domingo, 27 de abril de 2008

Desacordo Ortográfico (trinta moedas de prata)

Esta fotografia de Messalina Valéria, Messy para os íntimos, com o ar institucional que é uma extensão da sua adorável personalidade e o célebre «We are not amused» da rainha Vitória (Messy também usa sempre o plural majestático), é uma boa introdução para o que vou escrever, um perfeito dois em um - na verdade é um três em um, passa pela verdadeira história de Messy, mas isso são outros quinhentos...

1. Comentário extensíssimo sobre o acordo ortográfico deixado no Porta do Vento da Ana. Sem que eu percebesse como, o comentário desapareceu, e eu tinha lá delineado umas ideias jeitosas. Não tenho outro remédio senão fazer este post, portanto.

A Ana ri como uma tarada das minhas desavenças com o Sapo. Querida Ana, minha old soul em coisas que até me fazem impressão, ainda ontem tivemos mais uma, aqui, na caixa de comentários do meu Pedra Filosofal, fica sabendo que nunca tive uma simpatia por aí além por sapos, tirando o Horácio - este boneco ao lado de Messy no retrato, oferecido por um grupo de amigas num almoço de despedida de uma empresa da qual saí. A ideia era eu beijá-lo e ele transformar-se em príncipe. Em vez disso:

a) Apareceu-me um senhor gordo do Cartaxo

b) Messy reivindicou-o como propriedade sua, e continua a ser o seu brinquedo favorito, treze anos passados - Messy é muito constante nos seus afectos.

2. Não acho graça nenhuma ao acordo ortográfico. Toda eu sou desacordo.

Pois, o Acordo Ortográfico... Há muito que ando a fugir ao assunto, tanto me incomoda. Cheguei a ter uma acção concertada combinada com o Rafeiro. Não a levámos a cabo, foi sendo sucessivamente adiada até acabar por cair no esquecimento. Dizer que o Acordo Ortográfico me incomoda é um eufemismo. O Acordo Ortográfico dói-me. Dói-me tanto que só consigo lembrar-me de 1580, ano trágico da perda da nossa soberania.

O Acordo Ortográfico vende (barato) uma das poucas coisas genuínas e preciosas que temos: a Língua Portuguesa. O Acordo Ortográfico subordina o Português falado e escrito em Portugal a formas até plausíveis de o entender, de o escrever - só que não são as nossas.

Tive o enorme privilégio de ter um professor de Português chamado Vergílio Ferreira, merecedor do Nobel como poucos, e numa idade tremendamente receptiva. Ensinou-me Camões e, consequentemente, legou-me o pavor da Mudança, o seu leitmotif.

Aprendi em tempos, num curso que fui obrigada a fazer e que acabei por adorar, que tenho uma personalidade muito assertiva. Quando confrontada com a Mudança, seja ela de que espécie for, a minha reacção primeira é de rejeição total. Esperneio, escabujo, recuso, repudio. Depois, passado o choque inicial, adapto-me, invariavelmente. Não me parece que em relação ao Acordo Ortográfico eu consiga funcionar assim, tanto ele me violenta.

Bem sei que a Língua é um instrumento vivo e em evolução permanente. Não é isso que questiono. Tenho muitos livros em que os advérbios de modo ainda levam acento - é só um exemplo de uma mudança que assimilei. Lamento a queda do trema, que era um útil auxiliar de pronúncia, de correcta pronúncia - no Brasil mantiveram-no. A questão do trema (que eu conheci inicialmente como umlaut, quando aprendi alemão) foi brilhantemente abordada pela querida Conceição (para mim a Sãozinha), Professora com um gigantesco P maiúsculo, guardada na minha arca de afectos como Mestra inesquecível, num curso que tive a sorte de fazer há um ano - gratidão sem fim para com o Manel, que me obrigou a candidatar-me, quando eu achava que iam rir na minha cara, um curso de pós-graduação quando eu nem licenciada era. Afinal correu bem. Mesmo muito bem.

A Língua evolui, sim. Mas a sua grafia deve reflectir a identidade de quem a fala. Os falantes portugueses dizem, com todas as letras bem explícitas, facto, omnipotente, incorruptível. Não me repugna a queda das consoantes realmente mudas no nosso falar corrente, é só uma questão de me habituar a escrever as palavras de maneira diferente - e eu adapto-me depressa à Mudança, como descobri no tal curso. Que Egipto passe a Egito, redacção a redação, e mais um sem-fim de exemplos, são coisas que digiro, assimilo e aceito. Até faz sentido. O que não faz sentido é que, em nome de nem consigo perceber bem que objectivos, se venda ao desbarato o Português riquíssimo de Portugal, o que é a língua-mãe. Adoro o Português do Brasil, de uma expressividade musical que me encanta (grande post da minha amiga TCL, sugestivamente intitulado Palavras com Sabor), não conheço quase nada das evoluções que o Português teve nos outros países que o falam. Continuo sem conseguir aceitar que quem nos dirige, mesmo que com boas intenções, nos violente desta maneira e desta maneira nos mutile a Língua que é património nosso e precioso.

