segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Giuditta Pasta, deliberadamente sem-abrigo

Já a conheço desde o princípio do Verão. É uma gatinha encantadora, adorável de meiguice. Anda sempre nas redondezas do restaurante em que almoço quase todos os dias e que é uma espécie de cantina do Colosso. O restaurante chama-se Prima Pasta, daí ao nome que dei à pequenina foi um passo muito curto. Giuditta Pasta foi a criadora do papel de Norma, uma das personagens mais complexamente reais da história da Ópera. Norma é também uma ópera pela qual mantenho uma inabalável paixão, que nunca consigo esgotar, que me faz sempre chorar quando o choro me é desesperadamente necessário e não sei onde ir buscar as lágrimas. Com o Concerto para Violino de Tchaikovski e o Requiem de Mozart tenho um trio imbatível e a choradeira é garantida. Nunca falha.

Eu e e a Teresa, empregada do restaurante e já uma boa amiga, afeiçoámo-nos à Pasta. Conhece-nos, corre para nós quando a chamamos, dá-nos turras e marradinhas nas pernas. Com a chegada do Inverno começámos a ficar mais preocupadas. Urgia encontrar uma solução para a Pasta, e quanto antes. Nem era tanto a questão do frio e da chuva, o que nos angustiava mais era ser uma gatinha tão meiga, vítima fácil para gente má (e há mesmo muita gente capaz de fazer mal a gatos, acreditem). Trazê-la eu para casa estava fora de questão, já tenho estas duas feras que não há maneira de se entenderem (culpa de Agri). Levá-la a Teresa também não era opção, tem um Garfield de personalidade complicada. Falei com o Van Dog, entre os três montámos uma operação de resgate.

O que se segue é surreal. O Van Dog arranjou uma FAT (família de acolhimento temporário, para quem não saiba), eu levei uma transportadora para o restaurante, para tentarmos caçar a linda Pasta. A primeira tentativa correu muito mal. Ela já me conhece tão bem e confia tanto em mim que atraí-la não foi difícil. A Teresa estava com a transportadora a postos. Ia correr tudo bem, não ia? Não. Não correu nada bem. A Teresa, no momento decisivo, quando eu agarrei na Pasta e tentei enfiá-la na transportadora, enervou-se, teve medo, e o resultado foi uma gatinha em fuga e um penoso trabalho de confiança a reconquistar nos dias seguintes. O Van Dog já foi por três vezes ter comigo ao restaurante para tentarmos agarrar a Pasta.  Da última estivemos a milímetros de conseguir fechá-la na transportadora, mas a pequena deu uma reviravolta surpreendente e fugiu-nos num salto. Só iria lá de armadilha.

Nunca exaltarei suficientemente o notável trabalho de divulgação de animais em risco, ou carenciados, ou de instituições que lutam com dificuldades financeiras que o Van Dog tem feito. Foi à União Zoófila pedir uma armadilha emprestada, explicou a situação. Arrebitaram a orelha. Uma gatinha muito meiga na Baixa? Onde, exactamente? O Van Dog lá contou a história. Pois a nossa doce Pasta já foi por eles recolhida, e tiveram de a devolver à liberdade. Fechada numa casa definha, fica tristíssima, torna-se agressiva. Esterilizaram-na (bem que eu e a Teresa tínhamos estranhado que, vivendo na rua, ainda não tivesse aparecido grávida), fizeram-lhe até uma pequena marca numa orelha que permitisse identificá-la mais tarde, se fosse caso disso. A marca lá está. É mesmo ela, a nossa Pasta.

E nestas noites frias e chuvosas, com Drusi a dormir encostada a mim enquanto escrevo, penso na tonta Pasta, que prefere viver na rua, sempre em perigo, a ter o aconchego morno de um lar e o mimo garantido de um dono. E seria tão fácil encontrar-lhe dono! Mas respeitamos a escolha dela. Quem sabe? Talvez a Pasta ainda acabe por fartar-se de viver ao deus-dará.

17 comentários:

  1. Que linda história :)

    E não será a Pasta mais feliz a viver na rua? ;)

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  2. Ó David! Já viu este tempo horrível? A chuva, o frio! E ela lá fora! Pode passar-lhe um carro por cima, pode alguém fazer-lhe mal.
    Pense nas nossas princesas, tão confortáveis, compare. :(((
    Quem me dera que a Pasta um dia destes ganhasse juízo!

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  3. É uma rebelde adolescente!!!

    Mas mais vale assim mas feliz, não é? No hotel onde trabalho andam 4 gatos na rua!!! E são muito felizes! Ok, volta e meia dormem umas sonecas onde não devem e sabem bem onde é a entrada de serviço à hora das refeições... Mas acredito que vivem felizes, apesar do frio, da chuva e dos outros perigos.

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  4. Born Free :)

    Sabes, a Pasta precisava da casa da minha mae. Ela nunca teve gatos... todos os gatos a adoptaram. Tem la comida, e lareira... e eles entram e saem conforme querem. Sao gatos selvagens que ela vai esterilizando 'a medida que vao ficando mais confortaveis connosco.

    Cada vez vao saindo menos e sao todos ja gatos da familia, com ficha no veterinario, vacinas em dia, sofa com cobertor dedicado em frente 'a lareira e muitos mimos de todos nos. Vem para o colo qdo estamos ao computador, dao marradinhas e ronrons, aninham-se nas nossas curvas quando nos estiramos no sofa ao lado deles, como se tivessem nascido connosco. A minha mae 'a noite vai ao terraco chama-los pelo nome e eles aparecem para dormir em casa. A mais antiga, a Biana, e' uma siamesa (muito parecida com Messi) com mais de 20 anos, ainda caca ratinhos e passaros e oferece 'a minha mae. Dao-se bem com os nossos caes, o meu gato (de casa sempre) e os outros hospedes peludos ja residentes ha mais tempo.

