segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A Most Peculiar Man (Os Discos da Minha Vida #15: Sounds of Silence)

Tenho este estranho hábito de tentar traduzir-me sempre em música. Às pessoas que diziam achar-me estranha, impenetrável, encerrada numa torre de marfim, à qual só uns quantos eleitos tinham acesso, só me apetecia dizer que eu era cristalina, bastava ouvirem certas músicas onde eu estava toda e ficavam a conhecer-me. As minhas músicas contam-me do princípio ao fim, é como nas parábolas do Evangelho: «Quem tiver ouvidos, que oiça.»

Algumas (poucas e preciosas) pessoas tiveram esse trabalho, acharam que o investimento podia valer a pena. Outras partilharam essas certas músicas comigo desde o princípio, porque também faziam parte delas.

Foi o caso do Nuno. Os meus diários, ao longo de vinte e tal anos, registam diálogos nossos, ou a sua súmula. O Nuno sabia, o Nuno sentia isto como eu, o Nuno sentia isto como seu. É assim de estranhar que fôssemos os amigos que éramos? Nem vou falar do que dói esta conjugação pretérita...

Foi hoje a Missa do primeiro ano de perda (embirro com a palavra aniversário). Saí do Colosso tarde (à hora possível), enervada, com medo de chegar atrasada, já com a preocupação antecipada de encontrar lugar para parar o carro. Liguei a telefonia, estava na Rádio Renascença e estava a começar o Terço. Embrulhada nas complicações do trânsito, dei comigo a acompanhar com todo o fervor aquele Rosário assim rezado, a dar as respostas litúrgicas de coração inteiro, com toda a convicção. Quem me visse dos outros carros devia pensar que ia ali uma tolinha a falar sozinha, pouco importava. Cheguei em cima da hora, consegui encaixar-me milagrosamente no lugar que a Mafalda, mesmo à minha frente, me apontava. Acabou por correr bem, cheguei cinco minutos antes.

Não comunguei, por razões poderosas: uma certa passagem do Evangelho segundo S. Mateus, aquele que é por mim o mais amado, em que mais me reconheço. Mais tarde, cá fora, o encontro com pessoas de sempre, a conversa sincopada com a Mafalda, que entre uma solicitação e outra me ia contando coisas dos miúdos, eu entristecida por hoje em dia saber tão pouco deles. A culpa não é minha nem dela, é só da vida, que nos afasta tantas vezes do que em nós seria o mais imediato e natural.

Soube-me bem, muito bem, o encontro com a Pituxa. Engraçado como, against all odds (duas irmãs dela a detestarem-me, uma mais do que a outra, por razões às quais sou completamente alheia), tivemos as duas, desde o princípio, uma sintonia perfeita, uma simpatia imediata que foi uma empatia. Gosto dela e acho que ela gosta de mim. Entendemo-nos sem necessidade de grande palavras, é uma coisa que flui naturalmente.

Deixei o meu carro pelintra parado, a Pituxa deixou o seu carro de luxo parado, fomos tranquilamente a pé, depois da Missa e de nos termos despedido das pessoas que contavam. A caminho da lavandaria onde eu há mais de uma semana tinha deixado um casaco a limpar, fomos comentando coisinhas pequeninas das nossas vidas, e sinto que há aqui lugar para uma bela Amizade. Não é que se tenham dito grandes coisas, é só que se sente que confiamos uma na outra. E a confiança é um grande valor! E depois, sabem, caminhar numa rua de Lisboa, num princípio de noite com cheiro de Verão tardio, com uma pessoa com quem nos entendemos bem, a seguir à Missa onde se chorou a perda de um grande Amigo, faz-nos ver as coisas com outros olhos, tudo ganha um sabor diferente. É efémera a nossa passagem. É incerto o nosso tempo neste mundo. Que maravilha é estar vivo e ter alguém a caminhar connosco e a dizer-nos coisas com significado!

