena ler estas palavras da minha Rita sobre um blogue que eu nem sequer conhecia, porque nunca fui exactamente uma fada do lar e blogues de cozinha sempre me passaram quase completamente ao lado. Mas o da Elvira, que foi pioneiro e incentivou a criação de muitos outros, parece que era especialmente bom.

A Elvira partiu, mas teve a generosidade de deixar os seus dois blogues de culinária (um em francês) perenemente abertos. A Rita teve a generosidade de connosco partilhar a Elvira e as suas receitas. A Rita, neste curto texto (como lhe admiro a concisão!), mais do que homenagear a Elvira, devolveu-a à vida, e acrescentou-a pelo menos à minha vida. E, de caminho, a Rita discorreu sucintamente sobre a blogosfera como era em anos distantes, quando de facto se criavam laços.

Os mesmos laços que me fizeram receber, no meu primeiro internamento no IPO, há seis anos, um deslumbrante ramo de flores numa sinfonia de branco, enviado por uma então (fisicamente) desconhecida, por acaso até ausente do país, de férias em Itália. Quem? A Rita, pois claro.

Não, a história de "isto são só blogues" não pega connosco, os da velha guarda. Não eram só blogues. A atestá-lo, o próxima que continuo a sentir-me de meia dúzia de pessoas desse tempo antigo, com quem mantenho contacto quase diário.


Comecei a ler este texto da Joana Roque como quem lê uma homenagem a uma pessoa de que gosta – no caso, a Elvira do Elvira’s Bistrot e antes disso da Tasca da Elvira, o primeiro blogue dela que li e que me obrigava a consultar o dicionário para encontrar ingredientes. Nada no título nem nos primeiros parágrafos me preparou para a tristeza enorme de descobrir que o texto era uma homenagem póstuma, que a nossa Elvira tinha morrido.
Nunca tenho paciência para as pessoas do “isto são só blogues”, como se fôssemos menos pessoas quando escrevemos na internet ou nos medíssemos por bitolas diferentes, tal como tenha pouca paciência para blogues pensados de raiz para a sua mercantilização – poderá haver exceções, mas todos os blogues que fazem dinheiro de que gosto nasceram como simples blogues antes destes novos tempos das fotografias profissionais, dos targets, da especialização. Numa altura em que éramos um conjunto de pessoas que se lia entre si e se firmavam cumplicidades, amizades verdadeiras, amores até e, claro, também ódios de estimação. Em que aprendíamos uns com os outros, ríamos com as peripécias de desconhecidos, ficávamos tristes com os seus infortúnios, trocávamos recomendações,  e, no caso dos blogues de cozinha, receitas.
Nunca a conheci pessoalmente nem troquei com a Elvira muito mais do que comentários específicos, sobre cada post ou mensagens curtinhas. Mas ela fez parte da minha vida, acompanhei à distância a sua doença e outros problemas que enfrentava e fiquei tristíssima com a notícia. Se calhar especialmente triste por saber que os seus últimos tempos foram difíceis, que a vida não lhe deu a redenção que sinto que merecia.
Na minha cozinha há um caderninho amarelo – cozinho muito da internet, mas as receitas mesmo boas, as que são para ficar, são passadas para o caderninho amarelo. Lá estão, pelo menos, assim de cor, um bolo de azeite e laranja de Barrancos e uma sopa de grão maravilhosa, duas receitas que adoro, que devo à Elvira e que são parte do meu património culinário e serão parte do património culinário da minha filha.
Este fim de semana vou fazer as duas – mesmo que não tenham nunca lido o blogue da Elvira, recomendo-vos muito que experimentem, para que a forma generosa como partilhava o muito que sabia e que cozinhava continue viva. Acho que ela iria gostar.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Adeus, Eusébio

Ainda o vi jogar, vantagens de ser mais velha.
A jogar nos dias de hoje, seria multimilionário, e cedo teria sido levado do Benfica. Ao qual foi sempre fiel, era o seu Benfica. E o Benfica também foi leal para com ele. Haverá muitas pessoas que tenham visto ser-lhes erguida uma estátua ainda em vida?
Mais do que património nacional, Eusébio tornou-se património mundial. Falava-se em Portugal e o primeiro nome que vinha à cabeça de quem, muitas vezes, nem seria capaz de nos apontar no mapa, era o dele: Eusébio. Como aqui em Love Actually (2003), referido por Colin Firth.

Eusébio para sempre!








terça-feira, 9 de agosto de 2011

R.I.P. Roselle


A adorável Roselle, grande heroína do 11 de Setembro, morreu a 26 de Junho passado, com 13 anos (notícia aqui).

antes falei dela, de como a sua teimosia salvou a vida do dono, cego, guiando-o (e a mais pessoas) na descida de pesadelo de setenta e oito andares, rumo à vida, minutos antes do desmoronamento da Torre Norte, a que assistimos em directo.

Rest in peace, lovely Roselle.

quarta-feira, 23 de março de 2011

O outro lado de Elizabeth Taylor

Há vantagens em ser mais velha (ou simplesmente velha, como me chamam recorrentemente na blogosfera, e eu sorrio da rapidez com que vão chegar à minha idade, é que nem sonham). Para começar, lembramo-nos de mais coisas, pelo menos enquanto o senhor alemão não anunciar a sua visita. Podia enunciar muitas outras vantagens, mas correria o risco de me acusarem (sempre os mesmos adoráveis anónimos) de estar a armar-me em boa, dizem que é coisa que faço o tempo todo.

