Uma gorjeta memorável
Referi aqui a história de passagem. Hoje apeteceu-me contá-la.
Não se espantem com a banda sonora trepidante. Era assim que as coisas funcionavam no Great American Disaster: música rápida e aos berros. Acelerava o ritmo dos empregados (eu conseguia levar quatro pratos de uma vez) e também acelerava o ritmo a que os clientes comiam. E este Enola Gay, dos Orchestral Manoeuvres in the Dark, foi seguramente uma das músicas que mais tocaram no Disaster naquele Verão de 1981.
Estava capaz de jurar que foi no sábado seguinte à inauguração. Aos sábados os clientes chegavam mais tarde, e eram mais grupos familiares. Chegou um senhor sozinho, instalou-se numa das minhas mesas (10 à 13, ainda me lembro, tal como lembro que as da Luísa eram da 5 à 9), fui atendê-lo. O senhor aconselhou-se imenso, fez imensas perguntas sobre os pratos, eu fui simpaticamente respondendo a todas as questões. Finalmente, acabou por decidir-se pelo bife da vazia, o prato mais caro da lista, 120 escudos (sim, sim, 60 cêntimos em moeda actual) e pela salada coleslaw. E lançou a pergunta da minha desgraça: «Então e para beber?»
— Bom, temos Pepsi, cerveja, sumo de laranja, água... — respondi eu.
— E vinho não?
Eu já estava naquela mesa havia imenso tempo, coisa que não contava, porque era relativamente cedo e havia muito pouco movimento. E tinha achado o senhor tão simpático que fui muito franca. Todos os vinhos eram das Caves Aliança e eu, que já achava que percebia umas coisas, não gostava de nenhum.
— Temos. Mas (baixando a voz) não recomendo nada, é uma porcaria.
O senhor pestanejou. Depois disse que arriscava — eu, sempre irreverente, ainda bichanei um «depois não diga que não avisei», acho que foram parvoíces destas que me fizeram tão popular com os clientes, até postais do estrangeiro de turistas de passagem cheguei a receber, palavra. O senhor não foi para o vinho da casa, pediu a reserva.
O resto do almoço correu normalmente, mais gente chegada entretanto, eu já com muito trabalho e a correr de mesa em mesa. E se eu corria, senhores! Ainda tenho uma caricatura deliciosa que o Carlos fez da minha pessoa, cabelos ao vento, vários pratos na mão, batatas fritas a voarem, as minhas sabrinas azuis-escuras da Sapataria Lisbonense, e uma lagarta (obviamente caída de uma salada) a rastejar atrás de mim e a protestar «espera por mim, porra!»
O senhor tinha acabado de almoçar. Era capaz de jurar que, além do café, comeu uma tarte de maçã e bebeu um whisky de malte. Chamou-me discretamente a pedir a conta, que lhe levei.
— Estava tudo óptimo, adorei, e a menina é um amor. Só não gostei de uma coisa.
Um sobressalto. Eu tinha amor à camisola (t-shirt, que pena não ter guardado nenhuma!), fiquei muito atenta.
— Não gostei daquilo que disse sobre o vinho. Sabe... eu sou o dono das Caves Aliança.
Devo ter desejado que o chão nos engolisse, a mim e à minha língua de trapos, naquele preciso instante. O senhor largou a rir. Abriu a carteira e, além do preço do almoço (que hoje é difícil calcular, mas julgo que não terá ido além dos 250 escudos), acrescentou uma bela nota azulada com a efígie de D. Maria II, uma nota de mil escudos. A minha gorjeta, pelo menos quatro vezes o valor do almoço.
As gorjetas eram democraticamente divididas por todos, os meus colegas por pouco não me transportaram em ombros, não havia memória de uma coisa assim. O senhor voltou muitas vezes ao Disaster e fazia sempre questão de ser atendido por mim, mesmo que não ficasse numa das minhas mesas.
Muito bom, é uma das raras vezes em que a honestidade mereceu recompensa. E esse senhor era um Senhor. Grande poder de encaixe, há poucos assim, tomara haver mais.
ResponderEliminarEra um Senhor, sim senhora. No Natal mandava entregar-me cabazes de Natal das Caves Aliança no restaurante. Já não o vejo há muitos anos, mas uma rápida pesquisa na Net fez-me perceber que está vivo e de boa saúde (encontrei um agradecimento recente da Paula Bobone à sua pessoa, é capaz de ter fornecido as bebidas para algum lançamento de um dos seus livros (que não vou adjectivar).
ResponderEliminarAdorei a história, Teresa. Obrigada por partilhar.
ResponderEliminarA caricatura deve ser uma graça :-)
A caricatura é uma delícia, Gi. Infelizmente é em formato A3, impossível digitalizar.
ResponderEliminarO Carlos era um artista.
Teresa, viajei no tempo...
ResponderEliminarQue bom que era ir Great American Disaster. Até fiz lá um jantar de anos.
E que história linda esta, grande senhor.
Bom fim de semana
Muito bom!
ResponderEliminarQue história tão gira! É a primeira vez que paro neste blogue para ler e estou rendida. Também gostei muito da história do ex-namorado das óperas. Brilhante ;)
ResponderEliminarMuito obrigada pelas palavras tão simpáticas, volte sempre. :)
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