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quinta-feira, 15 de julho de 2010

Eunice in the Sky with Diamonds


Deixem que vos fale da minha amiga Eunice.

Conhecemo-nos aos doze anos, cruzávamo-nos no pátio do Liceu em todos os intervalos, nunca nos demos. Os meros três meses que a Eunice me levava de avanço em idade, ela nascida em Maio, eu em Agosto, punham-nos em turmas distantes, eu na A, ela lá para a E ou F. Nem nos 6.º e 7.º anos nos aproximámos, eu escolhi Letras, ela escolheu Ciências. Cada uma sabia quem era a outra, nem coisa diferente seria possível depois de cinco anos a partilhar os mesmos pátios. Mas nunca nos demos, pronto.

Isso viria mais tarde, muito mais tarde, quase vinte anos depois, quando começaram os jantares do Liceu.Eu sempre fui mais extrovertida e interventiva, a Eunice, sempre tão bonita, sempre com aquele ar doce e apaziguante, preferia ouvir, a tagarela era eu. Mais tarde, ainda mais tarde, viríamos a ficar mais próximas, quando ela e a minha Mãe viveram o mesmo problema de saúde em simultâneo. O negro monstro foi derrotado pelas duas, graças a Deus. E mais tarde, ainda mais tarde, eu viria a pedir ajuda à Eunice para apoiar e acompanhar uma outra amiga minha, mais nova, a viver situação semelhante, com contornos talvez ainda mais dramáticos. A Eunice lançou-se imediatamente em socorro dela. E sei que ainda hoje vai regularmente à página que essa agora comum amiga criou para exorcizar os demónios da doença temível, porque também por lá semeou afectos.

Este é o ano dos 50 anos de quase todo o nosso grupo (só três ou quatro nasceram em 1959), o contingente maior começa agora em Julho. E a Eunice desafia-nos a fazermos todos juntos aquilo que ela fez no dia dos seus 50 anos, a 4 de Maio, numa imensa celebração da vida, da bênção que é, tantos anos depois, ainda termos estes laços tão fortes. Estou a considerar o desafio (pavor de alturas, só superado pelo terror de ratos), vou passá-lo adiante, quem sabe os outros se animam e me armam da valentia que a Eunice teve.

Preparativos em terra

Shall I?

O salto no vazio

Skyline Pigeon

O regresso da Guerreira

O sorriso da vitória

Discutimos juntas a banda sonora para o filme que só hoje lhe chegou às mãos, e em que não posso mexer. Para a Eunice, só havia duas músicas possíveis para ele: O Primeiro Dia, de Sérgio Godinho (logo, ela é das que têm uma visão optimista da mensagem subliminar, eu nunca consegui decidir-me, tantas vezes discuti isto com o Nuno!) ou It's a Beautiful Day (Reprise) dos Queen. Quem processou o filme fez-lhe a vontade, pôs os Queen na segunda parte. O pior é que antes vem a S'Dona Céline Dion.

Como a Eunice me deu carta branca, escolhi os Beatles para o título desta entrada, e ela passou a ser Eunice in the Sky with Diamonds. Mas a música de fundo, descobri ao rever o filme sem som, a chorar só de ver a alegria transbordante da Eunice, a milagrosa libertação absoluta que capto em cada fotografia que ela me passou, só pode ser uma: Skyline Pigeon, de Elton John. Por acaso, ou talvez nem tanto, é uma das músicas da minha vida.

E aqui fica o filme. Querida, querida Eunice! Mulher de armas e ternura, a chibata e a rosa, como escreveu um dia Jorge Amado.


quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Sobre a idade

«I'm 51 and I think I look my age, but I don't want to be 20 any more or even 30 or 40. Besides, I'm too terrified to get any proper work so I've had just little things done. I have a big crease between my eyebrows and I use Botox to get rid of that, but that's kind of it. I'm scared of surgery because I don't want to look in the mirror and not recognise who's looking back. I don't want to be in a room, and to have people turn when I leave and say, "what happened?"»

«I am no size zero or super-thin Hollywood actress. I am built for men who like women to look like women.»

«I tend to look somewhere other than the media for my definition of what is beautiful. Is that a heavily retouched 18-year-old or a 40-year-old on that front cover? I don't think so; nobody looks like that. I look at people such as Helen Mirren or Judi Dench, these amazing women who look great, but they look like their age, and I think why would anyone want to lower themselves to look like an alien? Sex appeal is all about confidence, and that comes from self-knowledge.»

Palavras de Kim Cattrall, a adorável e inesquecível Samantha de SATC. Nascida em Liverpool, a avó foi baby-sitter de Ringo Starr (mundo pequenino, hem?). Gosto do bom senso desta Senhora.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

70 x 7

S. Mateus sempre foi o Evangelista por mim mais amado (muito antes de conhecer aquela coisa arrepiante que é A Paixão Segundo S. Mateus, de Bach).

