Giuditta Pasta, deliberadamente sem-abrigo
Já a conheço desde o princípio do Verão. É uma gatinha encantadora, adorável de meiguice. Anda sempre nas redondezas do restaurante em que almoço quase todos os dias e que é uma espécie de cantina do Colosso. O restaurante chama-se Prima Pasta, daí ao nome que dei à pequenina foi um passo muito curto. Giuditta Pasta foi a criadora do papel de Norma, uma das personagens mais complexamente reais da história da Ópera. Norma é também uma ópera pela qual mantenho uma inabalável paixão, que nunca consigo esgotar, que me faz sempre chorar quando o choro me é desesperadamente necessário e não sei onde ir buscar as lágrimas. Com o Concerto para Violino de Tchaikovski e o Requiem de Mozart tenho um trio imbatível e a choradeira é garantida. Nunca falha.
Eu e e a Teresa, empregada do restaurante e já uma boa amiga, afeiçoámo-nos à Pasta. Conhece-nos, corre para nós quando a chamamos, dá-nos turras e marradinhas nas pernas. Com a chegada do Inverno começámos a ficar mais preocupadas. Urgia encontrar uma solução para a Pasta, e quanto antes. Nem era tanto a questão do frio e da chuva, o que nos angustiava mais era ser uma gatinha tão meiga, vítima fácil para gente má (e há mesmo muita gente capaz de fazer mal a gatos, acreditem). Trazê-la eu para casa estava fora de questão, já tenho estas duas feras que não há maneira de se entenderem (culpa de Agri). Levá-la a Teresa também não era opção, tem um Garfield de personalidade complicada. Falei com o Van Dog, entre os três montámos uma operação de resgate.
O que se segue é surreal. O Van Dog arranjou uma FAT (família de acolhimento temporário, para quem não saiba), eu levei uma transportadora para o restaurante, para tentarmos caçar a linda Pasta. A primeira tentativa correu muito mal. Ela já me conhece tão bem e confia tanto em mim que atraí-la não foi difícil. A Teresa estava com a transportadora a postos. Ia correr tudo bem, não ia? Não. Não correu nada bem. A Teresa, no momento decisivo, quando eu agarrei na Pasta e tentei enfiá-la na transportadora, enervou-se, teve medo, e o resultado foi uma gatinha em fuga e um penoso trabalho de confiança a reconquistar nos dias seguintes. O Van Dog já foi por três vezes ter comigo ao restaurante para tentarmos agarrar a Pasta. Da última estivemos a milímetros de conseguir fechá-la na transportadora, mas a pequena deu uma reviravolta surpreendente e fugiu-nos num salto. Só iria lá de armadilha.
Nunca exaltarei suficientemente o notável trabalho de divulgação de animais em risco, ou carenciados, ou de instituições que lutam com dificuldades financeiras que o Van Dog tem feito. Foi à União Zoófila pedir uma armadilha emprestada, explicou a situação. Arrebitaram a orelha. Uma gatinha muito meiga na Baixa? Onde, exactamente? O Van Dog lá contou a história. Pois a nossa doce Pasta já foi por eles recolhida, e tiveram de a devolver à liberdade. Fechada numa casa definha, fica tristíssima, torna-se agressiva. Esterilizaram-na (bem que eu e a Teresa tínhamos estranhado que, vivendo na rua, ainda não tivesse aparecido grávida), fizeram-lhe até uma pequena marca numa orelha que permitisse identificá-la mais tarde, se fosse caso disso. A marca lá está. É mesmo ela, a nossa Pasta.
Nunca exaltarei suficientemente o notável trabalho de divulgação de animais em risco, ou carenciados, ou de instituições que lutam com dificuldades financeiras que o Van Dog tem feito. Foi à União Zoófila pedir uma armadilha emprestada, explicou a situação. Arrebitaram a orelha. Uma gatinha muito meiga na Baixa? Onde, exactamente? O Van Dog lá contou a história. Pois a nossa doce Pasta já foi por eles recolhida, e tiveram de a devolver à liberdade. Fechada numa casa definha, fica tristíssima, torna-se agressiva. Esterilizaram-na (bem que eu e a Teresa tínhamos estranhado que, vivendo na rua, ainda não tivesse aparecido grávida), fizeram-lhe até uma pequena marca numa orelha que permitisse identificá-la mais tarde, se fosse caso disso. A marca lá está. É mesmo ela, a nossa Pasta.
