sábado, 29 de janeiro de 2011

Uma estrela fora do seu tempo

O título não é meu, como minhas não são as belíssimas palavras que se seguem. Título e palavras  são do Pedro Correia, num post de ontem no Delito de Opinião,  em tocante homenagem a uma grande actriz que os mais novos provavelmente nem conhecerão: Susannah York.

Há anos que procuro regularmente, sem nunca a encontrar, uma certa produção televisiva de La Voix Humaine, de Cocteau, em inglês. É de facto uma peça para uma voz. O texto, que só conheço no original francês, quando lido pode chegar a parecer trivial, de uma banalidade confrangedora. É a voz da actriz agarrada ao telefone numa conversa inconsequente com o ex-marido, por quem continua desesperadamente apaixonada (a peça é um longo monólogo, só ouvimos a voz dela), que lhe dá matizes que o tornam profundamente comovedor, verdadeiramente patético. Nessa produção inglesa há muito vista na RTP2 e nunca esquecida, a actriz era Susannah York.

Susannah York morreu no dia 15 de Janeiro e eu só soube ontem, no Delito de Opinião. Teria sabido mais cedo, é certo, se tivesse mais tempo para visitar certos fóruns de Teatro muito do meu agrado, em que muito tenho aprendido, nenhum outro como All That Chat, do fabuloso TalkinBroadway. Ainda assim, não vi qualquer notícia, por mais pequenina, em qualquer jornal, e tamanho alheamento choca-me.

Vi Susannah York em palco uma única vez, faz amanhã, dia 30 de Janeiro, doze anos.  Como lembro tão bem a data? É simples, muito simples, mesmo não tendo eu ainda, nessa época, o bom hábito de guardar o bilhete dentro do programa da peça. Voámos para Londres na manhã de 29 e nessa noite vi pela primeira vez  Chicago, paixão que me ficou para o resto da vida.  Para a noite seguinte tínhamos, arranjados pelo concierge do Dorchester, bilhetes para o revival de West Side Story, graças aos bons ofícios do meu amigo A., sempre íntimo de quem interessa em todos os hotéis de luxo, e para os nossos bilhetes pouco importou que ele em Londres fique sempre no Claridge's. Ora os tais bilhetes desencantados pelo Dorchester como grande prodígio eram em lugares para nós intoleráveis, lá para uma 15.ª fila. Exasperados, a espumar de fúria, nem o sumptuoso (e de preço obsceno) chá do Dorchester nos aplacou o rancor. E para aqueles lugares não íamos, era ponto assente.

Voltámos para o nosso hotel, o óptimo Westbury, mesmo sem os luxos asiáticos do Dorchester ou do Claridge's (e no segundo já fiquei, sei do que falo). Fomos desabafar o nosso desespero com o Blanco, o concierge. Afinal, não nos tinha ele conseguido, para essa noite ou para a seguinte — confesso que não tenho a certeza  —, essa coisa impossível que eram reservas para o Nobu, com uma lista de espera de dois meses para os comuns mortais como nós? O Blanco esteve à altura. Após dois ou três telefonemas, disse que nos arranjava grandes lugares para An Ideal Husband ou para Miss Saigon. Tentei reprimir a excitação: uma peça de Oscar Wilde, o meu tão amado Oscar Wilde! A escolha tinha de ser de pleno acordo. Vários factores pesaram na decisão, que tentámos fazer racional. Nenhum de nós conhecia ainda Miss Saigon (que venero), mas estava para durar e ambos preferimos sempre ver uma obra a que já conhecemos muito bem a música, a experiência é infinitamente mais completa; em contrapartida, An Ideal Husband estava com a chamada limited run, ficaria em cena mais um mês ou mês e meio, no máximo, e nós vivíamos e vivemos em Lisboa. Acresce que, ao princípio da tarde, muito antes de saber o que nos esperava, eu tinha citado Oscar Wilde e o Vítor tinha rido a bom rir: «To love oneself is the beginning of a lifelong romance.»  A frase era justamente de An Ideal Husband, foi com uma cotovelada de deleite que o Vítor ma assinalou, delirante, instalados nos nossos soberbos lugares da quinta fila ao centro.

E foi assim que vimos Susannah York no papel da maquiavélica Mrs Cheveley. Linda, linda (LINDA!). Mas, mais do que isso, perfeita na personagem. Mágica. Volto sempre a este adjectivo quando falo de inesquecíveis noites de Teatro. Porque são isso mesmo: mágicas.

Tenho algures num álbum, ainda por digitalizar, uma péssima fotografia de nós dois frente ao teatro. Muito escura, acho que era de uma daquelas máquinas descartáveis, e era Janeiro e era Londres. Pouco importa, o nome da peça, por trás de nós, é bem visível. E temos esta preciosa memória, que nada pode apagar. 

Chega de tagarelice. Passo a palavra ao Pedro Correia, que encontrou sobre Susannah York palavras que eu gostaria de ter escrito.



