quarta-feira, 14 de maio de 2008

Quinze Anos

Há quinze anos estava um dia indeciso, igualzinho ao de hoje. Faz hoje quinze anos era o grande dia em que uma criança muito desejada viria a este mundo.

Uma criança que nos pregou grandes partidas. Para começar... no sexo. Toda a família, dos dois lados, queria com todas as forças uma rapariga. Eu mais do que ninguém. A ela destinei toda a minha vasta biblioteca de infância, todos os livros que me tinham feito sonhar, pensar, rir, chorar. Para ela, nos longos meses de espera, nunca comprei presentes de outra cor que não cor-de-rosa, a cor da felicidade. Para ela fui escrevendo num lindo livro forrado de um lindo tecido cor-de-rosa (evidentemente), ao longo desses meses, todas as coisas tão importantes que iam acontecendo no corpo da Mãe a guardá-la, nas nossas expectativas, nos nossos planos para ela. Para ela gravei muitas cassettes cheias de Mozart, para que desde o primeiro momento pudesse conhecer a Beleza na sua forma mais pura e elevada.

Mas a Marta, nome escolhido desde o primeiro dia (os Pais nunca puseram seriamente a hipótese de ser um rapaz) fez-nos sofrer. Só já ao virar do oitavo mês de espera, o quarto já decorado e pronto, todo cor-de-rosa, nos deu a imensa alegria da certeza da rapariguinha que em breve estaria connosco.

A outra grande partida foi o tempo em que nos consumiu em espera, esgotando todos os prazos. Eu tinha a secreta certeza de que a Marta nasceria a 12 de Maio, considerava essa data um sinal. O dia assinalado passou, e outro ainda. As minhas orações - a Primavera ia chuvosa, o terço sempre enfiado no bolso da gabardina, eu rezava a toda a hora, fosse no metro, estivesse numa paragem de autocarro ou até, lembro-me agora, de um dia de greve de transportes, em que fui a a pé da Rio de Janeiro à Rua Augusta, a rezar incessantemente enquanto caminhava - não foram agradáveis ao Senhor. Curvo-me e aceito, tal como fiz então, apesar da mágoa escondida.

A Marta só nasceria a 14 de Maio, uma sexta-feira. Um dia de emoções extremas. O médico não queria esperar mais, às oito da manhã a Mãe dava entrada na clínica e induziam-lhe o parto. Isso sim! À hora do almoço (e nem sei quantos telefonemas depois, muitas asneiras devo ter feito no trabalho!) dei lá um salto ansioso. Tudo igual. A Marta era (é) obstinada.

Às quatro e meia, ansiosa, pelos cabelos, saí porta fora. Uma última coisa a fazer antes de voar para a clínica onde tudo me reclamava, já com a Mãe prestes a ser Avó comigo: ir à ourivesaria buscar o presente pensado com amor para a minha irmã pequenina que nesse dia transpunha o limiar de uma porta que - coisa que eu ainda ignorava - a vida viria a fechar-me. Uma coisa linda, o presente! Não, não vou dizer o que foi, ainda copiavam a ideia!

A Marta só nasceria à noite, quando o Pedro Montargil decidiu que não esperava nem mais um minuto, não querendo correr riscos. Seria cesariana, já que a patifa resistia. Perguntou-me se queria assistir, podia estar uma pessoa presente. Eu assistiria, claro... se o Pai não se sentisse com forças para tal. O lugar era dele. Sentia e teve-as. Eu fiquei à porta do bloco com um amigo do Pai (quem era, Ana? Varreu-se-me!), a enrolar Avé-Marias umas atrás de outras no terço que andava sempre comigo. A certo e inesquecível momento ouvi um nada quase imperceptível, o ouvido apurado de tísica que tenho captou lá dentro qualquer coisa. Era um vagido, um resmungo de gatinho mal humorado. Logo se transformou num choro vigoroso de bebé revoltado com um meio muito menos apetecível do que aquele que até então tinha conhecido. E eu abracei-me a chorar ao amigo do Rui ali à espera comigo (mas quem era? não consigo lembrar-me). A Marta já estava connosco!

A Marta era o bebé mais bonito que vi em toda a minha vida. Muito branca e delicada (que pena não ter aqui o seu primeiro retrato, que tão bem o documenta!), a pele com a doçura tenra de uma pétala de rosa fresca de aurora, as mãos grandes e estreitas, de dedos longos e esguios, que o Avô Carlinhos viria a proclamar iguais às minhas, idem para a boca — sorte dela não lhe ter saído o nariz.

Mas esse dia de Primavera passou, outras dias de outras Primaveras passaram. A Marta foi crescendo, nem sempre igual ao que para ela tínhamos sonhado, como é natural que seja. A Marta foi uma menininha de ar grave e reflectido, quase solene, nunca de riso fácil e imediato, ao contrário da Mãe e da Tia.

A Marta, essa Marta de sonho e de espera, a Marta em que se foi mudando ao longo dos anos que foram correndo, faz hoje quinze anos. A Marta, essa Marta que é o somatório de todas essas antigas Martas, é hoje essa coisa delicada e preciosa para a qual o Proust das minhas obsessões encontrou a designação incomparável de jeune fille en fleur. Uma rapariguinha em flor. A Marta. A nossa Marta de quinze anos. A nossa Marta agora com quinze anos que começa uma longa viagem para longe de nós.

