quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A Night at the Opera*

* título de um soberbo disco dos Queen, roubado a um soberbo filme dos Irmãos Marx

Não escrevi antes sobre isto porque sabia que o Pedro ia ver esta semana e não queria estragar-lhe a surpresa. Como sei que foi esta noite, já posso alargar-me em considerações.

Já todos sabem que tenho paixão por Ópera. Acontece que, na Ópera, tenho uma paixão especial por Bel Canto, de que Bellini, Donizetti e Rossini são os nomes mais luminosos. E L'Elisir d'Amore é mesmo uma grande paixão minha.

Há coisa de três semanas, porque chegou ao Gabinete um convite endereçado à Entidade Máxima, fiquei a saber desta produção. Peguei logo no telefone e reservei bilhetes, dois, que a Manela também ficou entusiasmada e prontificou-se a ir comigo. Pedi para a noite a seguir à estreia — embiro com estreias, acho que são noites em que as pessoas vão para ver e ser vistas —, terceira fila ao centro, coxia (os meus lugares fetiche). E o Teatro da Trindade é um magnífico teatro para Ópera (ao contrário do Pavilhão Atlântico, que é um nojo). Os bilhetes ficaram em meu nome, teriam de ser levantados na véspera.

Na terça-feira pedimos a um dos motoristas que passasse por lá e nos trouxesse os bilhetes. O Sr. José António voltou com os ditos... e com o dinheiro. Os bilhetes, que eram ridiculamente baratos (mais barato só mesmo aquele mágico The Year of Magical Thinking no National Theatre, em Julho, que custou dez libras — irra, que ainda não contei o meu encontro com Dame Vanessa Redgrave!) foram oferecidos, vejam a imagem: custo zero. O Sr. José António recusou-se a explicar tal prodígio, e bem o crivámos de perguntas. Ficámos com a forte suspeita de que a menina da bilheteira devia ser uma antiga namorada, que ele é todo galã.

Na quinta-feira conseguimos sair a horas e lá fomos, eu a cantarolar (muito mal, que aquilo não é para a minha voz de contralto) o final do primeiro acto, a Manela a cantarolar (melhor) Una Furtiva Lagrima, a célebre ária que contribuiu para que a obra não caísse no esquecimento.

Quando o pano subiu e vi o cenário, percebi logo que era uma produção moderna. Não me incomodei muito: há uns anos vi ali, no mesmo Teatro da Trindade, o mesmo L'Elisir d'Amore numa produção situada na China de Mao. E DELIREI, foi uma coisa fabulosa! Nunca esquecerei o Dulcamara de João Miranda e as suas partenaires, nem a Adina de Ana Ferraz.

O cenário, minimalista, era lindo, fui registando cada pormenor enquanto ouvia a abertura (a orquestra deixava a desejar). Adina (Carla Caramujo, vi-a há meses como Gilda no Rigoletto, óptima) estava lá ao fundo, em fato de banho, reclinada numa espreguiçadeira. Entra o coro, entra Gianetta, e deslumbrei-me com as cores. Dei mentalmente nota vinte à produção. Gianetta e o coro atacam Bel Conforto al Mietitore... e tenho um dos maiores choques da minha vida. É que estavam a cantar em português!!!

A Manela farta-se de contar a história a quem a quer ouvir: o meu salto na cadeira quando desataram a cantar, a minha cara horrorizada. Confesso que a minha reacção instintiva foi querer pôr-me a milhas, e imediatamente. Complicado, se considerarmos que estava na terceira fila... Teria de sofrer todo o primeiro acto, pisgava-me no intervalo. Anormais!!! Em parte alguma do programa eu tinha visto menção ao facto de a obra ser cantada em português!

Tentei abstrair-me da língua, tentei não ouvir as palavras, enquanto racionalizava. Na ENO, English National Opera, todas as obras são cantadas em inglês. Puccini, o grande Puccini, achava que as suas obras deviam ser cantadas na língua do próprio país. Se Puccini assim pensava, quem sou eu para me armar aos cucos? Ainda assim... ouvir Adina comentar várias vezes para o coro, sobre Belcore, que «É modesto o senhorito» revolveu-me as entranhas. Não se arranjava nada melhor? Eu e a Manela fungámos, divididas entre o horror e uma irreprimível vontade de rir. E eu antecipava, com alguma apreensão, uma certa parte de Una Furtiva Lagrima, quando Nemorino canta «M'ama, si, m'ama!». Vá lá, contornaram a espinhosa questão com alguma habilidade. Não ficou a fazer grande sentido, mas poucas coisas na ópera fazem, se pensarmos bem. «Minha, é minha!», foi como ficou a delicada passagem.