Chego finalmente ao assunto do post. Ao Nuno, tão omnipresente nestes últimos dias. Nos grandes amigos que éramos cabia a divergência. Em Stendhal, eu era mais Le Rouge et le Noir, ele era mais Lucien Lewen. Em Balzac eu era toda Le Lys dans la Vallée e ele Eugénie Grandet. Ele era mais Doors, eu mais Mamas & Papas. Mas depois havia os terrenos comuns, os das nossas sempiternas obsessões. Beatles, claro, numa categoria à parte. Moody Blues, comuns aos dois. E, mais do que quaisquer outros, Simon & Garfunkel. TODOS os discos, hoje fica apenas este, de 1968 (tem quarenta anos!). Numa música que para mim, como para o Nuno, era obcecante: A Most Peculiar Man.

Ele também era isso.

Hei-de voltar a este disco da minha vida. Mais duas vezes, pelo menos.


A Most Peculiar Man

He was a most peculiar man.
That's what Mrs. Riordan said and she should know;
She lived upstairs from him
She said he was a most peculiar man.

He was a most peculiar man.
He lived all alone within a house,
Within a room, within himself,
A most peculiar man.

He had no friends, he seldom spoke
And no one in turn ever spoke to him,
'Cause he wasn't friendly and he didn't care
And he wasn't like them.
Oh, no! he was a most peculiar man.

He died last Saturday.
He turned on the gas and he went to sleep
With the windows closed so he'd never wake up
To his silent world and his tiny room;
And Mrs. Riordan says he has a brother somewhere
Who should be notified soon.
And all the people said, "What a shame that he's dead,
But wasn't he a most peculiar man?"


domingo, 28 de setembro de 2008

Um ano...

Há um ano, quando eu ria alegre entre amigos muito antigos, na grande celebração de amizade que são sempre os jantares do Liceu, o Nuno partia deste mundo.

Passou todo um ano, o primeiro. Julgo que o segundo é mais difícil, porque a distância já se fez maior. Mas o Nuno continua comigo. Se fechar os olhos consigo ver-lhe o rosto, consigo ouvir-lhe a voz cálida, muitíssimo bonita. Não passou um dia destes 366 dias sem que, por isto ou aquilo, me tivesse lembrado dele. Sinto-lhe a falta. Como não voltei a nenhum dos nossos sítios (nem sequer ao Centro de Bridge), não tive nenhum daqueles ataques de saudade verdadeiramente dolorosos, em que a consciência da ausência física definitiva da pessoa nos aperta a garganta e dói nos ossos. Em vez disso, a minha saudade é doce e triste, melancólica, arrancando-me de vez em quando um longo suspiro. Às vezes, quando aperta mais, ponho os discos que mais me lembram dele uns atrás dos outros, e músicas há que me fazem voltar à memória episódios antigos que me fazem sorrir. Como os livros.

Hoje, ao pegar no Justine, o primeiro volume do magistral Quarteto de Alexandria, de Durrell, que ambos venerávamos, e porque o pensamento é caprichoso e faz permanentemente associações, lembrei-me de uma outra pessoa que também tinha verdadeiro culto pela obra, o R., e de uma história com ele em que o Nuno participou, não sendo a sua intervenção nada caridosa. Na altura fiquei furiosa com ele, mesmo reconhecendo a comicidade da situação. A verdade é que, juntos, conseguíamos ser verdadeiramente perversos, muito Vicomte de Valmont e Marquise de Merteuil (outro livro que era uma paixão comum, foi juntos que vimos pela primeira vez a obra-prima que é a adaptação para o cinema de Stephen Frears), às vezes tratávamo-nos a rir por "caro visconde" e "cara marquesa".

A fotografia acima, a mais gira que temos juntos, foi tirada num jantar do Natal de 93 no Casino Estoril ao qual o Nuno fez o favor de me acompanhar, que aquilo era um frete ao qual eu não podia nem devia esquivar-me. Acabámos por passar uma noite divertidíssima, porque o riso era permanente quando estávamos juntos. E verifico horrorizada a prova irrefutável: eu já usei peles! Como foi possível?! Eram lindas, aquelas raposas, mas confesso que há uns bons anos as deitei fora, revoltada por ter sido capaz de usar semelhante monstruosidade. As pessoas da recolha de lixo devem ter ficado bastante surpreendidas com o achado.