Tenho idade para ser mãe de boa parte dos meus leitores favoritos (uma mãe novinha, pronto). A maior parte dos meus leitores não pode sequer supor o que foi o terror de uma nova doença que o mundo conheceu em 1983, uma doença chamada SIDA. Doença que matava e que trazia uma conotação odiosa, aparecia colada à homossexualidade. Muitos tentaram fazer passar a ideia de que era um castigo, eu mantive-me apenas fiel às minhas amizades. Como Elizabeth Taylor.

Estava eu de férias na Suíça quando Rock Hudson morreu, em Outubro de 1985. À época entrava numa série de televisão famosa  que nunca será escolha minha, toda a gente que contracenou com ele em Dinasty entrou em pânico, era a Idade das Trevas, sabia-se muito pouco sobre a doença. Elizabeth Taylor, nunca esqueçamos, foi a primeira pessoa a dar visibilidade à doença, A perda de um grande amigo, o seu co-protagonista em Giant, lançou-a na batalha. E angariou muitos milhões de dólares. Reconheço-me nesta lealdade aos amigos.

Muitos anos antes, o enorme actor que foi Montgomery Clift, o seu galã no inquietante A Place in the Sun, teve um terrível desastre de carro, saído de uma festa em casa de Liz. Foi ela que deu com ele, foi ela que lhe salvou a vida, enfiando-lhe resolutamente os dedos  garganta dentro, a cara  perfeita uma massa de sangue de arrepiar, os dentes partidos a sufocarem-no. 

Todos sabemos que o seu grande amor foi Richard Burton, as lendas vivem de amores assim. Não houve filhos biológicos desse grande amor, houve uma filha muito amada, Maria, criança adoptada por razões muito precisas. Era doente, estava em risco de vida, escolheram-na por isso mesmo. 

Deus tem um lugar especial para Elizabeth Taylor, aposto. E Richard Burton estará lá com ela.

A última grande estrela


Elizabeth Taylor. A mulher dos olhos violeta. A mulher de uma beleza de cortar a respiração. Grande actriz, não obstante a vozinha irritante. Contudo, será sempre como a Martha de Who's Afraid of Virginia Woolf? que a lembrarei. O papel deu-lhe o segundo Oscar, nesse ano a Academia devia ter também premiado Richard Burton, seu marido por duas vezes, senhor de voz inesquecível, o amor maior da sua vida de muitos amores e muitas tragédias.

Acredito que se reencontrarão.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Mais uma partida, mais uma perda: John Barry

E esta partida e esta perda são das que mais me dizem e mais me entristecem. John Barry, o grande, o imenso John Barry partiu no domingo.

É ao som da sua música que escrevo. Entre bandas sonoras originais completas e compilações de temas vários da sua vastíssima obra, tenho um número razoável de discos.

É pobre, paupérrimo, dizer que o mundo fica mais pobre sem a música de John Barry. É um chavão estafado. Mas é também uma verdade incontestável. O mundo ficou mesmo mais pobre. Nunca mais teremos um filme com música de John Barry e o prejuízo é todo nosso.

John Barry era uma das três pessoas dessa Santíssima Trindade da música no cinema, as outras duas são John Williams e Ennio Morricone. John Barry era o mais novo dos três, partiu com 77 anos; John Williams está a uma semana de completar 79 e Ennio Morricone tem 82. E só vejo neste momento um nome para ocupar o lugar que John Barry agora deixa vago: Thomas Newman. Muito mais novo, com apenas 55 anos, tem já uma obra notável (sendo que as bandas sonoras de The Shawshank Redemption e de Angels in America são as minhas grandes favoritas). Só nomeações para o Oscar já teve dez, nunca ganhou.

John Barry e John Williams, além das incontáveis nomeações, receberam cinco Oscars. Ennio Morricone, numa surdez indesculpável da Academia, teve muitas nomeações mas nunca ganhou a estatueta. À laia de magra consolação, a Academia deu-lhe em 2007, quando já estava com 78 anos, um Oscar honorário pela carreira, suponho que motivado por um raciocínio básico: «deixa cá dar-lhe o Oscar antes que ele morra, que depois a vergonha é para nós.»

Ao longo dos anos, perdi a conta ao número de vezes que, no fim de um filme, ficava pacientemente à espera dos créditos finais, em pulgas para saber de quem era aquela música assombrosa — por mais mergulhada num filme que esteja, há uma qualquer parte de mim sempre alerta para a música. E perdi a conta ao número de vezes que li aquelas quatro palavras que ratificavam o meu instinto para a qualidade: «Music by John Barry

A banda sonora? Para mim tem de haver sempre uma banda sonora, porque a palavra e a música são dois grandes amores meus, e indissociáveis. Hoje mais ainda. Não hesitei muito, o coração chamava-me para este magnífico e dolente tema de Midnight Cowboy, de 1969. Além de que é menos conhecido do que o indescritivelmente belo tema principal de Out of Africa.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Uma estrela fora do seu tempo

O título não é meu, como minhas não são as belíssimas palavras que se seguem. Título e palavras  são do Pedro Correia, num post de ontem no Delito de Opinião,  em tocante homenagem a uma grande actriz que os mais novos provavelmente nem conhecerão: Susannah York.

Há anos que procuro regularmente, sem nunca a encontrar, uma certa produção televisiva de La Voix Humaine, de Cocteau, em inglês. É de facto uma peça para uma voz. O texto, que só conheço no original francês, quando lido pode chegar a parecer trivial, de uma banalidade confrangedora. É a voz da actriz agarrada ao telefone numa conversa inconsequente com o ex-marido, por quem continua desesperadamente apaixonada (a peça é um longo monólogo, só ouvimos a voz dela), que lhe dá matizes que o tornam profundamente comovedor, verdadeiramente patético. Nessa produção inglesa há muito vista na RTP2 e nunca esquecida, a actriz era Susannah York.

