O Kaiser
era um pastor belga lindo de cortar a respiração, imponente de porte, educadíssimo. No Apetite, o
pronto a comer do prédio ao lado, o Kaiser só entrava se o dono autorizasse, e vinha cumprimentar-nos de aperto de mão ("Kaiser, cumprimenta as senhoras", dizia o dono...). A Nonô, a dona, servia-nos as melhores madalenas de Lisboa, às vezes eu oferecia-lhe uma, se o dono deixasse (era raro, que os cães não devem comer doces). Depois de engolida em duas dentadas, o Kaiser
vinha agradecer: encostava-se a mim e lambia-me a mão. Mas o Kaiser tinha uma paranóia: apanhar folhas de árvores. Sim, leram bem. O Kaiser
saltava na vertical a uma altura assombrosa, as árvores da avenida ostentavam nos ramos mais baixos uma boa quantidade de folhas ratadas. A minha irmã, quando lhe contei a história, achou que eu estava a inventar. Achou. Porque um dia, quando íamos a entrar juntas em minha casa, assistiu. E ficou parva. E saiu-se, claro, com a nossa célebre sigla SNVNA (se não visse não acreditava).

Tudo isto para vos falar do Quico, que conheci ontem, à porta da papelaria. O Quico é um cão de simpatia e alegria de viver transbordantes. O Quico ficou meu amigo até à morte e, de caminho, lambuzou-me toda. Eu, claro, adorei.
O Quico só tem três patas, falta-lhe a esquerda dianteira — eu digo
o bracinho, mas isso é coisa minha... A dona contou-me a história. O Quico não nasceu assim. O Quico tem quatro anos. O Quico foi atropelado (por culpa do dono, que se distraiu) quando tinha dez meses. Passaram-lhe quatro carros por cima. O veterinário aconselhou a solução misericordiosa, dono e dona recusaram. Mas o bracinho esquerdo teve mesmo de ser amputado.
O bracinho esquerdo não faz falta nenhuma ao Quico.

Vejam só a bela postura dele! O Quico é um cãozinho adorável e feliz, muito feliz. O Quico, de caminho, deu-me uma bela lição de vida, que recebi com toda a humildade.
Relativizar, eis um belo verbo, um verbo que conjugo muitas vezes. Ou que tento conjugar...
Há uns anos eu e o Vítor fizemos uma viagem operática a Munique, para ver e ouvir
nossa menina Gruberova (Edita Gruberova, a voz maravilhosa que mais brilhantemente recolheu o testemunho da grande Dame Joan Sutherland) nos
Puritanos. De caminho ainda vimos um
Don Carlo magnífico, Zubin Metha a três metros de nós no fosso da orquestra. A estada foi de uns cinco ou seis dias e era Fevereiro, estávamos em pleno Inverno. Fomos a Dachau, o tristemente célebre campo de concentração. Não fiz uma única fotografia, e passámos lá um dia inteiro. Fotografar pareceu-me quase uma profanação, uma falta de respeito, um sacrilégio. Visitar um campo de concentração no Inverno lembra-nos ainda mais vivamente a dimensão do horror que ali aconteceu. Dachau estava coberto de neve, Dachau fica a cerca de vinte quilómetros de Munique. Munique regista sempre, no Inverno, temperaturas anormalmente baixas — mais baixas do que Vladivostok, se querem saber. Naquele dia estavam -14ºC. Embrulhados nos nossos quentíssimos casacos, protegidos com cachecóis, luvas e botas quentinhas e confortáveis, os pés forrados com dois pares de meias de lã, era impossível não lembrar que as pessoas que sofreram aquele calvário, com aquelas mesmas temperaturas, e foram milhões, tinham apenas a protegê-las um fino fato de riscas, toscos tamancos de madeira (nem sempre) e um magro cobertor, infestado de piolhos, e frequentemente a partilhar com mais uma ou duas pessoas.
Ao voltar a casa, a meio da tarde, descobri que estava sem luz (tinha-me esquecido de pagar a conta). Àquela hora já não podia ir pagar e voltar a ter luz nesse dia. Apetecia-me tremendamente rever (pela enésima vez)
, porque tínhamos passado um dia em Salzburg, a cidade mágica a que hei-de ir no Verão — vi-a debaixo de um espesso manto de neve e até dei um homérico trambolhão nos Mirabel Gardens (isto para não falar do banho de neve que sofri junto do pavilhão onde é cantado
, quando o Vítor, por pura maldade, abanou um ramo de árvore em cima de mim) .
! Não podia ouvir música! Mas depois lembrei-me de Dachau, dois dias antes... E tive vergonha.
Relativizar, meus amigos. Acendi velas, muitas velas, a casa parecia um centro de macumba, entretive-me com a leitura. Revi
no dia seguinte, ouvi música no dia seguinte.
Desde então tento sempre relativizar. O Quico, ontem, mostrou-me uma vez mais como isso é importante. O Quico tem lugar cativo no meu coração.