A fotografia é publicada com autorização e aprovação da Mafalda e dos três filhos dos dois: Tomás, Mafalda e Lourenço. Um grande beijo aos quatro. Se a memória não me atraiçoa, quando foi tirada o Tomás estava com quatro anos e a Mafaldinha tinha acabado de fazer dois. Confirmas, Mafalda?

A banda sonora, inevitável, é uma música que devemos ter ouvido centenas de vezes juntos. Pano-Cru, de Sérgio Godinho, era infalivelmente um dos discos que o Nuno mais vezes punha a tocar em minha casa. O Primeiro Dia obcecava-nos aos dois.

Tenho saudades dessas noites, das conversas, dos risos, das histórias partilhadas. Tenho saudades do Nuno, pronto.

sábado, 27 de setembro de 2008

Farewell, Paul Newman

A maldição da beleza. Era tão bonito que se esquecia o resto: o grande actor; o ser humano único. Nove nomeações para o Oscar, só à sétima levou a estatueta para casa, em 1986 (no ano anterior tinha sido homenageado com um Oscar honorário pela carreira, podem ver aqui). O mundo só tinha olhos para o extraordinário azul dos olhos de Paul Newman.

Tive o privilégio de o ver em palco há cinco anos, terceira fila ao centro. A peça (a mítica Our Town) não me impressionou especialmente, mas o seu desempenho era poderoso. Paul Newman voltava à Broadway após 38 anos de ausência, um ano depois do 11 de Setembro: «I decided I would not go to my grave without coming back to Broadway. There is no other reason, except that Our Town reflects the best of American values, and I thought it appropriate for these times.»

Paul Newman criou uma marca de molhos para saladas que o poderia ter feito ainda mais rico, tamanho foi e continua a ser o sucesso. Sorrio de cada vez que vejo um frasco, nos Estados Unidos, por saber que cada cêntimo dos lucros a perfazerem milhões vai para fins humanitários. Paul Newman comprou um castelo na Irlanda, Barretstown Castle, para acolher crianças doentes.

Hoje o mundo ficou mais pobre, hoje o mundo está de luto. Paul Newman foi muito mais do que um grande actor: Paul Newman foi um grande Homem.

Vou deitar-me agora e rever um dos seus filmes, um dos meus favoritos. The Verdict (outra nomeação para o Oscar). Nas palavras de um amigo querido, advogado, palavras escritas há mais de três anos, numa troca de mails em que comentávamos as nossas paixões cinematográficas, «
Quanto ao Paul Newman sou suspeito. Fui para Direito muito por culpa de O Veredicto, do Sidney Lumet, com o argumento adaptado pelo David Mamet. Cheguei a saber de cor as alegações finais que "Frank Galvin" faz em tribunal. Enfim, tempo de juventude. Este é um filme que vejo, religiosamente, pelo menos uma vez por ano. Refresca as minhas convicções no que é ser justoHá dois anos, quando o meu afilhado Filipe se formou em Direito, ofereci-lhe o filme, juntamente com um outro do mesmo Sidney Lumet, uma obra-prima chamada 12 Angry Men. Nas palavras do meu amigo Harvey, o mesmo: «12 Angry Men. Um filme fantástico. Um argumento de excepção. Quase claustrofóbico e, certamente também por isso, tão intenso. Igualmente um eleito. Um dos jurados é o Jack Warden que é colega de escritório do Newman em O Veredicto

A explicação para a música de fundo está aqui.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A falta que faz um bidé...

A Azul, agora Azula (favor ler com pronúncia francesa) está de volta! Talvez por já termos entrado no Outono, suspendeu o seu Cheiros de Verão, cujo nome, tão poderosamente evocativo, eu amava. Não, não foi por isso. Foi por ter iniciado uma nova fase da sua vida. Nova vida, novo blogue. Não apagou o Cheiros de Verão, não o encerrou («não me arrependo do que fui outrora porque ainda o sou», nos versos mágicos de Alberto Caeiro). Abriu outro capítulo sem rasgar o anterior, respeitando o acervo de mágoas e alegrias que ele encerrava, aceitando os borrões, o que tinha corrido mal, aproveitando o que de bom havia.