Susannah York morreu no dia 15 de Janeiro e eu só soube ontem, no Delito de Opinião. Teria sabido mais cedo, é certo, se tivesse mais tempo para visitar certos fóruns de Teatro muito do meu agrado, em que muito tenho aprendido, nenhum outro como All That Chat, do fabuloso TalkinBroadway. Ainda assim, não vi qualquer notícia, por mais pequenina, em qualquer jornal, e tamanho alheamento choca-me.

Vi Susannah York em palco uma única vez, faz amanhã, dia 30 de Janeiro, doze anos.  Como lembro tão bem a data? É simples, muito simples, mesmo não tendo eu ainda, nessa época, o bom hábito de guardar o bilhete dentro do programa da peça. Voámos para Londres na manhã de 29 e nessa noite vi pela primeira vez  Chicago, paixão que me ficou para o resto da vida.  Para a noite seguinte tínhamos, arranjados pelo concierge do Dorchester, bilhetes para o revival de West Side Story, graças aos bons ofícios do meu amigo A., sempre íntimo de quem interessa em todos os hotéis de luxo, e para os nossos bilhetes pouco importou que ele em Londres fique sempre no Claridge's. Ora os tais bilhetes desencantados pelo Dorchester como grande prodígio eram em lugares para nós intoleráveis, lá para uma 15.ª fila. Exasperados, a espumar de fúria, nem o sumptuoso (e de preço obsceno) chá do Dorchester nos aplacou o rancor. E para aqueles lugares não íamos, era ponto assente.

Voltámos para o nosso hotel, o óptimo Westbury, mesmo sem os luxos asiáticos do Dorchester ou do Claridge's (e no segundo já fiquei, sei do que falo). Fomos desabafar o nosso desespero com o Blanco, o concierge. Afinal, não nos tinha ele conseguido, para essa noite ou para a seguinte — confesso que não tenho a certeza  —, essa coisa impossível que eram reservas para o Nobu, com uma lista de espera de dois meses para os comuns mortais como nós? O Blanco esteve à altura. Após dois ou três telefonemas, disse que nos arranjava grandes lugares para An Ideal Husband ou para Miss Saigon. Tentei reprimir a excitação: uma peça de Oscar Wilde, o meu tão amado Oscar Wilde! A escolha tinha de ser de pleno acordo. Vários factores pesaram na decisão, que tentámos fazer racional. Nenhum de nós conhecia ainda Miss Saigon (que venero), mas estava para durar e ambos preferimos sempre ver uma obra a que já conhecemos muito bem a música, a experiência é infinitamente mais completa; em contrapartida, An Ideal Husband estava com a chamada limited run, ficaria em cena mais um mês ou mês e meio, no máximo, e nós vivíamos e vivemos em Lisboa. Acresce que, ao princípio da tarde, muito antes de saber o que nos esperava, eu tinha citado Oscar Wilde e o Vítor tinha rido a bom rir: «To love oneself is the beginning of a lifelong romance.»  A frase era justamente de An Ideal Husband, foi com uma cotovelada de deleite que o Vítor ma assinalou, delirante, instalados nos nossos soberbos lugares da quinta fila ao centro.

E foi assim que vimos Susannah York no papel da maquiavélica Mrs Cheveley. Linda, linda (LINDA!). Mas, mais do que isso, perfeita na personagem. Mágica. Volto sempre a este adjectivo quando falo de inesquecíveis noites de Teatro. Porque são isso mesmo: mágicas.

Tenho algures num álbum, ainda por digitalizar, uma péssima fotografia de nós dois frente ao teatro. Muito escura, acho que era de uma daquelas máquinas descartáveis, e era Janeiro e era Londres. Pouco importa, o nome da peça, por trás de nós, é bem visível. E temos esta preciosa memória, que nada pode apagar. 

Chega de tagarelice. Passo a palavra ao Pedro Correia, que encontrou sobre Susannah York palavras que eu gostaria de ter escrito.



Há certas actrizes que nos parecem deslocadas da sua época. Senti sempre que era esse o problema com Susannah York. Esta inglesa nasceu para o cinema numa altura em que as deusas do celulóide eram vistas como uma relíquia do passado. Naquela década de 60, interessava “desmistificar” a mulher, torná-la “igual” aos homens, "libertá-la" de toda a encenação e todo o artifício. Carole Lombard, Ingrid Bergman, Rita Hayworth, Ava Gardner, Grace Kelly, Elizabeth Taylor e tantas outras rainhas dos anos dourados de Hollywood davam lugar à mulher banal, destituída de glamour, despojada daquele brilho cintilante que todas as estrelas irradiam. Era o tempo da Sally Field e da Jill Clayburgh e da Glenda Jackson e da Sarah Miles e da Karen Allen: figuras banais, rostos banais, que poderíamos ver a qualquer hora num restaurante de bairro ou num transporte público.

A mulher destituída de aura hollywoodesca era uma mulher “libertada”, uma mulher “consciente” – dizia-se então. E até actrizes inegavelmente belas desse período, como Jane Fonda e Julie Christie, pareciam pedir desculpa aos espectadores, em sucessões contínuas de filmes urbano-depressivos, por serem tão bonitas. Nesses tempos carregados de ideologia, havia uma conotação implícita entre beleza e classe dominante, que devia ser derrubada pelas massas oprimidas. Muito sofreram algumas mulheres desses tempos. E muitos homens também...

