
Foram dois dias absolutamente fantásticos, mas falarei apenas sobre a peça, que foi o que me levou a Londres naquele fim-de-semana de 12 e 13 de Julho. Com grande pena minha, nem um café consegui tomar com o
Coveiro, que se demorou imenso a almoçar em Richmond (estava com a cara-metade, está mais do que perdoado, teve logo a minha bênção) no único tempo que eu tinha razoavelmente livre e que planeava dedicar à Tate Modern.
Tenho paixão por Londres, mesmo quando não a compreendo, mesmo quando ela me desgosta, mesmo quando discordo, mesmo quando me escandalizo com os preços absurdos, mesmo quando perco a paciência com os funcionários e empregados de balcão de inglês deficiente — o adjectivo é eufemismo, razão tem o Nick, grande amigo do Vítor, inglês
upper class de linguagem puríssima e pronúncia estonteante: se formos a um Starbucks, antes de fazer os pedidos, sempre melindrosos, tantas as combinações possíveis, e perante a diversidade étnica dos empregados, só mesmo muito raramente anglo-saxónicos, talvez seja prudente antepor ao pedido uma pergunta de crucial importância: «
Do you speak English?» Acreditem que pagar três libras e meia por um café para descobrir (demasiado tarde) que o caramelo que nos atendeu, todo sorrisos e simpatia, não pescou um boi das nossas instruções e nos encomendou coisa substancialmente diversa... não é pêra doce. Talvez fique para outro dia a pega que tive com uma imbecil de uma
innit (calão local para os indianos, deliciosamente parodiados na fabulosa
Goodness Gracious Me) em Heathrow, a tentar comprar uns bons auriculares para o meu MP3. Pôr um estafermo com aquela limitação de vocabulário aliada a uma pronúncia ininteligível a atender o público não lembra ao diabo. Ainda por cima a cretina tinha aquilo a que os americanos chamam
attitude. Acabei por a arrumar com um já muito irritado «
You are a very rude person. I really would love to know what your employer would think about your attitude towards customers, if only he knew.» Em Londres, a maior parte do tempo — qualquer pessoa que conheça a cidade concordará comigo — a pergunta omnipresente é
mas onde raio se meteram os londrinos? Ou os ingleses,
tout court.
A introdução vai longa, já sabem como sou a falar das minhas paixões.
Let's get to the point. A peça:
The Year of Magical Thinking. Londres tem o melhor Teatro do mundo em geral (sim, a Broadway foi considerada), mas o National Theatre é a perfeição absoluta, e aqui não há volta a dar. As coisas que já lá vi! A mera travessia a pé da ponte de Waterloo já é um ritual cumprido em excitada expectativa (também vale para o Old Vic, que fica um pouco mais adiante).
Eu sabia que tinha pela frente uma noite de emoções poderosas, tinha lido o livro que deu origem à peça, um e outra saídos da pena (nunca este substantivo foi mais tristemente irónico) de
Joan Didion. Não quis ler a peça antes, preferi recebê-la em cheio como coisa nova.
The Year of Magical Thinking é um longo monólogo de mais de hora e meia protagonizado pela extraordinária Dame Vanessa Redgrave, um dos membros daquela que é, provavelmente, a mais incrível dinastia do Teatro de sempre, a
dinastia Redgrave. Esqueçam os Barrymore, esqueçam os Fonda, os Redgrave vão muito mais longe.
The Year of Magical Thinking é um longo e penoso exercício sobre a perda. Num único ano, Joan Didion perdeu o marido e a única filha, e é isso que nos conta. Como foi, como reagiu, como sofreu.
John Gregory Dunne, também escritor, tinha sido seu marido durante quarenta anos menos um mês e a relação dos dois era invulgarmente próxima e feliz, e foi sempre assim até ao fim súbito dele. Nesse dia Quintana, a filha dos dois, já estava no hospital, em coma (tinham-na visitado juntos nessa tarde de fim de Dezembro de 2003), viria a morrer também.
Repito que
The Year of Magical Thinking é um remexer doloroso em feridas que são uma chaga ainda viva. É um processo catártico e libertador, mas terrivelmente doloroso. E abraçamo-lo, fazemo-lo nosso, ao identificarmo-nos com Joan Didion, representada no palco, a poucos metros (a eterna terceira fila ao centro foi desta vez substituída pela primeira, mas sempre ao centro) por uma assombrosa Dame Vanessa Redgrave. Suspeito que nas vidas de todos nós há pedras de toque, porque frases há no texto que de repente, num sobressalto, redespertam em nós uma qualquer dor antiga que já julgávamos esquecida. É a melhor explicação que encontro para as lágrimas que devastavam muitas outras caras além da minha no final (sim, sim, tive o clássico «Estou muito borrada?» para o Vítor; ele disse que não, a intuição, tamanha tinha sido a minha choradeira, fez-me ir à casa de banho à saída. Estava uma lástima...).

Este retrato acompanha o fim da peça, regista para todo o sempre uma família que a morte separou tão cruelmente. A figura puríssima de Dame Vanessa a recortar-se diante dele só fazia mais pungente aquela imagem, lembrando-nos que as suas palavras eram da mulher em segundo plano, como que distanciada, com alguma coisa de premonição, o copo de
whisky que estava a partilhar com John, o marido, esquecido no parapeito, toda ela embevecida e entregue à contemplação daquelas duas pessoas que eram a sua vida.