A Azul, agora Azula, correu riscos, partiu rumo ao desconhecido, deu-se bem e está feliz. Falámos há dias, e o bem que me soube sabê-la certa, equilibrada, serena, optimista, alegre! Só não lhe perdoo o raio do piercing que me contou ter posto. Mexer naquele nariz absolutamente perfeito de proporções e de delicadeza é crime de lesa-majestade! Sim, que ela é senhora de um dos narizes mais bonitos que vi em toda a minha vida!

A Azula tem novo blogue, e o nome pôs-me logo a rir. A falta que faz um bidé...

E eu não sei? Experimentem ir aos Estados Unidos, ou a Inglaterra... Só não percebo por que carga de diabos é que, estando ela na terra-mãe do bidé (bidet), tão dramática falta a atormenta. Fico à espera, que deve vir história a caminho.

Quote for the day... e a Sãozinha

Recebido hoje da Sãozinha, a notável, inesquecível e muito querida Professora do magnífico curso de revisão e edição que fiz há um ano:

«Whatever you give a woman, she's going to multiply. If you give her sperm, she'll give you a baby. If you give her a house, she'll give you a home. If you give her groceries, she'll give you a meal. If you give her a smile, she'll give you her heart. She multiplies and enlarges what is given to her. So — if you give her any crap… you will receive a ton of shit!»

Sãozinha, desculpe... bem sei (graças a si) que a citação, por ter mais de três linhas, devia estar avançada na mancha da página e um ponto mais pequena... O Blogger não me permite floreados desses. Mas repare, antes que se arrependa da nota que me deu, que está em itálico... :)

Ainda me lembro do que penei quando, antes da primeira aula, enviou a toda a turma um mail em que assinalava frases dos textos que tínhamos redigido aquando da nossa candidatura ao curso. Todas devidamente identificadas, o nome do autor por baixo. E o meu nome aparecia três vezes! TRÊS! Era o texto sobre Oscar Wilde que está aqui, que enviei muito mutilado, única forma de respeitar a regra de um máximo de 1800 caracteres. Lia as frases dos outros e percebia o que estava mal: aqui um erro de ortografia, ali pontuação errada, acolá uma construção deficiente ou pouco clara. Lia as pobres frases da minha humilhação pública (sim, que as duas turmas tinham recebido aquilo!) e não conseguia descortinar o que pudesse estar mal nelas. Agora sei! Numa a hora do dia estava mal grafada — 13:50 e não 13h50, como devia ser. Noutra o ponto final da citação estava fora das aspas, num caso em que claramente deveria estar dentro. Na terceira discordamos. Continuo a achar, com toda a humildade e plena consciência da inferioridade do meu saber, que a frase, não sendo brilhante, nada tem de errado: «Tenho um retrato, pedi a um japonês que estava ali pelos mesmos motivos que me fotografasse.»

Longe estava eu de saber, naquele dia de Outubro de 2006 em que homenageava o meu amado Oscar Wilde e, de caminho, prestava sentida e grata homenagem a uma grande Professora, a Dr.ª Teresa Monteiro, que a vida ainda poria no meu caminho mais outro nome a somar aos dos inesquecíveis Mestres a quem o tanto que devo é tudo. Eram três: ela, Dr.ª Teresa Monteiro, a Dr.ª Maria Helena Teixeira Ferreira (curiosamente, são grandes amigas), Vergílio Ferreira. Passaram a ser quatro, porque a Sãozinha é uma extraordinária Professora. Foi uma honra conhecê-la, foi um privilégio aprender consigo.

Flores & Flores


Na semana passada encontrei no Ikea umas adoráveis caminhas em forma de flor. Se eu fosse gato, quereria dormir numa coisa daquelas. Comprei uma para Pinxejas.

A aprovação de Messalina e Agripina foi entusiástica, tão entusiástica que fiquei consumida de remorsos e voltei lá no dia seguinte, só para comprar mais uma. Dinheiro em parte deitado à rua, porque cenas como a de cima são raras.