Susannah York nada tinha de banal. Bastava vê-la surgir em cena para se perceber que era impossível permanecer indiferente ao fulgor daqueles olhos azuis, à sedução daqueles lábios volumosos e ao fascínio daquela voz quente e bem timbrada. Desempenhou papéis memoráveis em dois filmes galardoados com o Óscar: Tom Jones (1963) e Um Homem para a Eternidade (1966), ambos de produção britânica. Entrou numa das películas norte-americanas mais aclamadas da década de 60: Os cavalos também se abatem (1969). Fez de mulher de Marlon Brando no mega-sucesso Super-Homem (1978). Contracenou com Alan Bates num perturbante filme de culto: O Uivo (1979). Trabalhou também na televisão: lembro-me bem dela na versão britânica da série Dear John.

Filmar com Fred Zinnemann, Sydney Pollack, Richard Donner, Tony Richardson e Jerzy Skolimowski, entre outros nomes grandes da realização, é suficiente para garantir a alguém um lugar em qualquer enciclopédia do cinema. Mas fiquei sempre com a convicção de que Susannah York podia ter ido muito mais longe do que foi, tornando-se um verdadeiro ícone da sua época. O problema não foi dela, mas dos ventos dominantes daqueles dias que mandavam derrubar todos os ícones em nome da idolatria do cidadão comum. Um problema insolúvel para quem era incomum, como Susannah York. Tivesse ela nascido dez anos mais cedo ou vinte anos mais tarde, nada decorreria como decorreu. Nem, como sucedeu há dias, se despediria da vida – depois de se despedir do cinema – perante a lamentável indiferença de um público cinéfilo que em muitos casos não chegou sequer a saber quem ela foi.»


E os comentários:

De Teresa a 29 de Janeiro de 2011 às 00:47
Estou chocada, Pedro. E triste. É por si que, duas semanas depois, sei da morte de Susannah York. Sic transit Gloria Mundi, é qualquer coisa assim, não é? Esta partida silenciosa lembra-me a do grande Sir Georg Solti, que morreu poucos dias depois da Princesa Diana e da Madre Teresa de Calcutá. Dele ninguém falou nos noticiários, não vendia revistas. É que era só um grande maestro, um dos grandes do séc. XX. E a partida de um vulto destes não dá matéria para títulos de primeira página ou aberturas de telejornais.

Tive o privilégio de ver Susannah York no palco, no princípio de 1999, como a pérfida Mrs Cheveley de An Ideal Husband, de Oscar Wilde. Mágica. Mágica.

Mundo muito estúpido, que põe nos píncaros as Hannahs Montanas e os miúdos de cabelo ridículo (aquele Justin qualquer coisa).
De Pedro Correia a 29 de Janeiro de 2011 às 09:36
Que privilégio, tê-la visto em palco! Sempre admirei muito esta actriz e fiquei chocado com a indiferença quase generalizada face à notícia da morte dela. E afinal já nem devia surpreender-me com isto. A memória das pessoas está cada vez mais curta e é cada vez mais selectiva - no pior dos sentidos do termo.

domingo, 19 de dezembro de 2010

O imenso adeus

Ontem tinha uma entrada alinhavada. Levezinha, divertida, inconsequente. Deixei-a a meio, fui fazer outras coisas. Só muitas horas mais tarde voltei ao computador, para encontrar uma mensagem que me deixou gelada e no instante seguinte me pôs a soluçar incontrolavelmente. Devo ter chorado mais de duas horas, sem conseguir parar. O Zé partiu. O Zé!

O meu mundo está a ficar mais estreito. Estou a perder pessoas, cada vez mais pessoas, e dói muito, dói demasiado. Não sei nem quero saber dizer adeus, nenhum adeus, àqueles que me são queridos, muito queridos.

Como o Zé. Olho para a imagem acima, reparo no fio de ouro e marfim que tenho ao pescoço,  oferecido por ele no ano anterior, no dia dos meus 28 anos, e suspiro. O Zé era 16 anos mais velho  do que eu, quatro anos mais novo do que John Lennon, nasceram no mesmo dia, 9 de Outubro. O Zé era meu amigo e a imensa saudade que nada pode apaziguar começa agora. Foi pelo Zé, há quase 14 anos, que soube da morte do Vasco, outra saudade que anda sempre comigo, como já contei aqui.

 Olho para a fotografia à direita, feita pelo Zé, eu em primeiro plano, a escrever, o Carlos mais ao fundo, a ler, e lembro-me desta noite de há 22 anos no Sahara, já perto da Mauritânia, como se fosse hoje. Ficámos horas a olhar para o incrível céu estrelado, as cabeças de fora das tendas, a ver as estrelas cadentes. A cada uma (e eram às dezenas), o Zé, tarado por Ferraris, murmurava sempre o mesmo desejo «Um F40! Um F40!» E eu e o Carlos ríamos.

Hoje, a seguir ao velório e à Missa, fomos jantar os dois, fomos a seguir a um concerto na Igreja de Santa Catarina, a que já só apanhámos o fim. Amanhã o enterro. Depois, só as memórias, as tantas e tão felizes memórias que temos do nosso amigo. E a saudade.


segunda-feira, 11 de outubro de 2010

La Stupenda più non è

Dame Joan Sutherland, La Stupenda
7-11-1926 — 10-10-2010

A minha adorada Dame Joan Sutherland partiu ontem, a menos de um mês de completar 84 anos, a 6 dias de festejar o 56.º aniversário de casamento com o Maestro Richard Bonynge.  