Há certas actrizes que nos parecem deslocadas da sua época. Senti sempre que era esse o problema com Susannah York. Esta inglesa nasceu para o cinema numa altura em que as deusas do celulóide eram vistas como uma relíquia do passado. Naquela década de 60, interessava “desmistificar” a mulher, torná-la “igual” aos homens, "libertá-la" de toda a encenação e todo o artifício. Carole Lombard, Ingrid Bergman, Rita Hayworth, Ava Gardner, Grace Kelly, Elizabeth Taylor e tantas outras rainhas dos anos dourados de Hollywood davam lugar à mulher banal, destituída de glamour, despojada daquele brilho cintilante que todas as estrelas irradiam. Era o tempo da Sally Field e da Jill Clayburgh e da Glenda Jackson e da Sarah Miles e da Karen Allen: figuras banais, rostos banais, que poderíamos ver a qualquer hora num restaurante de bairro ou num transporte público.

A mulher destituída de aura hollywoodesca era uma mulher “libertada”, uma mulher “consciente” – dizia-se então. E até actrizes inegavelmente belas desse período, como Jane Fonda e Julie Christie, pareciam pedir desculpa aos espectadores, em sucessões contínuas de filmes urbano-depressivos, por serem tão bonitas. Nesses tempos carregados de ideologia, havia uma conotação implícita entre beleza e classe dominante, que devia ser derrubada pelas massas oprimidas. Muito sofreram algumas mulheres desses tempos. E muitos homens também...

Susannah York nada tinha de banal. Bastava vê-la surgir em cena para se perceber que era impossível permanecer indiferente ao fulgor daqueles olhos azuis, à sedução daqueles lábios volumosos e ao fascínio daquela voz quente e bem timbrada. Desempenhou papéis memoráveis em dois filmes galardoados com o Óscar: Tom Jones (1963) e Um Homem para a Eternidade (1966), ambos de produção britânica. Entrou numa das películas norte-americanas mais aclamadas da década de 60: Os cavalos também se abatem (1969). Fez de mulher de Marlon Brando no mega-sucesso Super-Homem (1978). Contracenou com Alan Bates num perturbante filme de culto: O Uivo (1979). Trabalhou também na televisão: lembro-me bem dela na versão britânica da série Dear John.

Filmar com Fred Zinnemann, Sydney Pollack, Richard Donner, Tony Richardson e Jerzy Skolimowski, entre outros nomes grandes da realização, é suficiente para garantir a alguém um lugar em qualquer enciclopédia do cinema. Mas fiquei sempre com a convicção de que Susannah York podia ter ido muito mais longe do que foi, tornando-se um verdadeiro ícone da sua época. O problema não foi dela, mas dos ventos dominantes daqueles dias que mandavam derrubar todos os ícones em nome da idolatria do cidadão comum. Um problema insolúvel para quem era incomum, como Susannah York. Tivesse ela nascido dez anos mais cedo ou vinte anos mais tarde, nada decorreria como decorreu. Nem, como sucedeu há dias, se despediria da vida – depois de se despedir do cinema – perante a lamentável indiferença de um público cinéfilo que em muitos casos não chegou sequer a saber quem ela foi.»


E os comentários:

De Teresa a 29 de Janeiro de 2011 às 00:47
Estou chocada, Pedro. E triste. É por si que, duas semanas depois, sei da morte de Susannah York. Sic transit Gloria Mundi, é qualquer coisa assim, não é? Esta partida silenciosa lembra-me a do grande Sir Georg Solti, que morreu poucos dias depois da Princesa Diana e da Madre Teresa de Calcutá. Dele ninguém falou nos noticiários, não vendia revistas. É que era só um grande maestro, um dos grandes do séc. XX. E a partida de um vulto destes não dá matéria para títulos de primeira página ou aberturas de telejornais.

Tive o privilégio de ver Susannah York no palco, no princípio de 1999, como a pérfida Mrs Cheveley de An Ideal Husband, de Oscar Wilde. Mágica. Mágica.

Mundo muito estúpido, que põe nos píncaros as Hannahs Montanas e os miúdos de cabelo ridículo (aquele Justin qualquer coisa).
De Pedro Correia a 29 de Janeiro de 2011 às 09:36
Que privilégio, tê-la visto em palco! Sempre admirei muito esta actriz e fiquei chocado com a indiferença quase generalizada face à notícia da morte dela. E afinal já nem devia surpreender-me com isto. A memória das pessoas está cada vez mais curta e é cada vez mais selectiva - no pior dos sentidos do termo.

4 comentários:

  1. Soube da morte no próprio dia. Chocou-me o facto da notícia nos telejornais portugueses ter sido apenas telegráfica.

    Ficam-me sobretudo os desempenhos nos filmes O Uivo e Os Cavalos Também Se Abatem.

    Mulher de rara beleza.
    Excelente actriz.

    Já deve estar a desempenhar um papel à sua altura lá em cima...

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  2. Sem dúvida. Não vi O Uivo (a corrigir em breve). Os Cavalos Também se Abatem desafia adjectivação. Já o vi umas quatro ou cinco vezes.

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  3. Ao Duarte,
    Removeu o seu comentário, coisa que respeito mesmo sem perceber: Deus o abençoe, Nossa Senhora o ajude, S. Francisco de Assis o acompanhe sempre, que conta com a minha eterna gratidão.
    Encomendado, vem a caminho. Cheira-me que é uma edição manhosa e de pouca qualidade, mas pouco me ralo, quero tanto rever aquilo!
    OBRIGADA!

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