E nestas noites frias e chuvosas, com Drusi a dormir encostada a mim enquanto escrevo, penso na tonta Pasta, que prefere viver na rua, sempre em perigo, a ter o aconchego morno de um lar e o mimo garantido de um dono. E seria tão fácil encontrar-lhe dono! Mas respeitamos a escolha dela. Quem sabe? Talvez a Pasta ainda acabe por fartar-se de viver ao deus-dará.
Que linda história :)
ResponderEliminarE não será a Pasta mais feliz a viver na rua? ;)
Ó David! Já viu este tempo horrível? A chuva, o frio! E ela lá fora! Pode passar-lhe um carro por cima, pode alguém fazer-lhe mal.
ResponderEliminarPense nas nossas princesas, tão confortáveis, compare. :(((
Quem me dera que a Pasta um dia destes ganhasse juízo!
É uma rebelde adolescente!!!
ResponderEliminarMas mais vale assim mas feliz, não é? No hotel onde trabalho andam 4 gatos na rua!!! E são muito felizes! Ok, volta e meia dormem umas sonecas onde não devem e sabem bem onde é a entrada de serviço à hora das refeições... Mas acredito que vivem felizes, apesar do frio, da chuva e dos outros perigos.
Born Free :)
ResponderEliminarSabes, a Pasta precisava da casa da minha mae. Ela nunca teve gatos... todos os gatos a adoptaram. Tem la comida, e lareira... e eles entram e saem conforme querem. Sao gatos selvagens que ela vai esterilizando 'a medida que vao ficando mais confortaveis connosco.
Cada vez vao saindo menos e sao todos ja gatos da familia, com ficha no veterinario, vacinas em dia, sofa com cobertor dedicado em frente 'a lareira e muitos mimos de todos nos. Vem para o colo qdo estamos ao computador, dao marradinhas e ronrons, aninham-se nas nossas curvas quando nos estiramos no sofa ao lado deles, como se tivessem nascido connosco. A minha mae 'a noite vai ao terraco chama-los pelo nome e eles aparecem para dormir em casa. A mais antiga, a Biana, e' uma siamesa (muito parecida com Messi) com mais de 20 anos, ainda caca ratinhos e passaros e oferece 'a minha mae. Dao-se bem com os nossos caes, o meu gato (de casa sempre) e os outros hospedes peludos ja residentes ha mais tempo.
A grande maioria deles morre antes do tempo, atropelados. Mas a verdade e' que estes gatos, naturalmente de rua, sao mais felizes livres, fazendo da casa um B&B requintado, do que presos entre 4 paredes. Quando e' preciso prende-los (quando estao doentes por exemplo) acontece como a Pasta - definham e ficam agressivos.
Nao os condeno.
David, provavelmente tem razão. Mas custa-me tanto, sabendo os horrores a que a Pasta e outros como ela estão expostos. Há pessoas muito más, acredite. E ela é uma gatinha muito pequena e muito confiante.
ResponderEliminarPor outro lado, lembro-me do Shibui, um fabuloso restaurante japonês de Miami, e de como, quando saio, ao fim da noite, está nas traseiras uma legião de gatos espertalhões que sabem que vão ter um banquete real com aqueles esplêndidos restos. Nunca falho a visita às traseiras, é hilariante. :)))
AEnima,
Minha querida, o teu comentário dava um grande post, essa É que é essa. Nem faltou a referência a Messy, que me pôs logo de lágrimas nos olhos.
Born free, sim. Disseste tudo. E sabemos do que estamos a falar.