Devo dizer que, visualmente, este Elixir d'Amor (agora percebo o título — tarde piaste, mula!) foi uma coisa deslumbrante. As cores! As cores! Cenário, guarda-roupa (menção especial para Gianetta — Alexandra Moura — e as três carteiras a tiracolo), as meninas do coro todas de cabeleiras loiro-platinado iguais, tudo lindo de encantar.

Escusado será dizer que não me fui embora no intervalo. Aliás, mesmo com o desconforto inevitável de ouvir cantar em português, o final do primeiro acto, tamanha a beleza da música, pôs-me a chorar como uma Madalena, o que me fez perguntar o meu clássico «Estou muito borrada?» à Manela. Costuma ser o Vítor a ouvir esta minha pérola... Troquei mensagens com a Mad (momento imortalizado aqui, o Benfica marcou o primeiro golo quando eu estava a sentar-me outra vez), telefonei ao Vítor, telefonei ao Pedro.

Deixemo-nos de esquisitices: percebo e até aplaudo a ideia, há que desfazer o mito de que a Ópera é coisa difícil e maçadora. A Ópera é uma arte sublime. E L'Elisir d'Amore é uma obra magnífica, e tão alegre! Uma excelente primeira escolha para quem quiser começar a ouvir Ópera.

Chocou-me, e muito, a frieza dos aplausos no fim. Nunca tinha visto tal coisa em Portugal! Tive pena pelos cantores, que ali deram o litro e fizeram um óptimo trabalho, todos eles. Mereciam mais, muito mais.

Quando cheguei a casa, passava da meia-noite (eu e a Manela ainda fomos jantar à Trindade, onde eu não punha os pés há um ror de anos), não resisti e ainda me pus a ouvir todo o segundo disco de L'Elisir d'Amore, nesta maravilhosa gravação, as vozes miraculosas de Dame Joan Sutherland e Luciano Pavarotti no auge do seu esplendor. Eram três horas quando me deitei.

Esta produção estará no Porto no dia 24. Alf, o recado é para ti.



6 comentários:

  1. Confesso que me e dificil ver a arte ser transformada, mas a arte como expressao criativa e livre, dever-se-ia poder ajustar constantemente. Por isso mesmo muitas obras tem diversas versoes (diferentes idiomas, orquestracoes, ...). No entanto muita coisa mal feita assusta-me e sou muito fiel as versoes originais.
    De qualquer forma, ouvir que a obra foi executada em portugues deixa-me um sorriso nos labios por duas coisas:
    E muito dificil ouvir o que quer que seja em portugues, infelizmente o portugues nao e bem visto como uma lingua "cantavel" e a partida parece-nos imensamente piroso, uma tendencia a combater;
    Talvez na origem do primeiro ponto, esteja o facto de que cantar em portugues e muito dificil, os nossos sons nasalados, as vogais mudas e fechadas sao um martirio para o cantor e exigem uma tecnica suprema. Nao e por acaso que o italiano ou o alemao se dao tao bem com a opera.
    Enfim, fica a curiosidade, ja que sei que nao vou poder assistir a opera.
    Beijo.

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  2. Não tenho dúvidas de que alugava-te como ciceroni a me levar pelo mundo da ópera que tão pouco conheço... mas ouvir este trecho, caiu-me bem. Mais ainda ler tuas palavras. Gosto muito de tudo que escreves, sempre. bjs

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  3. No Pavilhão Atlântico fui uma única vez ver Porgy and Bess e jurei para nunca mais ...

    Não é de todo o local mais apropriado para um espectáculo desta natureza!
    :)

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  4. no new post? humpf... orçamento malvado :(

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  5. espero que tenha valido a pena o jantar comigo... chuifff.

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  6. Teresa, só tu para me deixar aqui a ler sem reparar no tempo... Gosto de Ópera, mas tu és uma douta do tema. Se calhar a minha reacção a essa adaptação seria a mesma. Mas talvez eu ficasse mais desiludida. Se há coisa em que gosto de ouvir na língua origianal é ópera. A música acompanha a musicalidade das palavras e emoções naquela língua!

    Tenho de voltar a esse circuito. Há muito tempo que não vou à Ópera.

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