O dia-a-dia é isto:

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Sursum corda!

São imagens como esta que alimentam e fazem crescer ainda e sempre mais a minha imensa e incondicional admiração pela América e pelos Americanos.

Sábado, 13 de Setembro, em Anahuac, Texas. O furacão Ike acaba de passar, destruindo 98% das casas. Que fortaleza de ânimo é necessária para este gesto tão profundamente simbólico, tão carregado de significado!

Arregaça-se imediatamente as mangas. Trabalha-se, reconstrói-se. Não há tempo para lamentações, tanto há a fazer e a refazer.

E vêm-me à memória uns certos versos, magníficos, de Florbela Espanca:

«Sobre um sonho desfeito erguer a torre
Doutro sonho mais alto e, se esse morre,
Mais outro e outro ainda, toda a vida!


Que importa que nos vençam desenganos,

Se pudermos contar os nossos anos
Assim como degraus duma subida?»

Estive nos Estados Unidos um mês depois do horror que foi o 11 de Setembro. Nova Iorque, Connecticut e Florida. Não havia montra, do mais humilde deli à mais requintada loja da Rua 57 ou da Quinta Avenida, que não ostentasse orgulhosa e desafiadoramente a bandeira americana. Não vi uma casa, no Connecticut ou na Florida, que não tivesse a sua bandeira desfraldada.

Há quatro anos, aquando do furacão Frances, estava em Miami, onde ele ameaçava aterrar. Acabou por embater mais a norte, mas fez muitos estragos, ainda assim. Quando pudemos finalmente sair do hotel, a actividade por todo o lado era febril: limpava-se, reparava-se, tentava-se retomar a normalidade o mais depressa possível.

Temos tanto a aprender com a América e com os Americanos!


sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Aftermath: The Falling Man

É isto que vou ver agora. Um documentário de uma hora e onze minutos sobre uma fotografia que chocou o mundo.



quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Generosidade, bondade, grandeza de alma...

Nunca poderei deixar passar esta data em branco. Ano após ano, lembro-me. Aquilo que pressentia, como disse ao Vítor poucas horas depois (e foi por mim que ele soube da tragédia a acontecer na cidade que tanto amamos), concretizou-se. As histórias individualizadas que viriam mais tarde a lume fizeram tudo ainda mais real, mais doloroso. Mas também maior de significado.

Esta é a linda Roselle, que se recusou a abandonar Michael Hingson, o seu dono cego, quando ele, encurralado no 78.º andar de uma das torres, a libertou para que ela pudesse escapar com vida. Um gesto de amor, o dele. Recompensado com outro, que amor com amor se paga. Para Roselle, toda generosidade, bondade, grandeza de alma, AMOR, deixá-lo ali estava fora de questão. Atravessando cenários de horror que nem podemos imaginar, puxou-o para baixo, para a luz, para a vida, ao longo da via sacra que devem ter sido aqueles lances e mais lances de escadas, intermináveis de medo e angústia, SETENTA E OITO andares.

Estes são os meus heróis mais queridos, ainda antes dos agentes do NYPD e do NYFD, aqueles para quem vai todo o meu coração.

«There were plenty of dogs to make Lassie proud on that day — so many that there weren't nearly enough gifts, medals and words of praise to go around. But at an honors ceremony on March 5, the PDSA Dickin Medal and Britain's highest respects were paid to guide dogs Roselle and Salty (Dorado), who led their humans (Michael Hingson, left, and Omar Rivera, center) down the frenzied stairwells to safety just minutes before the towers fell. On behalf of all search and rescue dogs who lent their senses, Apollo and NYPD partner Officer Peter Davis, right, accepted the PDSA Dickin Medal, which is "the highest honor Britain can bestow on any animal in time of conflict or in the face of extreme danger," according to spokesperson Marilyn Rydström. The coveted award is the animals' equivalent of the Victoria Cross.» — vale a pena ler tudo aqui, ver as fotografias destes heróis, nem queiram imaginar o que isto me comoveu.

