A Night at the Opera*
* título de um soberbo disco dos Queen, roubado a um soberbo filme dos Irmãos Marx

Já todos sabem que tenho paixão por Ópera. Acontece que, na Ópera, tenho uma paixão especial por Bel Canto, de que Bellini, Donizetti e Rossini são os nomes mais luminosos. E L'Elisir d'Amore é mesmo uma grande paixão minha.
Há coisa de três semanas, porque chegou ao Gabinete um convite endereçado à Entidade Máxima, fiquei a saber desta produção. Peguei logo no telefone e reservei bilhetes, dois, que a Manela também ficou entusiasmada e prontificou-se a ir comigo. Pedi para a noite a seguir à estreia — embiro com estreias, acho que são noites em que as pessoas vão para ver e ser vistas —, terceira fila ao centro, coxia (os meus lugares fetiche). E o Teatro da Trindade é um magnífico teatro para Ópera (ao contrário do Pavilhão Atlântico, que é um nojo). Os bilhetes ficaram em meu nome, teriam de ser levantados na véspera.

Na quinta-feira conseguimos sair a horas e lá fomos, eu a cantarolar (muito mal, que aquilo não é para a minha voz de contralto) o final do primeiro acto, a Manela a cantarolar (melhor) Una Furtiva Lagrima, a célebre ária que contribuiu para que a obra não caísse no esquecimento.
Quando o pano subiu e vi o cenário, percebi logo que era uma produção moderna. Não me incomodei muito: há uns anos vi ali, no mesmo Teatro da Trindade, o mesmo L'Elisir d'Amore numa produção situada na China de Mao. E DELIREI, foi uma coisa fabulosa! Nunca esquecerei o Dulcamara de João Miranda e as suas partenaires, nem a Adina de Ana Ferraz.
O cenário, minimalista, era lindo, fui registando cada pormenor enquanto ouvia a abertura (a orquestra deixava a desejar). Adina (Carla Caramujo, vi-a há meses como Gilda no Rigoletto, óptima) estava lá ao fundo, em fato de banho, reclinada numa espreguiçadeira. Entra o coro, entra Gianetta, e deslumbrei-me com as cores. Dei mentalmente nota vinte à produção. Gianetta e o coro atacam Bel Conforto al Mietitore... e tenho um dos maiores choques da minha vida. É que estavam a cantar em português!!!
A Manela farta-se de contar a história a quem a quer ouvir: o meu salto na cadeira quando desataram a cantar, a minha cara horrorizada. Confesso que a minha reacção instintiva foi querer pôr-me a milhas, e imediatamente. Complicado, se considerarmos que estava na terceira fila... Teria de sofrer todo o primeiro acto, pisgava-me no intervalo. Anormais!!! Em parte alguma do programa eu tinha visto menção ao facto de a obra ser cantada em português!
Tentei abstrair-me da língua, tentei não ouvir as palavras, enquanto racionalizava. Na ENO, English National Opera, todas as obras são cantadas em inglês. Puccini, o grande Puccini, achava que as suas obras deviam ser cantadas na língua do próprio país. Se Puccini assim pensava, quem sou eu para me armar aos cucos? Ainda assim... ouvir Adina comentar várias vezes para o coro, sobre Belcore, que «É modesto o senhorito» revolveu-me as entranhas. Não se arranjava nada melhor? Eu e a Manela fungámos, divididas entre o horror e uma irreprimível vontade de rir. E eu antecipava, com alguma apreensão, uma certa parte de Una Furtiva Lagrima, quando Nemorino canta «M'ama, si, m'ama!». Vá lá, contornaram a espinhosa questão com alguma habilidade. Não ficou a fazer grande sentido, mas poucas coisas na ópera fazem, se pensarmos bem. «Minha, é minha!», foi como ficou a delicada passagem.
Devo dizer que, visualmente, este Elixir d'Amor (agora percebo o título — tarde piaste, mula!) foi uma coisa deslumbrante. As cores! As cores! Cenário, guarda-roupa (menção especial para Gianetta — Alexandra Moura — e as três carteiras a tiracolo), as meninas do coro todas de cabeleiras loiro-platinado iguais, tudo lindo de encantar.
Escusado será dizer que não me fui embora no intervalo. Aliás, mesmo com o desconforto inevitável de ouvir cantar em português, o final do primeiro acto, tamanha a beleza da música, pôs-me a chorar como uma Madalena, o que me fez perguntar o meu clássico «Estou muito borrada?» à Manela. Costuma ser o Vítor a ouvir esta minha pérola... Troquei mensagens com a Mad (momento imortalizado aqui, o Benfica marcou o primeiro golo quando eu estava a sentar-me outra vez), telefonei ao Vítor, telefonei ao Pedro.
Deixemo-nos de esquisitices: percebo e até aplaudo a ideia, há que desfazer o mito de que a Ópera é coisa difícil e maçadora. A Ópera é uma arte sublime. E L'Elisir d'Amore é uma obra magnífica, e tão alegre! Uma excelente primeira escolha para quem quiser começar a ouvir Ópera.
Chocou-me, e muito, a frieza dos aplausos no fim. Nunca tinha visto tal coisa em Portugal! Tive pena pelos cantores, que ali deram o litro e fizeram um óptimo trabalho, todos eles. Mereciam mais, muito mais.
Quando cheguei a casa, passava da meia-noite (eu e a Manela ainda fomos jantar à Trindade, onde eu não punha os pés há um ror de anos), não resisti e ainda me pus a ouvir todo o segundo disco de L'Elisir d'Amore, nesta maravilhosa gravação, as vozes miraculosas de Dame Joan Sutherland e Luciano Pavarotti no auge do seu esplendor. Eram três horas quando me deitei.
Esta produção estará no Porto no dia 24. Alf, o recado é para ti.