quinta-feira, 1 de março de 2012

Uma vergonha desgraçada

Qualquer mecanismo de autodefesa do meu subconsciente deve ter sepultado o episódio que vou contar no mais fundo da memória, tanto que só há duas ou três semanas ele reemergiu, quando o D. mo lembrou. 

Ao contrário de muitos adolescentes, atravessei a idade do armário em perfeita serenidade e sem necessidades patetas de afirmação. Os críticos 13, 14 e 15 anos foram por mim vividos na medida certa, tudo a chegar no tempo devido, sem querer vestir roupa que me fizesse mais velha, sem pretensões a pintar-me (coisa que, em boa verdade, só começaria a fazer lá pelos 18 ou 19 e, mesmo assim, sem passar de um rímel e de um gloss, o famoso só brilho da Max Factor, tão difícil de encontrar e que já só as pequenas da minha idade lembrarão). E sem fumar, que era quase a marca registada de promoção a crescido aos olhos parvinhos dos adolescentes. Fumar dava estatuto, dava pose, dava outro ar. Da minha turma de quinto ano, todos com 14 anos, alguns dos rapazes fumavam, das raparigas, que me lembre, só uma ou duas. No ano seguinte, com a transição para o pátio Sul, o dos mais velhos, verifiquei surpreendida que havia de repente muito mais raparigas a fumar. Mantive até muito tarde um ar muito infantil e a maior parte das minhas colegas (mas não as minhas maiores amigas) parecia agora muito mais velha do que eu. O primeiro namoro viria justamente no fim desse sexto ano, eu ainda nos 15 e com ar enfezado de miúda que ainda não acabou de crescer. O D. fumava às vezes, raramente. Eu não. O mesmo para o sétimo e último ano do liceu. Na viagem de finalistas, eu e a Vanda, sempre rodeadas por um bando de uns seis ou sete rapazes, todos fumadores, continuávamos desinteressadas de cigarros. Que nos eram oferecidos com frequência e que recusávamos sempre. Quanto à Vanda não sei, mas eu, entre outras razões poderosas, recusava porque não sabia fumar.

Não perguntem agora o que terá passado por esta tonta cabecinha de 16 quase 17 anos para decidir que tinha de aprender a travar o fumo, mais que não fosse para não fazer tristes figuras de principiante se alguma vez aceitasse um cigarro. Suponho que tenha sido um ataque agudo e um pouco tardio de parvoíce adolescente. Seja como for, já nas férias, na época de exames (eu ia a exame a Filosofia e a Introdução à Política, às restantes cadeiras tinha dispensado), resolvi iniciar a minha auto-educação tabagística. Comprei um maço de cigarros (catorze escudos, sete cêntimos em moeda actual) e sentei-me frente ao espelho, a tentar perceber como diabo se engolia o fumo. Andei nisto uns dias, no gira-discos sempre o mesmo disco a tocar, Help!, dos Beatles, que eu não tinha e o querido João Viegas me tinha emprestado. Fiquei tonta, tive náuseas, cheguei a vomitar. Quão burra é preciso ser para ter persistido? Persisti. Aprendi a travar o fumo sem ficar agoniada como um pato moribundo. E em pouco tempo já comprava cigarros com regularidade. Tinha-me tornado fumadora, e acreditem que isto me envergonha profundamente.

Um único pormenor de não pouca importância: nada contei ao D., junto de quem, fumasse ele ou não, eu continuava alheia aos cigarros. Só pode ter sido a noção subconsciente de quão parva tinha sido. Em Setembro entrei para a Católica, ele para a Universidade Livre. Eu passava as manhãs longe dele e rodeada de novas pessoas, sendo o Vítor a única do tempo do Liceu. E fumava. Passava as tardes com o D., cinemas, lanches nas Vicentinas e na Versailles, e eu nada de tocar num cigarro — o cigarro que já me apetecia desesperadamente, viciada que já estava.

Sei que o desfecho desta história que tanto me vexa foi depois do Natal, porque lembro agora um passeio a pé e o D. a tentar sondar-me quanto a presentes de Natal e quanto ao que poderia oferecer-me e a dizer que se eu fumasse poderia dar-me um isqueiro (e suponho que não faria a coisa por menos que um Dupont, já que no Natal anterior me tinha dado um sumptuoso estojo de canetas Cross). Devo ter corado por dentro, se tal coisa é possível, e mantive-me calada.

E depois, um belo dia, fui ao Baeta cortar o cabelo ao António. Já contei aqui o que era esse ritual,  e como o pobre D. passava horas infindáveis a cirandar naquele maldito centro comercial até que me atendessem. Finalmente despachada, saio radiante e radiosa, à espera de ouvir elogios e que o cabelo estava lindo e eu uma beleza. Em vez disso encontro umas trombas ferozes e oiço apenas uma pergunta rosnada entredentes com voz furibunda, uma pergunta que me deixou gelada e fez gaguejar. «Desde quando é que a menina fuma?!»

