[peço antecipdamente desculpa pela extensão deste post, que achei que ia ter dois parágrafos. Mas é que me pus a falar de uma grande paixão minha. E quando é assim... vou por aí fora.]
Aposto que não sabiam: tenho, sempre tive uma paixão assolapada por ursos, todos os ursos, de todos os tamanhos e feitios. Com especial incidência nos grandalhões, os
grizzlies e os polares. Nestas coisas, quanto maior, melhor — por uma vez,
more is more (e esta rima fonética, a evitar a todo o custo em prosa, agora não deu mesmo jeitinho nenhum, mas vou deixar ficar).
A coisa é capaz de vir da infância e de ser trauma. Inexplicavelmente, nunca tive um urso de peluche, imaginem! Tive carradas de brinquedos, bonecas às dezenas (sem os exageros absurdos que observo com desagrado nas crianças de hoje) e toda a parafernália que as acompanhava: mobílias, autênticas, lindas, de madeira e não de plástico, cozinhas equipadas que até tinham um peru para pôr no forno, carrinhos de bebé, a tralha toda. Nada de Barbies, no meu tempo não faziam parte do cenário. O que havia, no mesmo género, mas com muito mais classe, sem maminhas e sem o guarda-roupa espaventoso e de bradar aos céus em
nylon, era a Sindy (com S, sim), uma boneca inglesa.
Classy. A Sindy tinha roupas giríssimas e eu poupava as semanadas para comprar mais, aquilo era caro. A minha maior loucura foi um fato de
ski, com todos os acessórios necessários, até óculos e luvas, que custou a fortuna de... setenta escudos! A minha Mãe foi contra, mas eu tanto implorei que acabou por ceder. O dinheiro era meu, e um vinte a Francês e um dezanove a Português no mesmo dia fizeram o resto do trabalho de persuasão.
Mas voltemos aos ursos, que são o que aqui interessa. Adoro ursos, pronto! Acho-os adoráveis, com aquele ar pesadão e trangalhadanças. A pancada deve ter-se consolidado aos dez ou onze anos, no Ciclo Preparatório. Tínhamos uma professora de Moral e Religião que toda a gente adorava e a quem eu tinha uma certa aversão; até era amorosa, vá lá, mas tinha o hábito enervante de nos tratar por
pequenitas. E a minha embirração por diminutivos acabados em
ita ou
ito vem da mais tenra infância... Seja como for, a Dr.ª X (claro que não me lembro do nome) organizou a passagem de um filme sobre a vida de Jesus na sala de cinema da escola. Chamava-se
E Habitou entre Nós e viria a render uma vitória fulgurante ao meu grupo numa sessão de mímica quase vinte anos depois
(lembras-te, Vítor?), quando ninguém da concorrência conseguiu decifrar o raio do título
(experimentem lá gesticular isto e perceberão). Como sou muito sensível a estas coisas, verti abundantes lágrimas durante a projecção do filme. Mas o melhor (Deus me perdoe!) foi o bónus: antes do filme passaram um documentário sobre Yellowstone!
A locução era brasileira e o filme devia ter cerca de dez anos, talvez um pouco mais — fim dos anos 50, princípio dos 60, parece-me. Mostrava as típicas famílias americanas, três ou quatro filhos, banheiras descomunais, cestos de piquenique bem recheados, a fazerem bicha à entrada do parque
(qual delas é indiferente) e o comité de boas-vindas de luxo: ursos à espera, a abordarem os carros, a pedincharem comida. A personagem Yogi Bear dos desenhos animados (Zé Colmeia para os mais velhos, que os mais novos nem o conhecem) foi claramente inspirada nestas cenas. Triste, muito triste
(o próximo post será sobre isto) , mas eu era uma criança, não podia saber que nos trinta anos seguintes todos os crimes por nós cometidos iriam fazer perigar dramaticamente este planeta. A
Wednesday escreveu ontem um
post que me fez pensar imediatamente nisto. Mas o que me ficou desse filme, mais do que qualquer outra coisa, foi o desejo de ir a Yellowstone e ter a minha quota-parte de ursos. Tinha ficado irremdiavelmente apaixonada.