Foi só a meio da tarde que soube, e confesso que foi um choque tremendo. E também confesso que chorei, o mais discretamente possível, a cabeça a esconder-se por trás do monitor. Tal como não consigo impedir que as lágrimas corram agora, já em casa, a ouvir-lhe a voz miraculosa, como em tantos outros milhares de vezes no passado. Muitas vezes a voz vinda do Céu, fosse como Lucia, Norma, Violetta, Amina, Elvira, Donna Anna, Semiramide, Lucrezia, Anna Bolena, Maria Stuarda , ou qualquer outra das suas tantas heroínas, me fez chorar. Mas hoje é diferente. Porque Dame Joan já não é deste mundo, e Dame Joan foi, é e será sempre todo um mundo para mim.

Que pena tenho do marido, que pena tenho do filho! E como Marilyn Horne deve estar triste! Grande amiga, companheira de tantas e tantas noites de glória, a portentosa voz que de tal modo se entrelaçava na sua nos duetos que às vezes chegava a ser uma vertigem, uma saturação de beleza, eu já desnorteada, sem saber bem quem cantava que notas, tão assombrosa era a fusão.

Hoje e nos próximos dias só se ouvirá Dame Joan Sutherland cá em casa. Esta noite farei serão, não me deito sem ter ouvido pelo menos Lucia e Norma na íntegra. E, se não estivesse precisamente na semana mais dura de trabalho de todo o ano no Colosso, era rapariga para tirar dois dias de férias para ouvir religiosamente tudo o que Dame Joan cantou. Assim, e porque não tenho outro remédio, todas as outras ficarão, aos bocados, na medida do possível, para os próximos dias.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Três anos

Missa pelo terceiro aniversário da morte do Nuno. Éramos apenas nove os presentes.

Quando, na semana passada, telefonei à Mafalda a perguntar sobre a Missa, não fosse ela ter-se esquecido — e não poderíamos levar a mal, estavam separados havia uns bons cinco anos e o Nuno não foi exactamente o melhor marido do mundo —, ela confessou-me não estar a pensar fazer nada, não havia necessidade de fazer os miúdos reviverem tudo aquilo, todas as coisas tão penosas. Senti-me dividida entre a necessidade de compreender e o choque. 

Telefonei de imediato ao Pedro, que foi menos compreensivo, não aceitando que não houvesse uma Missa pela alma do Nuno.  «Nem que sejamos nós a tratar disso!», exclamou.

Na tarde seguinte a Mafalda telefonou-me: tinha falado com os três filhos, queriam uma Missa sim, e seria hoje às sete da tarde, na igreja do Campo Grande.

Julgo que agora, no terceiro aniversário da morte do Nuno, o grupo dos que comparecem sempre está quase reduzido ao seu número máximo: a Mafalda (que no ano passado não foi), o Tomás, a Mafaldinha e o Lourenço, a Becas, a João, ex-mulher do Pedro, o próprio Pedro, o Melo e Faro e eu.  Onde se meteram todos os tantos amigos das noitadas no Centro de Bridge, no Stone's, no Bananas, mais tarde no Kremlin, no Alcântara, na Capital, todos os que há três anos encheram a capela na Missa de Corpo Presente? O João Pedro, ainda vá que não vá, foi para Aveiro dirigir o hotel. Mas os outros? O Nené, o Luís, o António, o João...

Éramos apenas nove. O que sei é que eu e o Pedro nunca faltaremos. Mas foi um Pedro debilitado que encontrei hoje, já com um AVC às costas, com dificuldade em andar, enormes dores nas pernas. Anos e anos de muitos e enormes excessos, o Pedro tem apenas mais quatro anos do que eu. Não, não quero ter medo. Mas tenho.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Das partidas

Como conta a Safira, «Não foi nunca o melhor cão do mundo. Mordeu-nos vezes sem conta, nunca aprendeu a sentar-se ou a fazer qualquer habilidade a nosso pedido, ladrava em decibéis proibitivos e nunca foi um animal que pudesse considerar-se meigo. Pelo contrário, sempre lhe fizemos festas sem ter a certeza de não perder um dedo no processo (...).» 

Pouco importa. Era um dos cães dela, era o cão dela, com ela viveu 16 anos, e custa horrores, fica-se de luto, chora-se muito e continua a chorar-se muito depois da partida. 

E quem não perceber isto não presta para nada.

 Yurie Manuel (1994-2010)

 (confesso adorar o ar de bandido simpático e truculento, não obstante o cachecol do Sporting, 
pelo qual não lhe assiste qualquer culpa, pobre inocente)

sábado, 28 de agosto de 2010

Ausências


O Jorge era mais novo do que eu um ano e um dia, algumas vezes chegámos a festejar juntos, o meu dia de anos a prolongar-se na madrugada do dele — antigas noites de Stone's, o champagne oferecido pelos empregados que me adoravam, demasiadas saudades diferentes de uma vez só.

O pior da idade que vai somando dígitos são as ausências e a saudade que delas nos fica. Em cada pessoa querida que parte há qualquer coisa nossa que se apaga e se perde para todo o sempre, uma série de «Lembras-te?» que só com ela partilhávamos e de que mais ninguém tem conhecimento, porque assim é a amizade.

Tal como eu, muitas outras pessoas visitaram hoje a página do Jorge no Facebook, que continua activa (assunto para outro dia). Todos nós temos saudades dele, todos choramos a ausência. Ainda assim, é-me de algum consolo ler que estas pessoas que não conheço se lembraram do Jorge hoje, e que quiseram dizer-lhe isso.


domingo, 4 de julho de 2010

Topo Gigio moments

A história tem mais de dez anos, mas ficou-nos, a mim e ao Vítor, a expressão, que ainda hoje usamos recorrentemente para definir aquelas coincidências inexplicáveis, às vezes até inquietantes, quando dizemos em simultâneo a mesmíssima coisa, quando enviamos um ao outro uma mensagem sobre o mesmo assunto. Sorrimos, abanamos a cabeça como quem já desistiu de perceber e dizemos apenas «another Topo Gigio moment...»

