Sei Lá - parte II
A nossa estimada Margarida Rebelo Pinto até pode ter um livrinho chamado Não Há Coincidências, pero que las hay...
Ora vejamos. No sábado à tarde passei pela loja de quinquilharias que há perto de minha casa. À porta, como sempre, um escaparate de livros usados. A que, como sempre, deitei uma olhadela. Entalado entre um Harold Robbins qualquer e um livro juvenil de uma colecção que, mesmo ainda adolescente, sempre desdenhei, lá estava essa obra de subido recorte literário que é Sei Lá. Vi naquilo um sinal do destino e, depois de verificar o número da edição (era a 7.ª), paguei sem regatear os 50 cêntimos que me eram pedidos. As coisas que uma pessoa não faz pelo rigor científico de uma investigação! As coisas que eu não faço pelos meus prezados leitores! Até comprar um livro de Margarida Rebelo Pinto, co'a breca!
Ainda no sábado, recebi à noite um e-mail de uma leitora, de seu nome Susana, que me contava que a seguir à leitura da primeira edição de Sei Lá tinha escrito à autora a alertá-la (jocosamente, é certo, mas convenhamos que era irresistível) para esse portento de um fim-de-semana com dois sábados — ou dois domingos, tanto faz. Para sua grande surpresa recebeu, pouco tempo depois, uma carta manuscrita de Margarida Rebelo Pinto (na altura ela ainda tinha, pelo menos aparentemente, alguma humildade, como aponta a Susana) a dizer que o erro seria corrigido na edição seguinte. E a Susana concluía filosoficamente que «Nunca deixou de me surpreender como tal coisa passou em branco, sempre achei que ninguém conseguiu ler o livro até ao fim antes de ser publicado.»
Pois, meus bons amigos, munida que estou agora da 7.ª edição, posso dizer-vos abalizadamente que não senhores, que o erro não foi corrigido nas seis edições seguintes, pelo menos. O erro e os erros, os muitos erros. A minha sorte é Deus ter-me dado este olho imediato (quantas vezes odiosamente incómodo) para a asneira escrita, que parece que até pisca com uma intensidade de lâmpada de mil watts mal abro um livro, uma revista, um jornal ou um blogue, em menos de um quarto de hora detectei uma quantidade muito respeitável — tão grande como a falta de respeito que as letras da autora me merecem.
A 7.ª edição, revista por um senhor chamado Manuel Luís Evangelista, tem pérolas como estas que digitalizei e agora vos apresento.
Esta, como sabem, faz o meu enlevo. A Guidinha que experimente ir aos Preciados de Badajoz (esta minha veia saudosista é incorrigível, já não existem Preciados vai para mais de vinte anos) e pedir uns cremes na perfumaria, a ver a cara de incompreensão das asistentas. Creme, em castelhano, é um substantivo feminino. Las cremas, Guidinha, las cremas. ¿Vale?
Tenho para mim que, se não conhecemos uma língua, é mais prudente abstermo-nos de a usar, nem que seja nas interjeições mais curtas, como voilà — passo a vida a ler voilá em blogues, e rio sempre. A ignorância tem a mania pérfida de se autodenunciar. Mas mais grave, muito mais grave, é quando a ignorância diz respeito à nossa própria língua. A Guidinha escreveu duas vezes (pelo menos, foram as que encontrei) esse magnífico adjectivo tão do agrado da imprensa nacional e dos bloggers: solarengo. Por duas vezes o revisor achou bem e deixou passar, e tão criminoso é o que assalta a vinha como o que fica de guarda.
E, convenhamos, dizer de um andar que, além de espaçoso, é também solarengo, é uma autêntica «contradição em termos» (nem imaginam como deliro com esta tradução, tantas vezes encontrada, da expressão «a contradiction in terms»).
Querem mais? Pois há mais, claro que há mais. E muito mais haveria por certo, tivesse eu tido paciência e não tivesse coisas de qualidade para ler. Fiquem só com mais esta, que dispensa comentários, tão medonha é.