    A grande maioria deles morre antes do tempo, atropelados. Mas a verdade e' que estes gatos, naturalmente de rua, sao mais felizes livres, fazendo da casa um B&B requintado, do que presos entre 4 paredes. Quando e' preciso prende-los (quando estao doentes por exemplo) acontece como a Pasta - definham e ficam agressivos.

    Nao os condeno.

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  5. David, provavelmente tem razão. Mas custa-me tanto, sabendo os horrores a que a Pasta e outros como ela estão expostos. Há pessoas muito más, acredite. E ela é uma gatinha muito pequena e muito confiante.
    Por outro lado, lembro-me do Shibui, um fabuloso restaurante japonês de Miami, e de como, quando saio, ao fim da noite, está nas traseiras uma legião de gatos espertalhões que sabem que vão ter um banquete real com aqueles esplêndidos restos. Nunca falho a visita às traseiras, é hilariante. :)))

    AEnima,
    Minha querida, o teu comentário dava um grande post, essa É que é essa. Nem faltou a referência a Messy, que me pôs logo de lágrimas nos olhos.
    Born free, sim. Disseste tudo. E sabemos do que estamos a falar.

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  6. Teresa, foi criada assim, já não se sente confortável "presa" numa casa, ainda que aí tenha todos os confortos e mimos que merece. Mas tem duas "anjas" da guarda, quiseram muitos gatinhos de rua o mesmo :)
    Lá pela minha varanda, vinda dos quintais das traseiras, aparace amiude uma menina muito parecida com a minha. Vai-nos lá visitar e roubar a paparoca da menina da casa. As duas não se dão, mas já se habituaram à presença uma da outra. Nós e a Amélie (menina da casa) até fingimos que não a vemos, quando está a rapinar o pratinho. Tem dona, mas anda mais à solta do que devia. E já percebeu que ali vivem dois totós incapazes de lhe fazer mal, e já se tornou visita da casa. Baptizei-a de Nemesis, por ser parecidíssima com a minha, mas serem inimigas (ao menos ao início).

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  7. Teresa,

    O seu amor pela ópera revela-se, mais uma vez, ao dar o nome de Giuditta Pasta a essa doce mas "libera" gatinha. Convenhamos que não é assim tão linear lembrar-se desse grande soprano do séc. XIX só porque o restaurante se chama "Prima Pasta" ;-)

    Ao ler este seu texto, ocorreu-me uma reflexão de Wagner que resolvi partilhar. Não, a motivação não vem da "Pasta", que já se percebeu ser um espírito livre e feliz, mas dessa imensa necessidade em associar os momentos da sua vida à música.

    Espero que goste.
    Um Beijo.

    "O coração tem no som o seu meio de expressão; tem na música a sua linguagem artística e reflectida. A Música é o amor do coração na plenitude da sua efervescência, o amor que enobrece a voluptuosidade, que humaniza o pensamento (...)"

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  8. I.,
    Tenho uma história muito parecida com a da Nemesis (grande nome!), a do Gato Branco de Cascais, a ver se a conto aqui. O Gato Branco também me entrava pela janela e ia direito aos pratos das Pinxejas. Não interferíamos.
    Infelizmente, a história tem um final muito triste.

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  9. Margarida,
    Para mim associar o nome da grande Giuditta Pasta ao restaurante, ao querer baptizar a gatinha, foi imediato. :)

    Não conhecia esse pensamento de Wagner, personagem complexa e de quem não é nada fácil gostar, não obstante a genialidade musical. Mas não posso deixar de concordar, tamanho o meu amor pela Música e o espaço que ela ocupa na minha vida.
    Sabe certamente (não preciso de ensinar a missa ao vigário) que Bellini, passado o apogeu do bel canto, teve muitos detractores. Não Wagner, que o defendeu sempre. Wagner admirava Bellini e gostava muito da sua música.

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  10. P.S. Margarida, gostei muito da referência subtil à Traviata. :)))))

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  11. A gata que aparece no meu quintal tem o mesmo comportamento. Já desisti, agora limito-me a deixar-lhe comida e esperar vê-la todas as manhãs.
    E já agora, as minhas referências são outras: esta bela história recordou-me a fábula de La Fontaine, O Cão e o Lobo :)

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  12. Também me lembro dela de vez em quando. E também acho que está no sítio certo, apesar de tudo...

    É bom saber que, neste mundo em que tantos animais precisam de ajuda, esta gatinha teve quem se preocupasse com ela e lhe tentasse dar um lar e, antes, quem a recolhesse, esterilizasse e respeitasse a vontade dela (foi a AZP, que tem alguma relação - ainda não percebi bem qual - com a UZ).

    (e obrigado, Teresa, pelas tuas palavras - demasiado generosas)

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  13. Lalage,
    Quanto pode caber na nossa ignorância! Não conheço essa fábula de La Fontaine!!! Que vergonha! Vou já à procura!

    Van Dog,
    Só podes estar a brincar. Generosa, eu?! Quem foi que por três vezes largou tudo o que estava a fazer para ir para a porta de um restaurante longe de casa para tentar capturar a Pasta? A generosa sou eu?

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  14. Margarida,
    Será que devemos mudar o nome da Pasta para Violetta Valery? ;)

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