Espírito natalício e outras bonitas histórias
O post da Luna sobre o chico-espertismo dos portugueses, que têm geralmente o horroroso hábito de tentar passar à frente dos outros nas bichas (eu continuo alegremente a dizer bicha, que era como dizia antes de sermos invadidos pelas novelas brasileiras, e daí não arredo pé, mas a Luna já nasceu uns quatro anos depois disso), trouxe-me à memória duas histórias antigas que bem ilustram outra muito feia característica nacional: a falta de generosidade.
A primeira passou-se lá por 1995, poucos dias antes do Natal, altura em que costumam imperar a concórdia e a benevolência, you'd think. Era um fim de tarde chuvoso de sexta-feira e eu estava pacientemente no Campo Grande, junto ao estádio, na bicha para os táxis, mais de vinte pessoas à minha frente. Aquilo prometia ser coisa demorada, a cada táxi que chegava eu rezava para que levasse, pelo menos, umas duas pessoas, a ver se me despachava. Como tal, estava com os olhos postos no princípio da bicha. E foi assim que reparei numa rapariga que vinha for aí fora, a dizer umas palavrinhas a cada pessoa para logo passar à seguinte. Percebi que estava a pedir que lhe cedessem o lugar, claro. Pois não houve nem uma só que tivesse a simpatia e a generosidade de a deixar furar. Quando chegou a minha vez, já desesperada, disse-me que estava a estudar em Lisboa, ia passar o fim-de-semana a Santarém, com a família, e que estava em risco de perder o comboio se não saísse dali o mais depressa possível. Dei-lhe o lugar, evidentemente. Mas não sem refilanço de duas ou três pessoas atrás de mim, que deram pela manobra. Confesso que foi com bastante mau modo que me virei e disse qualquer coisa como «tantos embrulhos com presentes, tanto espírito natalício, e não podem deixar passar uma pessoa à vossa frente?» A coisa ficou por ali, a miúda lá conseguiu enfiar-se num táxi, e fiquei a torcer para que conseguisse chegar a tempo ao comboio.
A segunda história passou-se uns anos mais tarde, acho que lá por 2000. Também sexta-feira à tarde. Na Abrunheira havia uma única caixa de multibanco, como tal, quando fui levantar dinheiro tinha umas cinco ou seis pessoas à frente. E aparece um homem novo, aí dos seus trinta anos, ar eslavo, seria russo, ucraniano, qualquer coisa assim, com uma nota de cinco contos na mão. A mesma coisa, começou na primeira pessoa e chegou até mim. Precisava de carregar o telefone. Eu conhecia muitos casos assim, a minha empresa, que era de construção civil, tinha muitos trabalhadores russos e moldavos, principalmente. E quase nunca tinham conta bancária, costumavam receber em dinheiro. Concordei, carreguei-lhe o telefone, ele deu-me o dinheiro e cada um foi à sua vida, com votos recíprocos de bom fim-de-semana.
Umas semanas mais tarde, num domingo de manhã, saio de casa para vir à Missa a Lisboa, a S. João de Deus, como era meu hábito, e tenho a muito desagradável surpresa de ver um pneu em baixo. Um furo. Ora bem, eu sei resolver o problema, sei mudar uma roda. Teoricamente. Sei pôr o macaco, elevar o carro, essas tretas todas. O problema, o grande problema, é que não tenho força nenhuma. Não consigo começar sequer a desapertar o primeiro parafuso, nem que me ponha aos saltos em cima da chave de cruz.
E ali estava eu, numa rua em que passava um cão de vez em quando (só havia dois prédios baixos, o meu e outro, tudo o mais eram moradias), enrascada sem remédio. E nisto passam dois homens a pé. Fiz-lhes um sorriso suplicante de donzela desvalida, a apontar para a roda: «Seria que podiam dar-me uma ajuda?»
Aproximaram-se. Um deles olhou de frente para mim, sorriu e disse num português com acento eslavo carregadíssimo: «senhora pagou-me o telefone!»
Só então o reconheci, e foi uma sorte que ele me tenha reconhecido também. Mudaram-me a roda enquanto o diabo esfrega um olho. Só pergunto a mim mesma se teriam tido a mesma boa vontade caso eu fosse uma daquelas pessoas que se tinham recusado a carregar-lhe o telefone. Lá diz o povo, e com razão: «faz o bem sem olhar a quem.» Gosto muito da sabedoria popular.
Uma das coisas que também tenho reparado e que acho de superior crueldade é ninguém dar o lugar a uma grávida na fila para a casa de banho - eu dou sempre, que sei que é para elas um suplício ter de esperar.
ResponderEliminarFazer isso a uma grávida, então, é inqualificável.
ResponderEliminarSeremos nós as anormais? É que parece. Eu, então, dou o lugar no autocarro ou no metro a toda a gente, não é preciso que me peçam, seja grávida, pessoa de idade (que não precisa de ser muita) ou pessoa com criança. Cambada de gente de maus fígados!
What goes around comes around. É das coisas mais certas que existe nesta vida.
ResponderEliminarOlha que não acho. Já vi demasiadas vezes ao cra´pulas continuarem alegremente impunes.
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