Estas palavras dele (Mateus, 18: 21) martelaram-me insistentemente a cabeça durante todo o dia de ontem: «Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou-Lhe: "Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?" Jesus respondeu: "Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete".»

Tomei ontem um café rápido com o João Paulo, mas quando as amizades são antigas e têm boas raízes o tempo é coisa relativa. Desabafei a minha tristeza muito por alto, sem entrar em pormenores, ele foi implacável, nunca mais falaria a tal pessoa. Discordei e discordo. Setenta vezes sete, sempre. Só que desta vez não vou dar o primeiro passo, passe um mês ou passem dez anos. Há alturas em que as pessoas têm de cair em si, há alturas em que têm de ser capazes de se auto-examinarem. Desta vez vais ter de me pedir desculpa. Claro que desculpo, mas terás de vir ao meu encontro. Bem sei (não sei eu outra coisa!) que «but the tigers come at night, with their voices full of thunder», mas sabemos que aquela história de eu ser capaz de sair viva até de Auschwitz não é bem assim. As coisas doem, e esta calou fundo.

Graças a Deus, a seguir ao café de ontem, e porque o João Paulo já estava atrasado para ir buscar a mãe para almoçar, dispensei risonhamente a boleia e voltei a pé para casa. E encontrei o Quico. O Quico é um cãozinho que me faz reavaliar tudo, mágoas, prioridades, seja lá o que for. Não levava máquina fotográfica, mas tinha o telemóvel comigo. E fotografei, mais uma vez, a transbordante alegria de viver do Quico, o cãozinho a quem um descuido do dono custou uma amputação (contei aqui). E a sua generosidade. Temos muito a aprender com o Quico, tu e eu. E acabo de ficar arrepiada, porque faz hoje justamente um ano que conheci o Quico e aqui contei a sua história.


(não, não pus Bach e a sua obcecante Paixão Segundo S. Mateus, preferi isto.
Porque a vida é mesmo muito breve)

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Sursum corda!

São imagens como esta que alimentam e fazem crescer ainda e sempre mais a minha imensa e incondicional admiração pela América e pelos Americanos.

Sábado, 13 de Setembro, em Anahuac, Texas. O furacão Ike acaba de passar, destruindo 98% das casas. Que fortaleza de ânimo é necessária para este gesto tão profundamente simbólico, tão carregado de significado!

Arregaça-se imediatamente as mangas. Trabalha-se, reconstrói-se. Não há tempo para lamentações, tanto há a fazer e a refazer.

E vêm-me à memória uns certos versos, magníficos, de Florbela Espanca:

«Sobre um sonho desfeito erguer a torre
Doutro sonho mais alto e, se esse morre,
Mais outro e outro ainda, toda a vida!


Que importa que nos vençam desenganos,

Se pudermos contar os nossos anos
Assim como degraus duma subida?»

Estive nos Estados Unidos um mês depois do horror que foi o 11 de Setembro. Nova Iorque, Connecticut e Florida. Não havia montra, do mais humilde deli à mais requintada loja da Rua 57 ou da Quinta Avenida, que não ostentasse orgulhosa e desafiadoramente a bandeira americana. Não vi uma casa, no Connecticut ou na Florida, que não tivesse a sua bandeira desfraldada.

Há quatro anos, aquando do furacão Frances, estava em Miami, onde ele ameaçava aterrar. Acabou por embater mais a norte, mas fez muitos estragos, ainda assim. Quando pudemos finalmente sair do hotel, a actividade por todo o lado era febril: limpava-se, reparava-se, tentava-se retomar a normalidade o mais depressa possível.

Temos tanto a aprender com a América e com os Americanos!


domingo, 24 de agosto de 2008

Lições de vida

É sabido que eu travo sempre relações de amizade com toda a bicharada da vizinhança. Conheço-lhes os nomes e sei-lhes as histórias.

Ainda me lembro com especial afecto de dois grandes amigos que fiz quando vivia na Rio de Janeiro, o Rock e o Kaiser. O Rock era um bulldog encantador que bebia os ares por mim. Como consequência, o dono tentava evitar-me mal me avistava... é que persuadir um bulldog a afastar-se do seu objectivo está longe de ser tarefa fácil, é bom não esquecer que aquelas mandíbulas têm 800 quilos de força de tracção... O Rock amava-me, decididamente. Não foram poucas as vezes que me atirou ao chão, tão exuberante era nas suas demonstrações de afecto...