Passou-se em Londres, no princípio de Fevereiro de 1999. Tínhamos ido ver uma fabulosa produção de An Ideal Huband com Susannah York como Mrs Cheveley, tivemos a seguir um jantar indescritivelmente extravagante no Nobu, que nos deixou tão empanturrados que tivemos de fazer uma longa caminhada para lhe digerir as consequências nefastas. Estava um frio dos diabos, lembro-me bem, mas ambos adoramos andar a pé. Quando demos por nós, sempre na conversa e a rir, já estávamos no Soho. Íamos a falar do Francisco, o irmão que o segue em idade, pessoa de sentido de humor muito peculiar. De tal maneira que, insensivelmente, ao longo dos anos, adoptámos muitas expressões dele. Uma das nossas favoritas era «Ryan. Ryan O'Neal» (favor imaginar com pronúncia rasca, o R de Ryan bem carregado) a significar nada (o rien francês), nadinha de nada.

Ora o Rui, meu primeiro patrão e grande amigo para o resto da vida, era uma esponja a assimilar vícios de linguagem e expressões dos outros. O Rui foi nos anos 80 pessoa muito conhecida em Portugal, por causa de dois programas de televisão: Rui Guedes ao Piano e, mais tarde, Topo Gigio (comprou os direitos à criadora do ratinho, Maria Perego). Esta parte é importante para que percebam a história: quando se falava em Rui Guedes falava-se em Topo Gigio. Era incómodo ir com ele na rua, toda a gente ficava a olhar, mais ou menos discretamente.

Pois íamos nós, eu o Vítor, Soho fora a falar das saídas cómicas do seu irmão Francisco, quando me lembrei de uma história muito antiga, a propósito do seu Ryan. Ryan O'Neal. Tinha sido uns bons anos antes, num conselho de administração do Montepio, de que o Rui era presidente. Eu, discretamente sentada ao lado dele, tomava notas para a acta. O Rui expunha um projecto com toda a vivacidade que lhe era característica. Os outros administradores ouviam em silêncio. Um deles, mais céptico, cortou-lhe a palavra: «Está bem. Mas quanto é que isso nos vai custar?»

E o Rui, o tal mata-borrão a absorver os meus disparates, respondeu acto contínuo, com toda a firmeza: «Ryan. Ryan O'Neal» A cena seguinte foi composta por quatro administradores de caras perplexas e uma secretária (eu) a rir descontroladamente à gargalhada, logo secundada pelo Rui. E tivemos de explicar o motivo de tamanho riso. O que não foi coisa fácil.

Voltemos a Londres, àquele passeio a pé pelo Soho, numa noite gélida. Acabo de contar a história ao Vítor, rimos como uns tarados. Nisto, levanto os olhos, dou com a tabuleta de um restaurante e estaco. Dou-lhe uma cotovelada muda, a apontar a tabuleta. The Topo Gigio Restaurant, com o ratinho em grande destaque. 

Não encontrei uma imagem frontal dela na Internet. Está assinalada com a seta, na imagem lá em cima, nós vínhamos do lado esquerdo. Desde essa noite a expressão Topo Gigio moment entrou no nosso vocabulário para referir coincidências inexplicáveis.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

A morte de Saramago

Não foi for falta de tentativas que não gostei da sua escrita. A primeira foi com Memorial do Convento, quando foi editado, há quase trinta anos. Comecei com todo o entusiasmo, aquela abertura é digna de ombrear com as maiores de todas na Literatura universal, à cabeça vêm-me sempre as suas competidoras mais directas, as aberturas de Pride and Prejudice e de A Tale of Two Cities. A menos de meio do livro já me arrastava, eu que sou leitora compulsiva. Chegar ao fim foi um exercício de tenacidade. Novo livro, nova tentativa gorada. Ainda fui ao terceiro, com os mesmos resultados. Uns bons anos mais tarde voltei a tentar. A mesma coisa, nada a fazer.

Ainda assim, lembro-me bem de como soube do Nobel. Foi a 9 de Outubro, tinha acabado de telefonar ao Zé para lhe dar os parabéns (John Lennon também fazia anos nesse dia), ia a entrar no Colombo para almoçar com uma amiga quando o Pedro (que venera Saramago) me telefonou do Cartaxo, acabado de acordar de uma noitada: «Teresinha, é verdade que o Saramago ganhou o Nobel ou eu sonhei?»

O Pedro não tinha sonhado. Saramago tinha mesmo sido laureado com o Nobel, e eu fiquei muito feliz, só por ele ser português e por ser em português que escrevia. Também é verdade que não consegui afastar o pensamento um bocadinho amargo de que Vergílio Ferreira e Miguel Torga teriam sido mais merecedores.

Não digo que não volte a pegar num livro seu. Talvez na História do Cerco de Lisboa, que o Pedro tanto insistiu para que eu lesse, com a certeza de que daquele eu gostaria. Talvez, não prometo.

Hoje li muito disparate sobre Saramago na blogosfera, aposto que três quartos do que li foram escritos por pessoas que nunca lhe leram uma página.

Do que li ficaram-me dois testemunhos, pela autenticidade. E por tão simples e sentidos.