Marta, querida Marta por quem esperei, cujo quarto que foi o primeiro ninho ajudei a forrar naquele encantador papel cor-de-rosa e branco... os quinze anos são uma idade complexa e linda. Os meus, apesar de complexos, foram lindos e muito, muito felizes. Que os seus, minha querida sobrinha e afilhada, possam ser ainda mais lindos, ainda mais felizes. É agora, querida Marta já mais alta do que eu, que a vida, a sua vida, começa realmente. Eu lembro-me dos meus quinze anos, sabe? Parece que foi ontem...

«Aos quinze anos o coração já cresceu, mas ninguém repara. Não o deixam bater como devia. As crianças crescem e os adultos envelhecem. E o que faz o adolescente? Coitadinho, não tem hipótese: adolesce. Aos quinze anos, o mal é este: nem se é tratado como adulto (como se queria) nem se é tratado como criança (o que sempre consolaria). Não se é tratado. Ponto final. Os quinze anos são intratáveis. Os mais novos - a malta do armário, enfrentando o absurdo da puberdade - não têm nada, mas nada a ver. Os mais velhos olham para quem tem quinze anos como se olha para quem tem lepra. Restam apenas as outras pessoas com quinze anos, mas essas estão demasiado ocupadas com ter quinze anos para poderem reparar nas outras almas com as quais partilham tal aflição. Só apetece chorar. É o que se faz.

Chora-se muito. Aos quinze anos tudo é muito importante. É-se uma pessoa nova pela primeira e única vez na vida e o mundo, difícil e grande, percebe-se e faz-se pesar tal e qual ele é. (A partir dos dezasseis anos já não se aguenta e finge-se que é mais fácil ou mais pequeno.) Aos quinze anos tudo é muito tudo, e é tudo ao mesmo tempo. Há muitas coisas que se querem muito e sofre-se muito por não as ter e brada aos céus o quanto se precisa realmente delas e parece impossível que ninguém perceba. E é incrível como toda a gente se junta para nos impedir de alcançá-las. E é muito triste saber que há-de ser assim durante toda a vida, que é quanto dura ter quinze anos. Mas a luta continua. Aos quinze anos, tudo é muito, simplesmente. Qual simplesmente! Complicadamente. Tudo é muitíssimo. É preciso muito e é muito preciso. É tudo muito lindo e muito difícil e muito injusto e muito urgente e pronto - será isto assim tão difícil de perceber? O mundo é mesmo como se vê quando se tem quinze anos, só que acabamos por desistir de vê-lo assim, porque custa tanto. (...)

Como fazer então? Como fazer quando se tem quinze anos? A primeira indicação de guerrilha é psicológica. Mentalizem-se: quinze anos é muito tempo. É muito ano já. Ter vivido quinze anos, ter chegado, já é qualquer coisa. Parabéns. Agora chega de peneiras. A luta continua.»

Miguel Esteves Cardoso, Os Meus Problemas (adaptado) - peço humildemente desculpa ao autor, logo que tenha o livro novamente comigo farei a confrontação
Banda sonora: Julio Iglesias - De Niña a Mujer
(confesso que esta não era a música escolhida - mas o verso
«eras niña de largos silencios» pesou mais, pesou tudo)

De Niña a Mujer
Eras niña de largos silencios
y ya me querías bien
tu mirada buscaba la mía
jugabas a ser mujer.

Pocos años ganados al tiempo,
vestidos con otra piel,
y mi vida que nada esperaba
también te quería bien.

Te extrañaba ya tanto
que al no verte a mi lado
ya soñaba con volverte a ver
y entretanto te estaba inventando
de niña a mujer.

Esa niña de largos silencios
volaba tan alto que
mi mirada quería alcanzarla
y no la podía ver.

La paraba en el tiempo pensando
que no debería crecer,
pero el tiempo me estaba engañando
mi niña se hacía mujer.

La quería ya tanto
que al partir de mi lado
ya sabía que la iba a perder
y es que el alma le estaba cambiando
de niña a mujer.

5 comentários:

  1. Bom Dia Teresa.
    Palpitava-me uma manhã cinzenta e triste e eis que me deparo com esta homenagem linda a uma sobrinha e afilhada mais linda ainda ... e o dia ficou mais claro e eu menos triste.
    Parabéns para as duas!!!
    E um beijo grande pra si.
    Saudades dos 15 anos ... buáaa ... agora há que assistir aos dos meus filhos e morrer quer de pena (pelo que sofrem), de inveja (por os viverem) e de orgulho (por assistirmos)

    Pituxa

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  2. Teresa:

    Gostei tanto de ler este post. Tão cheio de amor, ternura e orgulho...
    Parabéns para a Marta.
    Beijo grande

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  3. Parabéns à sobrinha e à tia. E que inveja, por não ter sobrinhos!

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  4. Lindo, Teresinha. E as tuas sobrinhas são deslumbrantes! Pudera, saem à tia babada...

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  5. E pensar que têem toda uma vida pela frente... Se soubessem o que sabemos... será que aproveitavam mais ou se fechavam em copas como fazem os adultos em sua burra inteligência?

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