«Deixai vir a Mim as criancinhas, é delas o reino dos Céus», disse o Salvador aos Apóstolos. Aposto o que quiserem, também incluía os animais. Só podia. Ninguém mais merecedor.



quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Prioridades

1. Visitar o blogue da CoRa como ele merece e sem desesperar por demorar coisa de vinte minutos a carregar (e mesmo assim com erros, que raio de problema); isto cá em casa, que no Colosso é coisa impossível...

2. Concluir um certo trabalho para o Rafeiro.

3. Repor as fotogafias que o (...) do Blogger me apagou. Dezenas...

4. Mandar uma certa música à Luna, a propósito do seu «I guess this is goodbye» de hoje.

5. Contar a história, há muito prometida, do meu encontro com Dame Vanessa Redgrave. Já lá vão quase dois meses.

Enquanto não as concretizo... estou toda entregue ao deleite da minha prioridade maior: dar todo o mimo do mundo a Messalina e Agripina. Os meus dias de trabalho são longos, muito longos, e quando chego a casa... há sempre coisas que me são bem mais apetecíveis do que sentar-me frente ao computador.

domingo, 7 de setembro de 2008

Hair


Há um teatro em Central Park, o Delacorte Theater, que pertence ao célebre Public Theater, off Broadway, onde há sete anos, na primeiríssima noite, vimos a nossa querida menina Elaine Stritch no seu At Liberty que havia de lhe dar um havia muito merecido Tony que sempre lhe tinha fugido. Fecho os olhos e ainda a vejo, a figurinha elegantíssima aos 75 anos que tinha na época, uma camisa de seda branca e collants pretos numas pernas ainda invejáveis. Ainda rio só de lembrar a abertura, ela sempre com aquele ar mal dispostucho que é seu apanágio, a resmungar «It's like the prostitute said: it's not the work; it's the stairs». At Liberty viria a transitar para a Broadway e a ser the hot ticket in town, no ano seguinte foi para Londres e revimo-lo no querido Old Vic, ela sempre igual, aquele monstro de palco. Mas Elaine Stritch merece um post só seu (tal como Bea Arthur, por quem tenho autêntica adoração)...

Falava eu, antes da minha habitual dispersão (get to the f***ing point!, diria o Vítor), do Delacorte Theatre, este maravilhoso anfiteatro a céu aberto (não pude fotografar enquanto lá estive, nunca antes tinha encontrado regras tão draconianas, se pegássemos na máquina ou no telefone nem que fosse para fotografar a pessoa ao nosso lado, confiscavam-nos o aparelho — e assistimos a isso, já no fim, toda a gente a dançar no palco e eu lavada em lágrimas, o que também é habitual, sempre com a sacramental pergunta bichanada ao Vítor: «Estou muito borrada?» É que não há maquilhagem que resista.

Pois, dizia eu (vamos ver se é desta e me deixo de floreados), o Delacorte Theatre tem todos os Verões um festival chamado Shakespeare in the Park. Apresentam uma peça de Shakespeare (este ano é Hamlet) e uma outra peça. Os bilhetes são diariamente oferecidos, é só ir para a bicha. Lindo para os locais, que vão dormir para lá — deixo à vossa imaginação o comprimento da bicha, que vai até New Jersey... Impraticável para nós, que temos de sair daqui com tudo muito organizadinho e previamente comprado. A nossa idolatrada menina Meryl Steep é lá que tem feito teatro, no ano passado fez uma Mãe Coragem debaixo de uma chuva diluviana, haja mesmo coragem! Há sete anos fez uma Gaivota, de Tchekov, que me põe a ranger os dentes de desespero por não ter assistido.

Como foi então que pudemos ver Hair?, perguntarão vocês. É que o Vítor é um génio a descobrir coisas. É que o Vítor descobriu que se podia fazer um donativo ao teatro e se era recompensado com um bilhete. Dois donativos... dois bilhetes (com direito a escolha de data). Um bocadinho mais caro, é certo, mas há coisas que não têm preço. E posso desde já garantir-vos uma coisa: da próxima vez que nossa menina Meryl pisar aquele palco NÓS ESTAREMOS LÁ!! Não podemos morrer sem ter visto a maior actriz do mundo ao vivo!

