Eurovisão: os vencidos que foram vencedores #1
Cresci num tempo bem mais tranquilo em que não se via televisão à hora das refeições. O aparelho, um por família, fosse ela rica ou remediada, estava na sala. Via-se a preto e branco e só havia um canal, cuja emissão começava ao fim da tarde, lá pelas seis horas, creio, e acabava (com o Hino Nacional) pouco depois da meia-noite, às vezes antes, dependendo da programação. O segundo canal só surgiria, se a memória não me falha, lá por 1969, quando eu tinha oito anos.
Cresci num tempo em que o Festival da Canção (que na verdade, pelo menos nesse tempo, se chamava Grande Prémio RTP da Canção, mas toda a gente lhe chamava simplesmente o Festival) era um acontecimento importante. Importante? Importantíssimo! O mais importante de todos, em matéria de televisão. E era a antecâmara de um outro acontecimento de dimensão ainda maior, o Festival da Eurovisão.
O país parava, garanto. Nas ruas não se via passar um cão. No dia seguinte (nos dias seguintes, aliás) as conversas giravam todas em torno dele, Festival. Lembro-me bem da minha Mãe, em 1969, a comentar - escandalizada - com uma amiga o célebre verso da Desfolhada de Simone de Oliveira. Children will listen, razão tinha Stephen Sondheim: se não fosse essa conversa que apanhei por acaso e da qual, obviamente, não percebi patavina, nem teria reparado no tal verso - «Quem faz um filho, fá-lo por gosto» - se não a tivesse ouvido referi-lo. Fiquei com a sensação incómoda de ser aquilo uma malcriadice, a minha designação pessoal para palavras feias, que viria a ser adoptada por toda a família, que lhe achou graça.
A memória diz-me que o Festival da Eurovisão era mais ou menos por esta época do ano. Quando aparecia no ecrã o logótipo da Eurovisão e se ouvia o hino, chamava-se quem ainda não estava na sala, vinha tudo a correr. Eu, claro, já lá estava. As primeiras notas do hino (que não consegui encontrar no Limewire, alguém tem?) davam-me, confesso sem qualquer vergonha, um frémito de excitação. Havia muitos shius! a exigir silêncio, anunciávamos uns aos outros o mais que evidente «Vai começar!»
Eu torcia sempre pelo Reino Unido. Nem queiram saber da minha fúria quando Congratulations, de Cliff Richard, foi derrotado pelo La-la-la de Massiel, que ainda hoje, de aspecto, acho uma versão além-Guadiana da inefável Sendália Moreira. Em 1972, precisamente o ano com que inicio esta série de posts, vi-me perante um dilema. A música dos New Seekers, Beg, Steal or Borrow, era giríssima (achava eu), mas nesse ano a RTP brindou-nos com uma espreitadela ao que se ia ouvir, passando todas as canções na semana anterior ao Festival e fiquei conquistada pela canção do Luxemburgo. O meu francês já era suficientemente desenvolto para perceber a letra de uma ponta à outra - tirando a palavra désormais, que me fez ir ao dicionário a seguir... - e quando Vicky Leandros (no relation, que eu saiba) acabou de cantar Après Toi anunciei à minha Mãe, que não podia estar menos interessada, que aquela canção ia ganhar. E ganhou. A partir de 1976 ou 77, comecei a torcer pela Itália. As músicas de 1978 e 79 entretecem-se com a minha vida e pautaram momentos de grande felicidade.
Acompanhei o Festival até 1980, o ano dos meus vinte anos, depois desinteressei-me. Em 1990, por puro acaso, soube que Toto Cutugno ia cantar a canção italiana. Só por ele e porque lhe adoro a voz, interessei-me brevemente. Organizou-se encontro de amigos em casa da Ana, a ex-mulher do Vítor (a relação já ia em dez anos, mas ainda não estavam casados - como ela dizia com aquela graça tão só dela... «O quê? Eu deixar de viajar para pagar prestações de um frigorífico? Só se fosse doida! Cada cliente novo que me entra no escritório... vejo-o logo em formato de bilhete de avião!»), Toto Cutugno ganhou, fiquei contente e arrumei o Festival para todo o sempre. Sim, já lá vão 18 anos. Nunca mais vi, não sei nem desconfio que canções portuguesas concorreram entretanto, que canções passaram lá fora. Tenho mais que fazer.