Este, do Robene, no seu quase sempre hilariante Xarope Pá Tosse:

Quando tinha 15 anos tentei ler um livro de Saramago que o meu pai me ofereceu. Ao fim da primeira página tinha desistido.
Dois anos depois, naqueles Verões que duravam de Junho a Setembro e não apenas 15 dias de Agosto como agora, voltei a pegar no livro. Em duas noites tinha lido o Ensaio sobre a Cegueira. Nessas férias, na praia, à noite, no café, ao almoço, ao jantar, despachei a Jangada de Pedra, o Memorial do Convento, o Homem Duplicado, a Caverna, o Todos os nomes e o Evangelho segundo Jesus Cristo. Na faculdade, sempre que poupava uns trocos no álcool e me sobrava dinheiro comprava mais uns livros dele. E não exagero ao dizer que a escrita deste homem me tornou um pouco naquilo que sou hoje.

E este, da Belota, no seu Guia das Mulheres para Totós:

Hoje é um dia triste

Tenho doze livros autografados pela sua mão, memórias de uma conversa onde partilhámos confidências sobre o Cão das Lágrimas, uma admiração enorme, e apesar de me restarem ainda alguns livros por ler, aflige-me a ideia de que quando terminar esses, não existirão mais.

Por último, o olho crítico e certeiro da Catherine Linton, no Walking in High Heels:

Dos abutres

A notícia de última hora interrompeu-me a garfada. Era hora do almoço. Morreu José Saramago. Eu, que nunca fui fiel seguidora do homem, assaltei-me de consternação. O volume da televisão aumentou e seguiu-se o carnaval previsível: ao telefone, a Ministra Canavilhas deixava o seu pesar, depois seguiram-se as declarações do Primeiro Ministro, depois as da bancada do PSD. As perguntas que se esperavam "Saramago terá feito as pazes com Portugal?", "Na sua opinião, Saramago sentia Portugal como a sua casa?", obviamente. E juro que isto é verdade, imediatamente a seguir, uma peça longa, demasiadamente longa para ter sido feita em 10 ou 15 minutos, sobre a vida e obra do Nobel.
Ocorreu-me imediatamente que a comunicação social está pejada de abutres. De profissionais que mascaram a necessidade urgente de informar segundo a segundo, e que chegam a antecipar acontecimentos, como a queda das bolsas, a detenção de um dirigente desportivo ou a morte de uma figura incontornável. Aquilo foi preparado. Levou tempo. Havia muitas imagens de arquivo, empilhadas sabe-se lá onde, que não se desencantam em dois dedos de conversa. A SIC previu a morte de Saramago e preparou-a com carinho, na sede de se antecipar à concorrência e ganhar percentagens preciosas no share.
Compreendo que seja serviço público. Não entendo é o conceito mórbido alojado nesse princípio.
Por esta ordem de ideias, os canais nacionais têm preparada a "notícia de última hora" que dá conta da morte de Manoel de Oliveira há pelo menos 20 anos. Pois então que viva muitos mais ainda, e com toda a sua vontade de trabalhar, de fazer mais, de viver como se a morte jamais fosse uma crónica anunciada. 

terça-feira, 4 de maio de 2010

Life imitates Art

A mais nobre das dinastias do Teatro: Vanessa, Corin e Lynn Redgrave; Rachel Kempson, a mãe


Quando, há menos de dois anos, vimos Vanessa Redgrave no National Theatre na pele de Joan Didion em The Year of Magical Thinking, estávamos longe de imaginar as sucessivas tragédias que se aproximavam. Quando, menos de duas horas mais tarde, as tivemos como vizinhas de mesa no restaurante, mãe e filha, Dame Vanessa e Natasha Richardson, estávamos a anos-luz de poder sequer pensar que aquela lindíssima mulher, tão nova, que o Vítor apanhou a sacudir desesperadamente o isqueiro à porta do The Wolseley, deixaria este mundo no breve espaço de oito meses. Quando, uma hora antes dessa cena tão cómica, conversei brevemente com Dame Vanessa e concordámos que o texto da peça era poderoso, era magnífico, estávamos ambas longe de imaginar que aquela tremenda frase que é a abertura da peça, And it will happen to you, iria abater-se sobre ela, a vida a imitar a arte, a vida sempre entretecida com a morte a levar-lhe também a filha adorada que jantava ali com ela nessa noite, à nossa beira, tal como tinha levado a filha de Joan Didion, que ela tinha representado no palco.

A morte de Natasha Richardson perturbou-nos demasiado aos dois. Principalmente porque era impossível dissociar aquela terrível perda, a mais dura que um ser humano pode sofrer, a perda de um filho, da perda de Joan Didion a que Dame Vanessa tinha dado voz. A vida a imitar a arte. «Life imitates Art far more than Art imitates Life», nas palavras do meu amado Oscar Wilde.

Natasha Richardson, a nossa inesquecível Sally Bowles do Cabaret de Sam Mendes, teve uma morte absurda, a 18 de Março do ano passado. Condoemo-nos indizivelmente do sofrimento de Vanessa Redgrave. Um ano mais tarde, a seis de Abril, parte Corin Redgrave, o irmão, com 70 anos. Menos de um mês depois, ontem, foi a vez de Lynn, a irmã, aos 67. O Teatro está hoje de luto. É um lugar-comum, mas é terrivelmente verdadeiro, tão grande é a importância da dinastia Redgrave. Vanessa era a mais velha dos três irmãos, com 73 anos.