Hair foi considerado a primeira ópera rock (ai, meu Deus! esta expressão mostra bem a minha idade!). Hair estreou no Public Theater em 1967, tinha eu seis anos, transitou depois para a Broadway, já em 1968, em Abril, e ficou famoso. O facto de ter tido uma coisa tão revolucionária como full frontal nude não terá sido o menos importante dos factores no buzz que a obra gerou. Sete anos mais tarde, no Inverno de 1975 (Fevereiro, creio) a companhia inicial esteve em Lisboa, no Monumental, fui ver duas vezes. Tinha catorze anos e nunca esqueci. O irmão mais velho de um amigo nosso tinha o disco, eu e a Clara passámos tardes a tirar as letras, sabíamos todas as músicas de cor.

O Public Theater reencenou Hair no ano passado, a comemorar os seus quarenta anos. Neste Verão foi a outra peça do Shakespeare in the Park. A produção é tão boa que diz-se que vai passar para a Broadway. À minha visão falta objectividade, porque toda eu fui e sou emoção. Chorei, chorei e chorei. Enternecida por aquela juventude assim captada, a juventude que fez a Convenção Democrática de Chicago, que apoiava Robert Kennedy e se revia em Martin Luther King — quantos sonhos desfeitos! A juventude que repudiava a guerra do Vietname, a juventude pura e inocente, imensamente comovedora. Uma juventude mais velha do que eu, que devia ter nascido, contas feitas, uns doze anos mais cedo.

Deixo-vos uma música de Hair, uma das minhas eternas favoritas. Frank Mills. Tirem-lhe as roupagens, e há coisas intemporais. Digam lá se isto não é mesmo uma cantiga de amigo... (ai flores, ai flores de verde pinho, se sabedes novas do meu amigo...).

A interpretação de Allison Case deste Frank Mills foi pura magia. Nova, nova, meu Deus, tão nova! Frágil e triste. E inocente, tão inocente! Naquela noite voei para trás no tempo e voltei a um tempo que, não sendo meu, sinto muito como meu. Quando sair o disco (e acredito que sim, que vai haver disco) estou compradora. Agora só vos posso oferecer a versão original, pela qual me apaixonei há mais de trinta anos. Ah! Já me ia esquecendo! Uma desconhecida chamada Diane Keaton integrava esta companhia inicial.


Frank Mills
I met a boy called Frank Mills
On September twelfth right here
In front of the Waverly
But unfortunately
I lost his address

He was last seen with his friend,
A drummer, he resembles George Harrison of the Beatles
But he wears his hair
Tied in a small bow at the back

I love him but it embarrasses me
To walk down the street with him
He lives in Brooklyn somewhere
And wears this white crash helmet

He has gold chains on his leather jacket
And on the back is written the names
Mary
And Mom
And Hell's Angels

I would gratefully
Appreciate it if you see him tell him
I'm in the park with my girlfriend
And please

Tell him Angela and I
Don't want the two dollars back
Just him!

sábado, 6 de setembro de 2008

Querido, querido Pavarotti!

Faz hoje um ano que partiu. A Gota de Ran Tan Plan faz hoje dois anos, mas que importância tem isso? O dia 6 de Setembro agora vem-me sempre à memória associado à morte do gigantesco Luciano Pavarotti. Larger than life... Maior do que a vida, sim. Por ser maior do que a morte, ao continuar tão vivo na voz milagrosa que os discos nos deixaram.

É por a música ser na minha vida um imenso amor, talvez o maior de todos (livros e bichos são sérios rivais, tão sérios que não sei a qual dar a primazia), que amo tanto a voz de Pavarotti e até sou capaz de fechar os olhos às tristes coisas que fez nos últimos anos — reencontro-o sempre nos discos e reconcilio-me com ele.