O Kaiser era um pastor belga lindo de cortar a respiração, imponente de porte, educadíssimo. No Apetite, o pronto a comer do prédio ao lado, o Kaiser só entrava se o dono autorizasse, e vinha cumprimentar-nos de aperto de mão ("Kaiser, cumprimenta as senhoras", dizia o dono...). A Nonô, a dona, servia-nos as melhores madalenas de Lisboa, às vezes eu oferecia-lhe uma, se o dono deixasse (era raro, que os cães não devem comer doces). Depois de engolida em duas dentadas, o Kaiser vinha agradecer: encostava-se a mim e lambia-me a mão. Mas o Kaiser tinha uma paranóia: apanhar folhas de árvores. Sim, leram bem. O Kaiser saltava na vertical a uma altura assombrosa, as árvores da avenida ostentavam nos ramos mais baixos uma boa quantidade de folhas ratadas. A minha irmã, quando lhe contei a história, achou que eu estava a inventar. Achou. Porque um dia, quando íamos a entrar juntas em minha casa, assistiu. E ficou parva. E saiu-se, claro, com a nossa célebre sigla SNVNA (se não visse não acreditava).

Tudo isto para vos falar do Quico, que conheci ontem, à porta da papelaria. O Quico é um cão de simpatia e alegria de viver transbordantes. O Quico ficou meu amigo até à morte e, de caminho, lambuzou-me toda. Eu, claro, adorei.

O Quico só tem três patas, falta-lhe a esquerda dianteira — eu digo o bracinho, mas isso é coisa minha... A dona contou-me a história. O Quico não nasceu assim. O Quico tem quatro anos. O Quico foi atropelado (por culpa do dono, que se distraiu) quando tinha dez meses. Passaram-lhe quatro carros por cima. O veterinário aconselhou a solução misericordiosa, dono e dona recusaram. Mas o bracinho esquerdo teve mesmo de ser amputado.

O bracinho esquerdo não faz falta nenhuma ao Quico. Vejam só a bela postura dele! O Quico é um cãozinho adorável e feliz, muito feliz. O Quico, de caminho, deu-me uma bela lição de vida, que recebi com toda a humildade.

Relativizar, eis um belo verbo, um verbo que conjugo muitas vezes. Ou que tento conjugar...

Há uns anos eu e o Vítor fizemos uma viagem operática a Munique, para ver e ouvir nossa menina Gruberova (Edita Gruberova, a voz maravilhosa que mais brilhantemente recolheu o testemunho da grande Dame Joan Sutherland) nos Puritanos. De caminho ainda vimos um Don Carlo magnífico, Zubin Metha a três metros de nós no fosso da orquestra. A estada foi de uns cinco ou seis dias e era Fevereiro, estávamos em pleno Inverno. Fomos a Dachau, o tristemente célebre campo de concentração. Não fiz uma única fotografia, e passámos lá um dia inteiro. Fotografar pareceu-me quase uma profanação, uma falta de respeito, um sacrilégio. Visitar um campo de concentração no Inverno lembra-nos ainda mais vivamente a dimensão do horror que ali aconteceu. Dachau estava coberto de neve, Dachau fica a cerca de vinte quilómetros de Munique. Munique regista sempre, no Inverno, temperaturas anormalmente baixas — mais baixas do que Vladivostok, se querem saber. Naquele dia estavam -14ºC. Embrulhados nos nossos quentíssimos casacos, protegidos com cachecóis, luvas e botas quentinhas e confortáveis, os pés forrados com dois pares de meias de lã, era impossível não lembrar que as pessoas que sofreram aquele calvário, com aquelas mesmas temperaturas, e foram milhões, tinham apenas a protegê-las um fino fato de riscas, toscos tamancos de madeira (nem sempre) e um magro cobertor, infestado de piolhos, e frequentemente a partilhar com mais uma ou duas pessoas.

Ao voltar a casa, a meio da tarde, descobri que estava sem luz (tinha-me esquecido de pagar a conta). Àquela hora já não podia ir pagar e voltar a ter luz nesse dia. Apetecia-me tremendamente rever (pela enésima vez) Música no Coração, porque tínhamos passado um dia em Salzburg, a cidade mágica a que hei-de ir no Verão — vi-a debaixo de um espesso manto de neve e até dei um homérico trambolhão nos Mirabel Gardens (isto para não falar do banho de neve que sofri junto do pavilhão onde é cantado Sixteen Going On Seventeen, quando o Vítor, por pura maldade, abanou um ramo de árvore em cima de mim) .

Não tinha luz! A chatice, o drama, o horror! Não podia rever Música no Coração! Não podia ouvir música! Mas depois lembrei-me de Dachau, dois dias antes... E tive vergonha.

Relativizar, meus amigos. Acendi velas, muitas velas, a casa parecia um centro de macumba, entretive-me com a leitura. Revi Música no Coração no dia seguinte, ouvi música no dia seguinte.

Desde então tento sempre relativizar. O Quico, ontem, mostrou-me uma vez mais como isso é importante. O Quico tem lugar cativo no meu coração.

P.S. Bem sei que, em bom Português, os nomes de animais devem ser grafados em itálico. Se estiver a rever um livro, respeito a regra, mas nunca a aplico na minha escrita pessoal. Era só o que faltava!