E eu tenho uma compaixão infinita pela sua dor esta noite, dor que nem consigo começar a imaginar, somatório de dores tremendas e sucessivas, mal a deixando respirar, ao longo de um único ano. The Year of Magical Thinking — como se, ao vestir a pele de Joan Didion em palco,  ao dar-lhe voz, tivesse atraído para si perdas igualmente terríficas. A seguir à morte de Natasha tive a certeza de que ela nunca mais conseguiria levar aquele papel ao palco, tão desgarradoramente pessoal o texto se tinha tornado. Enganava-me, aparentemente, houve notícias no meio teatral de que voltaria a fazê-la (e eu estaria lá, nem que fosse em Asunción, Paraguai). Não pelo morbo (eloquente substantivo castelhano para o qual não encontro tradução que me satisfaça), mas para render homenagem a uma verdadeira  heroína. Agora tenho a certeza absoluta e definitiva de que Dame Vanessa não voltará a dizer em palco o monólogo de mais de hora e meia que esta noite deve passar-lhe inteiro na cabeça, uma e outra vez, todo aquele revolver da perda, das perdas tremendas. Lembro o seu gesto tão espontâneo e caloroso, a afagar-me o pulso em agradecimento da emoção que sentiu genuína, aquele «Thank you. Thank you.» A Vida imita a Arte, sim. Mas esta noite ela é só a mãe e a irmã, respeitemos. E é por isso que prefiro que desta vez se lixe a Arte e que o mundo perca mais uma extraordinária representação de Dame Vanessa Redgrave (que muito boa gente, que sabe bem mais disto do que eu, considera a maior actriz de palco viva). Tenho tanta, tanta, tanta pena!
Natasha Richardson e Vanessa Redgrave, Evening

domingo, 7 de março de 2010

Tempus fugit

Porque sinto sempre as dores dos que me são queridos como se fossem minhas, foi um dia duro.

Missa de corpo presente e enterro do Pai do meu querido Pedro, do grupo do Liceu. Mais tarde, já no Cemitério dos Prazeres, e porque o pensamento é coisa muito caprichosa, e porque a minha memória é muito feita de imagens (de cheiros também), recuei a esses anos tão distantes que só o grande afecto que quase todos temos uns pelos outros persiste em continuar a fazer uma coisa viva (outros quaisquer já nem saberiam, já nem se lembrariam. Não os meus amigos, e também por isso me são tão queridos). Revi a imagem do Pedro lá pelos nossos 15, 16 anos, os anos em que já éramos crescidos e éramos do Pátio Sul. Revi o menino lindo de arrebatadores olhos azuis que todas as meninas do Liceu sabiam quem era. Até porque cavalgava uma refulgente Yamaha verde-mentalizado (julgavas que te livravas da minha ironia, não?) que punha muita catraia a suspirar. Eu, que nunca liguei a motores, fossem eles sobre duas ou quatro rodas, fiquei imune a esse fascínio. Mas lá que ele era bonito, um dos mais bonitos do Liceu... ah, isso não posso negar!

Não quero dispersar-me, Pedrinho. O que me veio à cabeça esta tarde, na tristeza sem fim que é aquele cemitério no qual já nem sequer me resta a esperança de ficar enterrada perto do homem que melhor me percebeu, com aquela estúpida ideia de o levarem para os Jerónimos (não se faz!) ,foi a estranheza que é esta vida. Que o menino lindo de olhos azul-pervinca viria a ser um amigo muito querido, anos, muitos anos mais tarde. Um indefectível do nosso grupo, membro de pleno direito do núcleo duro, como tão bem o definiu o João Viegas. Que eu, aquela miúda insignificante, sempre a mais baixinha da turma (a meias com a querida Vanda, um dos cérebros mais brilhantes que conheço), eternamente infantil, viria a estar, trinta e tal anos depois, no enterro do teu Pai. E a olhar de longe, ou nem tanto (eram só uns quatro ou cinco metros), para o teu sofrimento, e a doer-me com ele.

O teu Pai, Pedro, só pode ter sido uma pessoa extraordinária. Oh, sim, eu sei como é costume nestas coisas enaltecer qualidades às vezes imaginárias. Só que tenho a certeza de que não foi o caso.  O teu Pai foi uma pessoa muito amada. Eu vi o choro contido de uma sobrinha tua mesmo à minha frente junto ao jazigo, embalada pelo namorado que a abraçava sem saber como a confortar, lágrimas que não paravam de correr. Eu chorei como uma Madalena na Missa, quando todos os netos foram falar do Avô. E não fui só eu, sabes?

Pedro, meu querido Pedro... tenta chorar. Assisti de longe e aflita. E só me lembrava de uns certos versos de Rostand: «Il faut craindre surtout les orages sans pluie et les chagrins sans larmes

Sei muito bem, por também ser assim. Faz como eu digo, não faças como eu faço!

Estou sempre aqui, e tu sabes. Os outros do nosso Grupo também, e também sabes. Já pensaste que este teu tão forte estar presente no nosso Grupo também pode ser herança do teu Pai? :)

Uma última coisa, Pedro: a Missa do teu Pai foi das coisas mais comoventes que vivi em muito, muito tempo. Foi uma coisa VIVA. Entrámos atrasados (desculpa!|) e fui logo colhida pela música, e já sabes como reajo à música. Era esta que agora está a tocar, que nunca tinha ainda ouvido num cântico de igreja. Chorei muito, conversei com Deus, fiz promessas que sei que terei dificuldade em cumprir, humana e frágil que sou, mas comunguei de consciência limpa e coração inteiro.

E agora só te peço mesmo uma coisa, Pedro. Chora, por favor. Por ti, porque precisas. Por mim, por nós, todos os amigos que sabes quem são e se preocupam contigo tanto como eu, porque não aguentamos ver-te nessa aflição.

A seguir vem a Paz, meu amigo. 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010