O Português de Portugal é a língua-mãe, dela nasceram outras. Todos os falantes, estejam no Brasil, em Cabo Verde, na Guiné ou em Timor, se reconhecem nela, dela comungam e depois partem nas suas próprias viagens. É a lei da vida, é natural que assim aconteça, leia-se Alberto Caeiro. O que não é natural é que o tronco-mestre, a árvore que deu vida a tantos ramos espalhados por esse mundo tão vasto, só pela tonta glória de ter a sua língua nos lugares cimeiros das mais faladas no mundo inteiro, assim se submeta a regras artificiais, assim nos venda. Por trinta moedas de prata.

Trinta moedas de prata, repito. Sinto isto como se fosse 1580 outra vez.

Se pensam que o assunto é discussão recente, leiam este artigo de Miguel Esteves Cardoso em 1986 - há mais de vinte anos, foi quando a discussão começou. Vale a pena. Fico com a sua última e magnífica frase: «Concordar em discordar é a verdadeira prova de civilização.»

Cá por casa, parece, não concordamos nem discordamos: fazemos arranjinhos. E é triste.

14 comentários:

  1. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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  2. Teresa
    O comentário acima 'fenrisar' deu-me, depois de clicar no 'here', um alerta de contaminação de virus, do qual o meu anti-virus se defendeu. Se a origem lhe é desconhecida, desconfie.
    No entanto, apareci aqui só para lhe dizer que estou em completo acordo com o desacordo na aplicação deste Acordo...
    Um abraço

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  3. Sinceramente Teresa, eu não consigo encontrar justificação para este Acordo existir. Para além da questão de termos cedido demais em relação à escrita brasileira e nada em relação à africana, e muitas outras temáticas, eu não compreendo porque é que é necessária a sua existência.

    Os Britânicos e os Americanos escrevem inglês diferente... e note-se que não é só a queda do "u" nas sílabas "our" como "Labour" e "Colour". São dezenas, centenas de regras que nem nos lembramos à primeira vista como por exemplo o dobrar da consoante - program vs programme, modeling vs modelling, a troca dos s por z - organization vs organisation, os milhares de vocábulos diferentes - panties vs nickers, a simplificação da escrita como em donut vs doughnut, por aí fora. Os próprios ingleses até já adoptaram para inglês corrente palavras americanas, como silverware em vez de cutlery, napkin em vez de serviette (embora nunca ouças estes termos na fina flor, é comum entre o povo).

    Também os Australianos, os Sul Africanos, os Indianos usam palavras inglesas suas que não são usadas nos outros países da Commonwealth. E convivem todos pacificamente com o facto sem andarem por aí a falarem em Acordos Ortográficos do Inglês. Está bem que passam a vida a gozar uns com os outros, mas isso até é saudável, no meu ponto de vista. Também os brasileiros gozam connosco e nós com eles, mas infelizmente, não é por causa da língua.

    Não tarda muito, para além do acordo ortográfico, haverá um acordo fónico... e vamos ter que passar todos a "djizé ais coisa assim, né? como toidos os outros ais tão dizendo... porqui senão seria uma confusão nais cabeça dos povo dji língua portuguesa cum tanto sotaqui djiferénte, né?"

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  4. 100% de acordo, T, como aliás também já disse no blog da Ana. Não haverá nenhum acordo ortográfico que me faça passar a dizer anistia.Por isso, enquanto por aqui se disser amnistia, é amnistia que vou escrever. Idem para facto, corrupção e tantas outras. Anda tudo louco.

    Atenção ao aviso do psb ali em cima. Sugiro-te que apagues o comentário que diz see please here que aquilo é um virus e perigoso para leitores menos avisados. Já apaguei uma série deles do meu blog.

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  5. Sabes o que me aborrece mesmo? Que, apesar de quase todos os portugueses estarem em desacordo com o Acordo... ele vai para a frente!

    grunfff

    beijo enxofrado

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  6. Embora não seja adverso à mudança, porque geralmente a mudança é para melhor, não é este o caso. É de todo incompreensível. Qualquer língua deveria ser enriquecida em contacto com outras e este "acordo" vem trazer exactamente o contrário. Antes a monarquia dual de 1580.
    Se a Avó ainda escreve mäi, que foi como aprendeu e toda a gente percebe, eu vou continuar a fazer o mesmo.