O meu rigor científico poderia ter-se dado por satisfeito e ficado por aqui, mas a optimista incurável (ou ingénua, nem sei bem) que há em mim persistia na esperança de que edições posteriores — que houve seguramente, porque esta 7.ª é ainda de 1999 — tivessem dado uma boa varredela em tão vasto estendal de asneiras. Gastar mais dinheiro estava fora de questão, evidentemente, ir a uma livraria de propósito também, restava-me procurar na Internet. Procurei e encontrei aqui uma outra edição, podem consultar e corroborar as minhas conclusões.
Pois esta 14.ª edição, de 2009, foi revista por um outro senhor, chamado Henrique Tavares e Castro. A questão do fim-de-semana de três dias foi sanada com um providencial feriado a somar-se ao sábado e ao domingo, aleluia! Apraz-me igualmente dizer que aqueles dois solarengos passaram a ensolarado o primeiro (pág. 113 do pdf) e soalheiro o segundo (pág. 115).
Já o resto, lamento lamentar, permanece igual. Os cremes não passaram a cremas, aquele vêm pavoroso não passou a vêem.
Numa adaptação muito livre de A Ceia dos Cardeais, só apetece dizer «Como é diferente a literatura em Portugal!»
Isto é mesmo caso para dizer: que é que as editoras estão a fazer, que ainda não te contrataram? Talvez fosses mais cara que os outros (não sei, mas calculo que quem trabalhe tão mal receba um pagamento correspondente) mas pelo menos ficavam com o trabalho bem feito.
ResponderEliminarFica sabendo que há tempos, logo a seguir a ter publicado um post sobre um livro, enviei à editora um mail a oferecer os meus préstimos. Nem ao trabalho de responder a acusar a recepção se deram.
ResponderEliminarO post era este:
http://gotaderantanplan.blogspot.pt/2014/02/da-traducao-e-da-revisao.html
"Para quem é, bacalhau basta!" E pronto. Se considerar que esta coisa é best-seller... para quê ter bons revisores, ou até, publicar quem escreve coisas de jeito? Quem vai ler? E acho que a Teresa, ao fim e ao cabo, era capaz de ser um bocado incómoda.
ResponderEliminarPois é, Ernesto. Mas onde fica o respeito por quem paga os livros depois? Não merecem ler uma coisa limpa?
Eliminarso·la·ren·go 2
ResponderEliminar(solar, relativo a sol + -engo)
adjectivo
[Informal] O mesmo que soalheiro.
"solarengo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/solarengo [consultado em 01-04-2014].
Aceite um conselho: não confie muito no Priberam. Pessoalmente, só recorro a ele para verificar coisas básicas, como a ortografia de uma palavra, até quanto ao género dos substantivos não é muito de fiar, e já lá encontrei grandes asneiras.
EliminarJá o Ciberdúvidas, integrado por pessoas que sabem mais de Português a dormir do que eu hei-de saber em toda uma vida bem acordada, é da maior confiança.
Espreite aqui:
http://www.ciberduvidas.com/pergunta.php?id=14303
Não conhecia este blogue,vim aqui parar por acaso e ainda bem:) ganhou uma leitora e este post em específico conquistou me..
ResponderEliminarPois seja bem-vinda. :)
EliminarÉ engraçado como a embirração pela MRP consegue congregar pessoas, não é?
Eu já convivi bem de perto com um editor e posso afirmar que a maioria destes livros tem uma revisão às três pancadas. Até eu servi de revisora para desenrascar, e sou economista...
ResponderEliminarA mais gira de todas foi um livro que na 1ª edição acabou sem a última palavra. Ou melhor, não acabou.
Eu tenho algures um livro de Truman Capote, Música para Camaleões, editado pela Bertrand (editora de grande prestígio, note-se), que tem um erro medonho logo na primeira linha. Sim, leu bem: primeira linha. Qualquer coisa como um "à" que devia ser "há". Confesso que não me lembro, terei de procurar o livro.
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