No momento em que entrámos em Yellowstone comecei a deitar olhos de lince ansiosos em volta, investigando cada sombra. O Vítor percebeu-me logo, «não descansas enquanto não vires um urso.» Era verdade. A criança de havia tantos anos estava ali, e estava numa ansiedade febril. Passámos quatro dias (três noites) em Yellowstone, o parque é gigantesco. Quando seguíamos pelas estradas eu já debitava em voz alta monólogos insinuantes e parvos que muito o faziam rir. «Ursosos
(adoro diminutivos acabados em oso ou osa, de minha invenção pessoal, sendo que os mais bonitos de todos são aplicados a minhas Pinxejas: a barrigosa, a patosa...), a Tia Teresa está aqui... Apareçam
(aparexam, confesso...), não façam isso à Tia Teresa... Ursosos, a Tia Teresa fica inconsolável se os meninos não aparecerem...»
Ao terceiro dia, ao fim da tarde, ao virar de uma curva, demos com um número avantajado de carros parados, o que nos parques nacionais quer dizer vida selvagem. Demasiados carros para serem alces, ou bisontes, ou corças, muito mais fáceis de avistar. «Cheira-me que vais ver o teu primeiro urso...», disse o Vítor.
E era mesmo! De repente, do meu lado, avistei uma forma escura. Que se foi aproximando...

Bichanei um incrédulo e maravilhado «É um ursoso!» ao Vítor.

Contentem-se com estas fotografias, que são o que há. Não me parece que vos apeteça ver manchas vagas de um lombo castanho-escuro, quando ele começou a afastar-se, e eu tão histérica que disparava às cegas, a objectiva a capturar árvores e outras coisas indistintas e medonhamente desfocadas, tudo menos o que interessava: o ursoso!!!
Minutos mais tarde, mais adiante na estrada, repetiu-se a cena. Todo um aparato de carros parados, parámos também. E eis senão quando, pela berma, novamente do nosso lado, distingui uma forma mais clara, de um castanho quase caramelo, semi-oculta pela erva alta. De súbito fez-se visível, em toda a sua beleza: era também um
black bear (a bossa dos
grizzlies nas costas e a cabeçorra mais larga, de orelhas arredondadas, fazem-nos inconfundíveis, seja qual for a cor), julgo que um adulto muito jovem, aí de dois anos, a viver o seu primeiro Verão de independência, que só se separam da mãe lá pelo ano e meio.
Sabem que mais? Deus estava a olhar para mim, Deus tinha ouvido as minhas preces, Deus tinha ouvido os meus monólogos cretinos a interpelar os ursos. Aquele parou, por um qualquer insondável desígnio, a menos de dois metros de nós e do nosso vidro descido, e pôs-se a trincar a erva. Tão perto que o ouvíamos mastigar. A certo momento, sacou da patosa para puxar a si um feixe mais viçoso de erva e nós suspirámos, embevecidos. Tão embevecidos que só mais tarde, ao inspeccionar as fotografias, verifiquei que não tinha UMA ÚNICA daquele milagre. Na excitação de querer vê-lo e fotografá-lo ao mesmo tempo, alguma coisa tinha de falhar. Falharam as fotografias, lamento lamentar. As imagens ficam comigo para sempre:
a crock of gold (mais um).
É que disparei repetidamente a esmo, no deslumbramento daquela visão que era um sonho de anos, muitos anos. Não me parece que vos apeteça ver imagens da sua refeição, a erva tenríssima que o fez parar ao nosso lado. Se quiserem, é só pedir: tenho imensas. Deixo-vos só esta, a única que me ficou a documentar que esta beldade esteve mesmo a meu lado, e que a Criação é coisa perfeita: o meu adorável ursoso já a afastar-se. Foi o que se aproveitou. Paciência.
A crock of gold. Nunca esquecerei.
Foi o que se pôde arranjar. Eu tenho mais pena, acreditem
P.S. Viria a ver mais quatro ursos. Mas todos muito ao longe, e ao lusco-fusco. Mas a emoção foi sempre a mesma. Tenho de voltar. Não vi um único
grizzly!