Teresa, foi criada assim, já não se sente confortável "presa" numa casa, ainda que aí tenha todos os confortos e mimos que merece. Mas tem duas "anjas" da guarda, quiseram muitos gatinhos de rua o mesmo :)
ResponderEliminarLá pela minha varanda, vinda dos quintais das traseiras, aparace amiude uma menina muito parecida com a minha. Vai-nos lá visitar e roubar a paparoca da menina da casa. As duas não se dão, mas já se habituaram à presença uma da outra. Nós e a Amélie (menina da casa) até fingimos que não a vemos, quando está a rapinar o pratinho. Tem dona, mas anda mais à solta do que devia. E já percebeu que ali vivem dois totós incapazes de lhe fazer mal, e já se tornou visita da casa. Baptizei-a de Nemesis, por ser parecidíssima com a minha, mas serem inimigas (ao menos ao início).
Teresa,
ResponderEliminarO seu amor pela ópera revela-se, mais uma vez, ao dar o nome de Giuditta Pasta a essa doce mas "libera" gatinha. Convenhamos que não é assim tão linear lembrar-se desse grande soprano do séc. XIX só porque o restaurante se chama "Prima Pasta" ;-)
Ao ler este seu texto, ocorreu-me uma reflexão de Wagner que resolvi partilhar. Não, a motivação não vem da "Pasta", que já se percebeu ser um espírito livre e feliz, mas dessa imensa necessidade em associar os momentos da sua vida à música.
Espero que goste.
Um Beijo.
"O coração tem no som o seu meio de expressão; tem na música a sua linguagem artística e reflectida. A Música é o amor do coração na plenitude da sua efervescência, o amor que enobrece a voluptuosidade, que humaniza o pensamento (...)"
I.,
ResponderEliminarTenho uma história muito parecida com a da Nemesis (grande nome!), a do Gato Branco de Cascais, a ver se a conto aqui. O Gato Branco também me entrava pela janela e ia direito aos pratos das Pinxejas. Não interferíamos.
Infelizmente, a história tem um final muito triste.
Margarida,
ResponderEliminarPara mim associar o nome da grande Giuditta Pasta ao restaurante, ao querer baptizar a gatinha, foi imediato. :)
Não conhecia esse pensamento de Wagner, personagem complexa e de quem não é nada fácil gostar, não obstante a genialidade musical. Mas não posso deixar de concordar, tamanho o meu amor pela Música e o espaço que ela ocupa na minha vida.
Sabe certamente (não preciso de ensinar a missa ao vigário) que Bellini, passado o apogeu do bel canto, teve muitos detractores. Não Wagner, que o defendeu sempre. Wagner admirava Bellini e gostava muito da sua música.
P.S. Margarida, gostei muito da referência subtil à Traviata. :)))))
ResponderEliminar"Sempre libera degg'io" :D
ResponderEliminarA gata que aparece no meu quintal tem o mesmo comportamento. Já desisti, agora limito-me a deixar-lhe comida e esperar vê-la todas as manhãs.
ResponderEliminarE já agora, as minhas referências são outras: esta bela história recordou-me a fábula de La Fontaine, O Cão e o Lobo :)
Também me lembro dela de vez em quando. E também acho que está no sítio certo, apesar de tudo...
ResponderEliminarÉ bom saber que, neste mundo em que tantos animais precisam de ajuda, esta gatinha teve quem se preocupasse com ela e lhe tentasse dar um lar e, antes, quem a recolhesse, esterilizasse e respeitasse a vontade dela (foi a AZP, que tem alguma relação - ainda não percebi bem qual - com a UZ).
(e obrigado, Teresa, pelas tuas palavras - demasiado generosas)
Lalage,
ResponderEliminarQuanto pode caber na nossa ignorância! Não conheço essa fábula de La Fontaine!!! Que vergonha! Vou já à procura!
Van Dog,
Só podes estar a brincar. Generosa, eu?! Quem foi que por três vezes largou tudo o que estava a fazer para ir para a porta de um restaurante longe de casa para tentar capturar a Pasta? A generosa sou eu?
Margarida,
ResponderEliminarSerá que devemos mudar o nome da Pasta para Violetta Valery? ;)
E, porque não, Violetta Pasta? ;)
ResponderEliminarNão há nada melhor que a LIBERDADE!!!
ResponderEliminarAdorei a história.