segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A Most Peculiar Man (Os Discos da Minha Vida #15: Sounds of Silence)

Tenho este estranho hábito de tentar traduzir-me sempre em música. Às pessoas que diziam achar-me estranha, impenetrável, encerrada numa torre de marfim, à qual só uns quantos eleitos tinham acesso, só me apetecia dizer que eu era cristalina, bastava ouvirem certas músicas onde eu estava toda e ficavam a conhecer-me. As minhas músicas contam-me do princípio ao fim, é como nas parábolas do Evangelho: «Quem tiver ouvidos, que oiça.»

Algumas (poucas e preciosas) pessoas tiveram esse trabalho, acharam que o investimento podia valer a pena. Outras partilharam essas certas músicas comigo desde o princípio, porque também faziam parte delas.

Foi o caso do Nuno. Os meus diários, ao longo de vinte e tal anos, registam diálogos nossos, ou a sua súmula. O Nuno sabia, o Nuno sentia isto como eu, o Nuno sentia isto como seu. É assim de estranhar que fôssemos os amigos que éramos? Nem vou falar do que dói esta conjugação pretérita...

Foi hoje a Missa do primeiro ano de perda (embirro com a palavra aniversário). Saí do Colosso tarde (à hora possível), enervada, com medo de chegar atrasada, já com a preocupação antecipada de encontrar lugar para parar o carro. Liguei a telefonia, estava na Rádio Renascença e estava a começar o Terço. Embrulhada nas complicações do trânsito, dei comigo a acompanhar com todo o fervor aquele Rosário assim rezado, a dar as respostas litúrgicas de coração inteiro, com toda a convicção. Quem me visse dos outros carros devia pensar que ia ali uma tolinha a falar sozinha, pouco importava. Cheguei em cima da hora, consegui encaixar-me milagrosamente no lugar que a Mafalda, mesmo à minha frente, me apontava. Acabou por correr bem, cheguei cinco minutos antes.

Não comunguei, por razões poderosas: uma certa passagem do Evangelho segundo S. Mateus, aquele que é por mim o mais amado, em que mais me reconheço. Mais tarde, cá fora, o encontro com pessoas de sempre, a conversa sincopada com a Mafalda, que entre uma solicitação e outra me ia contando coisas dos miúdos, eu entristecida por hoje em dia saber tão pouco deles. A culpa não é minha nem dela, é só da vida, que nos afasta tantas vezes do que em nós seria o mais imediato e natural.

Soube-me bem, muito bem, o encontro com a Pituxa. Engraçado como, against all odds (duas irmãs dela a detestarem-me, uma mais do que a outra, por razões às quais sou completamente alheia), tivemos as duas, desde o princípio, uma sintonia perfeita, uma simpatia imediata que foi uma empatia. Gosto dela e acho que ela gosta de mim. Entendemo-nos sem necessidade de grande palavras, é uma coisa que flui naturalmente.

Deixei o meu carro pelintra parado, a Pituxa deixou o seu carro de luxo parado, fomos tranquilamente a pé, depois da Missa e de nos termos despedido das pessoas que contavam. A caminho da lavandaria onde eu há mais de uma semana tinha deixado um casaco a limpar, fomos comentando coisinhas pequeninas das nossas vidas, e sinto que há aqui lugar para uma bela Amizade. Não é que se tenham dito grandes coisas, é só que se sente que confiamos uma na outra. E a confiança é um grande valor! E depois, sabem, caminhar numa rua de Lisboa, num princípio de noite com cheiro de Verão tardio, com uma pessoa com quem nos entendemos bem, a seguir à Missa onde se chorou a perda de um grande Amigo, faz-nos ver as coisas com outros olhos, tudo ganha um sabor diferente. É efémera a nossa passagem. É incerto o nosso tempo neste mundo. Que maravilha é estar vivo e ter alguém a caminhar connosco e a dizer-nos coisas com significado!

Chego finalmente ao assunto do post. Ao Nuno, tão omnipresente nestes últimos dias. Nos grandes amigos que éramos cabia a divergência. Em Stendhal, eu era mais Le Rouge et le Noir, ele era mais Lucien Lewen. Em Balzac eu era toda Le Lys dans la Vallée e ele Eugénie Grandet. Ele era mais Doors, eu mais Mamas & Papas. Mas depois havia os terrenos comuns, os das nossas sempiternas obsessões. Beatles, claro, numa categoria à parte. Moody Blues, comuns aos dois. E, mais do que quaisquer outros, Simon & Garfunkel. TODOS os discos, hoje fica apenas este, de 1968 (tem quarenta anos!). Numa música que para mim, como para o Nuno, era obcecante: A Most Peculiar Man.

Ele também era isso.

Hei-de voltar a este disco da minha vida. Mais duas vezes, pelo menos.


A Most Peculiar Man

He was a most peculiar man.
That's what Mrs. Riordan said and she should know;
She lived upstairs from him
She said he was a most peculiar man.

He was a most peculiar man.
He lived all alone within a house,
Within a room, within himself,
A most peculiar man.

He had no friends, he seldom spoke
And no one in turn ever spoke to him,
'Cause he wasn't friendly and he didn't care
And he wasn't like them.
Oh, no! he was a most peculiar man.

He died last Saturday.
He turned on the gas and he went to sleep
With the windows closed so he'd never wake up
To his silent world and his tiny room;
And Mrs. Riordan says he has a brother somewhere
Who should be notified soon.
And all the people said, "What a shame that he's dead,
But wasn't he a most peculiar man?"


2 comentários:

  1. Pois... Até da comunhão nas perdas nascem belos momentos e boas amizades. Lindo post, musica que também me acompanha há anos. E coincidência ou não, ter chegado aqui através da nossa amiga em comum, justamente por uma perda mencionada é no mínimo um capricho do destino...

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  2. E antes das obrigações do dia, acabei por não resistir a espreitar o que me sugeriste.
    Bonitas memórias de amizade e uma viagem através da música. O 'Bridge' é fantástico, aqueles acordes de piano são únicos (só para mencionar uma ínfima parte da composição).
    Em finais de 70, num barzinho em Cascais onde tocava um amigo que ainda o é (dois dos assíduos também já não se encontram entre nós e, do Luís, lembro-me muito bem como das coisas importantes que, aparentemente a brincar dizia), conhecemos o engenheiro de som do Paul Simon. Era na altura um senhor chamado Jimmy Cunningham. Tocava lindamente e tinha uma voz (desculpa a heresia) melhor do que a do P.Simon (a dupla 'S&G' é que tinha sentido). Como o ambiente estava ruidoso, convidámo-lo para, no dia seguinte, vir a minha casa e, em grupo mais unido de amigos, lá ouvimos/gravámos a sua bela apresentação só para nós. Há dias encontrei a cassete e, infelizmente, já quase nada dela se ouve, 30 anos decorridos. Foi uma memorável tarde musical.

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