Escolhi pôr aqui hoje, para lembrar a alguns e para apresentar a quase todos, a Bohème mais mítica de todas as Bohèmes, a de Karajan. Pavarotti é Rodolfo, o poeta. A sua amiga querida de toda a vida (quase a sua Teresa, se ele se chamasse Vítor), a maravilhosa Mirella Freni, é Mimì. Já falei desta cena há quase um ano, aqui — leiam, se vos apetecer: esta é provavelmente a mais arrebatadora cena de amor da história da Ópera e capta essa coisa fugaz que é o nascimento de um amor. Primeiro ele, a seguir ela, em duas árias sublimes. Depois as vozes dos dois unem-se num dueto de felicidade tão grande que parece impossível. Todos queremos um amor assim, por muito mal que possa acabar.

Dois breves apontamentos:

1. Sobre a primeira frase da ária de Rodolfo, Che Gelida Manina, lembro-me de ter lido há muitos anos, na autobiografia de Pavarotti, sobre a dificuldade extrema de a cantar.

2. Na ária de Mimì (Sì. Mi Chiamano Mimì) a minha adorada Mirella Freni canta como mais ninguém a frase mágica «Ma, quando vien lo sgelo, il primo sole è mio

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

I NY

É uma paixão, pronto. Uma paixão que só não se reacende quando volto... porque está sempre presente, sem nunca se extinguir.

Cinco dias são muito pouco para Nova Iorque, tão inesgotável a cidade é. Um exemplo: queríamos ir à Frick Collection, mas descobrimos entetanto que estava uma grande exposição de Dalí (que adoramos) no MoMA. Mudança de planos, claro. A exposição, afinal, revelou-se um tanto decepcionante. Mas esse é o género de conclusão a que apenas se pode chegar... indo ver.

Na primeira manhã, apesar de na véspera me ter deitado tardíssimo (comemoração dos meus anos, aproveito por agradecer a todos os que me telefonaram ou mandaram mensagens), nada me conseguiria manter na cama. Às sete horas já deambulava pelas ruas, feliz só por estar ali. Feliz? Muito mais do que meramente feliz: em estado de graça. Dei um longuíssimo passeio de mais de três horas, iniciado com a obrigatória paragem no Starbucks mais próximo, logo ao virar para a Rua 57. De café na mão — haverá muitas imagens mais nova-iorquinas? —, deambulei pelas ruas e avenidas, a alma em festa.

Foram cinco dias em que andámos quilómetros — de tal maneira que eu, rapariga previdente, e aproveitando as vantagens indiscutíveis das carteiras onde cabe este mundo e o outro, levava a postos as minhas sandálias de combate, descalçando as sandálias mais desconfortáveis mal saía do restaurante de arromba onde tínhamos ido almoçar ou jantar. Na fotografia ao lado, por exemplo, tirada na Broadway, já perto de Times Square, já estava com uns bons trinta quarteirões palmilhados desde o restaurante, o FA-BU-LO-SO Buddakan (espreitem e façam o tour, aparece no filme Sex & The City). Estes simpáticos membros do NYPD fizeram questão de posar comigo quando, enquanto esperava à porta do Starbucks que o Vítor trouxesse os cafés, perguntei se os podia fotografar. Nada disso! Um deles tomou-me logo a máquina e atirou-me para o meio dos colegas. Uns amores!

Cinco dias fantásticos, que voaram, em suma. Do teatro, das coisas que vi, falarei noutro dia. Agora ponho só aqui duas músicas que para mim e para o Vítor são o resumo mais que perfeito do que vivemos. E não só nesta viagem... O I've Loved These Days é muito, muito abrangente, e nele cabem também as outras três: as Montanhas Rochosas, Londres e Miami. A música diz-nos muito, dir-nos-á sempre muito, até por fazer parte do extraordinário Movin' Out, que tivemos o privilégio de ver há cinco anos, também em Nova Iorque, claro — seguramente o mais assombroso espectáculo de dança que vi em toda a minha vida, uma história dançada criada em redor das músicas de Billy Joel, coreografia da grande Twyla Tharp a ganhar um Tony. (o equivalente ao Oscar, para o Teatro). Inesquecível.