Deixo-vos a que é a minha favorita de todas as músicas que Portugal levou à Eurovisão. Carlos Mendes, que já antes tinha cantado um medíocre Verão, redimiu-se com este A Festa da Vida. Tanto quanto sei, foi a canção portuguesa mais bem classificada na Eurovisão, com um honroso sexto lugar, talvez sétimo - tínhamos uma irresistível apetência pelos lugares do fundo. Letra de José Niza. Música de José Calvário, que eu viria a conhecer muitos anos mais tarde, pessoa das mais encantadoras que conheci (só a minha amiga Paulinha lhe ganha) e de uma lealdade a toda a prova, principalmente nos momentos difíceis, lembro-me de ele, certamente com grande transtorno, ter vindo de propósito de Londres para votar numa certa Assembleia Geral. O Rui já não está connosco, mas eu lembro-me muito bem, tenho aliás retratos dessa noite de derrota e desorientação. Só nunca me lembrei de lhe agradecer esta música, fica para a próxima vez que nos virmos. Obrigada, Zé! :)
Este teu post, T é um retrato perfeito do que aquilo era. Era igual em minha casa, aliás devia ser assim em todas a s casas. e as votações, lembras-te? Por distrito, em ligação directa, iam dando os pontos a cada canção. era uma emoção televisiva, apenas comparável, anos mais tarde, às transmissões das noites eleitorais quando a contagem de votos ainda era manual e não havia previsões certinhas logo às 7 da noite. Excelente post!
ResponderEliminarTambém me lembro muito bem de tudo isto, e até de ir assentando os votos num papel para fazer a contagem antes de todos. É inacreditável a importância que o Festival da Canção tinha nessa época. A minha canção preferida de sempre, das portuguesas, é uma cantada pelo Carlos do Carmo (que até é uma embirração minha de estimação, apesar da óptima voz que tem) com um precioso poema do Ary dos Santos. Uma beleza, letra e música.
ResponderEliminarChama-se "No teu Poema" e deixo aqui o link, para quem não conhece: http://www.youtube.com/watch?v=H3nakPg4pzU
Belíssimo post!
Beijos
Excelente post, mas não posso acreditar que perdeu o de 88!!
ResponderEliminarTCL,
ResponderEliminarAcho que me limitei a contar as minhas memórias e que elas, coincidentemente, são as de toda a nossa geração. Grande comparação que encontraste, essa das noites de eleições. Para mim, claro, a mais excitante de todas foi a de Outubro de 1980, a da vitória da AD! Lembras-te? Apanhei uma carraspana do pior, quando, às cinco da manhã, os resultados eram sufientemente seguros para sairmos em festejo. De rabo de fora, empoleirada na janela do carro do P.M. (segundo namorado, o Vítor não conta, lol!), bandeira em punho... acordei às duas da tarde sem voz. Mas muito feliz!
Ainda sobre as primeiras eleições, recomendo-te a narrativa do PREC num dos últimos comentários no blóguio do Liceu. Outros tempos!... :)
Aninhas,
ResponderEliminarNesse ano em que houve um intérprete designado (Carlos do Carmo, soberba voz, alguma embirração também, confesso, e sinto-me culpada...) e várias músicas. Para mim a maior de todas era a que foi a grande derrotada, Estrela da Tarde, magnífico poema desse grande poeta que foi Ary dos Santos (e a personagem repugnava-me, mas sempre soube discernir), a segunda favorita foi a que ganhou, Uma Flor de Verde Pinho, essa declaração de amor à Lusa Pátria, soberbo poema de Manuel Alegre.
Só depois vinha No Teu Poema. Seja como for, tenho as três e vou enviar-tas :)
David,
Conte-me lá o que foi que eu perdi em 88, que nem faço ideia! I Loved the Night Life... conhece a música? :)
Beijos!