Levitámos no caminho de regresso ao West End, feito a pé, como gostamos, a discutir a peça, a lembrar momentos, ainda embargados pela emoção, a imaginar que outras actrizes poderiam fazer aquele papel (concordámos que só admitiríamos rever a peça com Meryl Streep ou Dame Judi Dench no papel de Joan Didion). Tínhamos reserva para as dez e meia no
The Wolseley, imensamente na moda, e que eu ainda não conhecia. Por minha vontade teríamos ido ao Asia de Cuba, pelo qual tenho paixão, mas cedi à exigência do Vítor...
Em boa hora cedi. Tínhamos acabado de fazer os pedidos quando o Vítor, de frente para a porta, diz de repente:
— Não vais acreditar! É ela! Vai a sair!
— Ela... quem?!
— A Vanessa Redgrave!!!
Virei-me para trás a toda a pressa, já só consegui ver um vulto. Nem sei bem por que raio pousei o guardanapo e me levantei num impulso, dizendo ao Vítor que ia atrás dela, talvez a visse ainda a entrar para o carro, ou coisa parecida.
Agora imaginem a minha cara de parva quando o porteiro me abre a porta e eu dou de repente com Dame Vanessa Redgrave parada na rua, placidamente a fumar um cigarro! Não tinha saído, tinha apenas ido fumar um cigarro!
Eu tinha transposto a porta esbaforida... e de repente estava ali parada a olhar para ela. Tinha suposto ir ainda a tempo de a ver entrar para um carro, um táxi... tudo menos aquilo. Nem sei onde fui buscar coragem para a interpelar, coisa que sempre supus que só seria capaz de fazer com a minha idolatrada Dame Joan Sutherland...
— Miss Redgrave?...
Ela, que estava meio de costas, a olhar distraidamente para a rua, voltou-se. Pude ler instintivamente o desagrado, tão compreensível. Pedi desculpa:
— I probably shouldn't be doing this...
— You probably shouldn't... — concordou ela num aviso, a luminosidade azul dos olhos, muito claros e transparentes, transformada num cinza gelado. Uma idiota de uma fã, era mesmo só o que lhe faltava!
Senti-me uma perfeita atrasada mental, tinha de emendar a mão a qualquer custo. Impulsiva, disse num arranque:
— Let me thank you for a magical evening. I was at the theatre tonight...
Encarou-me a soprar o fumo, os olhos a perderem algum cinzento e a recuperarem um pouco do azul magnífico. Registei mentalmente como era bela, de uma beleza intemporal e sem artifícios: a cara lavada, o cabelo todo branco apanhado no mesmo singelo rabo de cavalo com que tinha estado em cena (acho que o elástico até era o mesmo), uma túnica de fino linho branco a vestir a figura elegante.
— You were at the theatre?
Trocámos mais uma meia dúzia de frases, eu atropeladamente, com horror a que ela me achasse intrometida, a dizer que me tinha fartado de chorar, que o texto era magnífico, que ela tinha sido magnífica...
Such a powerful text, so moving... I had read the book, but listening to you on stage... disse eu, e aqui a voz embargou-se-me, porque revivi a emoção de duas horas antes, saiu-me já perigosamente perto das lágrimas.
Os olhos dela, que já estavam completamente azuis, sem vestígios do cinzento desconfiado, transformaram-se em luzeiros de compreensão (que olhos maravilhosos!). Já de frente para mim, estendeu a mão livre, a esquerda (a outra tinha o cigarro) e apertou-me o pulso direito, o polegar a afagar-me a pele num agradecimento.
— Thank you — disse baixinho — Thank you...
Dame Vanessa Redgrave tinha percebido que eu não era uma fã à cata de um autógrafo, que era simplesmente alguém que tinha sido profundamente tocada pela sua arte. Não quis incomodá-la mais, voltei para dentro, ela ficou a acabar o cigarro.
Ainda não estava completamente recomposta quando contei a história ao Vítor e o fiz saber que afinal ela ia voltar, estava ali a jantar como nós.
— Aí vem ela! — soprou-me ele, pouco depois, com um discreto sinal de cabeça a indicar uma mesa à minha esquerda, pertíssimo de nós. Também discretamente, olhei, mesmo a tempo de ver a pessoa que estava com ela levantar-se para lhe dar passagem no sofá.
— E está com a filha! — exclamei.
— Qual filha?! — interessou-se o Vítor.
— A Natasha!!! — exclamei eu, até parecendo que andámos juntas na costura, a apanhar alfinetes. Mas é que
Natasha Ridcharson, filha de Dame Vanessa Redgrave, casada com
Liam Neeson, é a inesquecível Sally Bowles do mágico
Cabaret de Sam Mendes...
Estava de costas, e essas costas, nuas num vestido de alças quase invisíveis, pareceram-me mais rechonchudas do que a figura que eu lembrava, admiti que podia ter-me enganado. Quando saíram, ainda nem estávamos na sobremesa, foi a vez de o Vítor lhes ir no encalço, só para tirar teimas. Voltou perdido de riso.
— Que viciadas! A mãe já estava a fumar no passeio, e a filha estava a sacudir furiosamente o isqueiro, a tentar acender o cigarro! Tinhas razão, era mesmo a Natasha!
E pronto, aqui fica a história, há muito prometida, do meu encontro com Dame Vanessa Redgrave. Dois encontros, na verdade...