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  7. Embora não seja adverso à mudança, porque geralmente a mudança é para melhor, não é este o caso. É de todo incompreensível. Qualquer língua deveria ser enriquecida em contacto com outras e este "acordo" vem trazer exactamente o contrário. Antes a monarquia dual de 1580.
    Se a Avó ainda escreve mäi, que foi como aprendeu e toda a gente percebe, eu vou continuar a fazer o mesmo.

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  8. Teresa, fiquei absorvida pelo teu post, pois reflecte muito da minha opinião e ainda por cima com desejo de ler do início ao fim. Também não concordo, porque a nossa Língua é assim e é a nossa história que nela está reflectida. Não é, a meu ver, um golpe estratégico que me vai fazer mudar de opinião.

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  9. Queridas e queridos,
    Amanhã à noite respondo a todos, prometo!
    Mas agora estou tão cansada e já vou dormir tão pouco...

    Beijos a todos.

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  10. Estou disposto a admitir que seja necessário - ou pelo menos útil - um acordo ortográfico, mas acho que isso está por demonstrar. E nunca será este acordo, que espezinha a etimologia (ver artigo de hoje de Vasco Graça Moura no DN), corta consoantes que dizemos ou, nos casos em que as não corta, deixa à escolha de cada um a forma correcta de escrever cada palavra. Mal vamos...

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  11. Teresinha, fica sabendo que continuo a rir como uma tarada das tuas birras com o sapo... que teima em não se transformar em príncipe para ti. É parvo, não sabe o que perde! A do "senhor gordo do Cartaxo" fez aumentar as minhas gargalhadas para níveis perigosos de decibéis...

    E agora a sério, ainda bem que o comentário desapareceu lá no Porta do Vento. Fiquei eu a perder, mas este teu post está fantástico e é, com certeza, ainda mais completo. Por isso, afinal ficámos todos a ganhar. Concordo inteiramente contigo, e continuo a dizer que a grafia não tem porque se reger pela fonética. E já que é assim, acho que vou adoptar a solução brilhante do Pedro Correia (do Corta-Fitas): passo a pronunciar as mudas, e tudo fica outra vez justificado! Proponho que façam o mesmo...

    Beijos, old soul
    ana

    PS: Já agora, deixa que te diga que também nunca gostei de sapos. Traumatismo das aulas práticas de Ciências no Liceu, em que tive que abrir um... ainda hoje me lembro do cheiro!
    Mas este Sapo em versão virtual tem sido um querido, não posso dizer outra coisa.

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  12. Olha Teresa amiga...
    Que - abusadamente - feito Jorge Ben Jor e SEM LICENÇA poética, trato às vezes poer Terê....
    rsrsrs....
    Pois
    Oque me magoou neste post... posto que sou mais emocional que racional... foi não teres mencionado tua colega brasileirissima que junto ao rafeiro pôs-se totalmente a "c.... gar" no acordo ortográfico... em TOTAL DESACORDO, em conversa de skype muito clara na dicção... Pois acho EXACTAMENTE como tu...
    que o ´portugues do Brasil é riquíssimo e sonoro (olha lá QUANTOS MILHÕES de pensantes a adicionar idéias) mas que não deviam NEM ele, nem o de Angola, ou Moçambique, muito menos de Tomé e Príncipe, trazer pra si o DIREITO de modificar a escrita e o falar, de quem nos TROUXE o português... pérola rara da escrita e do falar... POIS... Reafirmo aqui minha INCONFORMIDADE!
    Apesar de ser moderna, gosto exaCtamente que as mudanças não me sejam, nem a NINGUÉM impostas... pois acabam por chegar naturalmente. Burros os que querem "institucionalizar" a mudança que não muda "valores", nem modos de pensar, nem engrandesce o pensamento... mas TÃO SOMENTE, agrada a políticos e negociadores internacionais.... BEDEK!!!

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  13. (relendo- dia seguinte) ops, escrevi mesmo isso, ai... perdi a grandeza nesse engrandecer, lol...

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  14. Foi realmente uma pena não termos concretizado aquela iniciativa, mas outras surgirão, de certeza. O que importa, Teresa, é que este tema não caia no esquecimento. Quanto a mim, não vou só espernear, vou resistir até ao fim, e garanto que não me submeterei a esta palhaçada que é o Acordo Ortográfico.

    Beijo!

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