A explicação? Muito simples. No seu deambular pelo centro, o D. tinha encontrado o Vítor com a namorada, nossa colega na Católica, e a irmã. Conversa para aqui, conversa para ali, e falam de cigarros. E a Rosário, em toda a sua inocência, lança a pergunta que desmascarou a minha omissão idiota: «A Teresa fuma Ritz, não é?» À negativa risonha do D., de que eu não fumava, ela ripostou seguríssima: «Que disparate, D.! Estamos todas as manhãs juntas na faculdade e farto-me de a ver fumar!»

Como é evidente, a fúria do D. deveu-se apenas ao facto de eu lhe ter ocultado durante tanto tempo que tinha começado a fumar (coisa que fazia em casa sem problemas). E nunca chegou a dar-me um isqueiro, qualquer isqueiro, nem sequer um Bic, quanto mais um Dupont. Suponho que terá sido para me castigar. E o castigo foi merecido.

Explicação para a banda sonora? Ainda hoje, muitas vezes, ao ouvir Help!, e tão forte é o poder evocativo da música, tal como o dos perfumes, a memória leva-me ao meu quarto cor-de-rosa e branco de adolescente e a uma miúda muito parva a tentar aprender a fumar. Às vezes a lembrança é tão nítida que é quase física. E na altura apaixonei-me por este encantador I Need You, que não conhecia.

11 comentários:

  1. O meu primeiro cigarro foi um Ritz, surripiado à minha mãe (que já na altura fumava pouquíssimo, e os maços duravam-lhe semanas, nunca notaria a falta de um). devo ser uma excepção, porque travei o fumo facilmente e pior, gostei imediatamente do sabor. Viciada logo, apesar de o negar durante uns anos. Fumo desde os 15, felizmente nunca ultrapasso a marca do meio maço por dia, e ao fim de semana ainda menos. Um médico disse-me que não sou viciada em nicotina, mas no prazer, porque consigo passar horas desde que acordo até que pego no primeiro.
    Devia deixar, pois devia.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. És melhor do que eu, apesar de já ter fumado mais do que fumo hoje, até porque deixei de sair à noite.E só deixei de fumar Ritz em 2000, quando me mudei para Sintra e de repente era difícil encontrá-lo, só mesmo em tabacarias, e aquilo era um meio muito pequeno. Foi quando passei para o Marlboro Lights.
      Diz-me cá, só por curiosidade, lembras-te do preço dos cigarros quando começaste a fumar?

      Eliminar
  2. Respostas
    1. Karocha, ainda mais pateta do que eu, portanto. Sem desculpa. Que grande asneira a nossa!

      Eliminar
  3. Eu roubei Kentucky (os famosos Mata-ratos) ao meu Avô. Pronto confesso. Não não conseguíamos roubar isso, apanhávamos barbas de milho e também se fumava.
    Ahhh, a santa inocência. :)

    (Muito boa, a prosa)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. OS Kentucky eram aqueles maços fininhos com cinco cigarros, não eram? Ainda existem?

      Eliminar
  4. Uma vez fumador(a), para sempre fumador(a), mesmo que não se fume. O vício fica lá. Eu peguei no meu primeiro cigarro aos 15 e fumei durante cerca de 13 anos. Entretanto tive o bom senso de deixar de fumar (e se eu fumava nessa altura, nunca menos de um maço) durante 5 anos. Julgava-me curada mas o bichinho ficou sempre lá. Numa altura mais atribulada da minha vida voltei a fumar, novas reviravoltas, engravidei e voltei a deixar. Actualmente tenho um maço de cigarrilhas na carteira. É o meu guilty pleasure que reservo para quando quero ter um momento só meu, em perfeita comunhão comigo. Tenho-me mantido assim há já algum tempo mas, lá está, o vício ficou cá sempre…ou eu não teria as cigarrilhas.
    PS – Mas ainda mantenho a fé em mim mesma afinal o maço de cigarrilhas já tem um ano…

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Anna, parece que o bichinho fica sempre. O meu grande amigo Vítor, que era pessoa de dois maços por dia, largou os cigarros há 16 anos e nunca mais lhes tocou. Mas ainda hoje, às vezes, ao chegar-lhe ao nariz o fumo do meu cigarro, diz que bem lhe apeteceria,

      Eliminar
  5. Gosto deste tipo de confissões nos blogues. Parecem triviais, mas, no fundo, são coisas que não largamos facilmente ;)

    Tinha 12 anitos quando tentei os meus primeiros cigarros, mas não me viciei. Fumava, muito raramente, e sem travar. Com 17, comecei "a sério", até aos 27, altura em que casei com um não-fumador. Resolvi deixar, sempre a ver quanto tempo aguentava... Até hoje!!! (Às vezes, surpreendo-me a mim mesma). E, como já lá vão quase 20 anos, posso afirmar que não voltarei a cair em tentação ;)

    ResponderEliminar
  6. Cristina, esta confissão de tamanha parvoíce até me custou, acredita. Porque é coisa que me envergonha mesmo.
    Mulher feliz, não voltes mesmo a cair em tentação!

    ResponderEliminar
  7. Agora fumo tabaco de enrolar, faço 9 cigarros quando saiu!
    Aqui com a net,dá tanto trabalho que estou a fumar menos :-)
    Também sei de quem tenha largado largado os cigarros e agora fuma charuto.

    ResponderEliminar