sábado, 26 de abril de 2008

Pedra Filosofal

Le Chateau des Pyrénées (Magritte)

Uma das mais belas canções em língua portuguesa que conheço.

Música e voz de Manuel Freire, poema de António Gedeão, o poeta que se escondia por trás do cientista Rómulo de Caravalho, professor do melhor Liceu do mundo, o meu querido Liceu, o Liceu de Camões.

Pedra Filosofal

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

Manuel Freire - Pedra Filosofal

16 comentários:

  1. Rómulo de Carvalho não sei se se escondia no melhor liceu do mundo, sei que escrevia do melhor que existe no mundo em língua portuguesa e exprime belas ideias de compreensão universal e a Pedra Filosofal, além de ser um dos meus poemas favoritos, a voz e a música de Manuel Freire enriqueceram ainda mais esta obra de António Gedeão.

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  2. Belas palavras, Geocrusoe!
    E concordo consigo em tudo, até no facto de a voz e a música de Manuel Freire terem enriquecido ainda mais este belíssimo poema em que poeta e cientista se encontram.

    Há só uma coisa que me intriga: eu seria capaz de jurar que conheci uma versão anterior (esta é a que se ouve sempre) em que os versos

    «bichinho álacre e sedento,
    de focinho pontiagudo,
    que fossa através de tudo
    num perpétuo movimento.
    »

    eram cantados na íntegra, sem aquela (para mim) inexplicável supressão do verso «que fossa através de tudo, tão expressivo.

    Um beijo.

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  3. Droga... Me botaste a chorar tanto, tanto Teresa... Não devia ter aberto teu blog a esta altura, bem antes de pegar estrada... Aiii
    Agora fico solfejando isso e o sonho, e o sonho... em perpétuo movimento... GRRRR ... sumiste amiga. Que pena... Quis tanto, tanto falar contigo...
    Ai... essa troca de ritmo no espadachim é fantástica. Tou virando uma autêntica portuga, raiosssss! Eles nem sonham PÚRQUE uma brasuca se sente assim...

    Lindo, Teresa, lindo...
    Adorei...
    Obrigada. Reclamo mas sabes que sou manhosa. Um prêmio descobrir isto...

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  4. Sem duvido uma obra maestra. Uma pequena perola, ou antes, uma grande perola... e em portugues.
    Uma beijoca.

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  5. Verdadinha! Gosto desta música e acho a letra soberba. (ok eu não escrevi isto, e se alguém afirmar que sim, eu nego!)

    Tinha um livro com os poemas de António Gedeão, caí na asneira de o emprestar... grunfff... sei a quem, mas não o vou pedir de volta.. grrr

    Por falar em livro emprestado... cof cof cof, ai esta tosse... cof cof cof

    beijo d'enxofre

    Nota: não assino, pq estou no pc do diabbo-marido e, além disso, posso sempre negar a autoria do escrito, onde confesso que gosto de uma música. hihihihi

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  6. Geocrusoe,
    Esqueci-me de uma coisa... No que toca ao meu Liceu, como no que toca a todos os meus afectos, eu sou muito parcial :)

    Parece que o Pedro Nunes (nosso maior rival) nem era mau de todo...

    Cora,
    Tu já és portuguesa de adopção, pelo menos para mim... :)
    Não consegui apanhar-te. Foi bom dar-te a conhecer esta pérola.

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  7. Melões (Possum!),
    Impossível não sorrir, porque atraiçoas duas grandes influências, a do país onde vives e a do país da cara-metade: obra maestra? :)
    Masterpiece e obra maestra.

    Seja como for, isso é de somenos importância. Música e poema alojam-se-nos na alma, não é?

    Diabba (Possum!)
    Não se emprestam livros! Não se emprestam livros! Nem discos, nem filmes! Só -à conta de empréstimos sem volta na ponta teria uma bela biblioteca. Por falar nisso... tenho comigo um livro teu, aquela obra-prima que sabemos... ;)

    Tu adoras essa tua pose de não gostar de música, mas depois...

    Beijos a todos!

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  8. Teresa, ora aí está! Encontrei alguém a quem faz espécie também uma coisa que há muito tempo me intriga: porque raio é que a canção "apagou" um verso tão essencial e sugestivo? Nunca ninguém me soube explicar isso, e nunca (até hoje, lendo-te) encontrei outra pessoa a quem o assunto incomodasse... mais uma que temos em comum, old soul!
    beijinhos

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  9. Esqueci-me de dizer que o "meu" querido Magritte não podia vir mais a propósito... bem escolhido!

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  10. Ana,

    Old souls, comprovadamente! Não sabia de mais ninguém que tivesse reparado na omissão. Mas já devia esperar isso de ti, a única pessoa que conheço que notou que uma certa frase melódica daquele American Tune da nossa comum obsessão era igual a outra da Paixão Segundo S. Mateus, de Bach...

    Quanto a Magritte... eu nem percebo nada de pintura, mas amo a obra dele!

    Beijos!

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  11. Partilho a perplexidade quanto à amputação do verso "que fossa através de tudo". O qual voltou a não aparecer, neste 25 de Abril, quando Freire - com a voz intacta ao fim de tantos anos - cantou a Pedra Filosofal na RTP1. Escolhi este poema, no 8.º ano, numa altura em que a "s'tora" de Português nos pediu para lermos poesia em voz alta, para os outros. E fiz questão de o declamar sem papel, o que não foi difícil, de tanto que ouvira e cantara aquela música linda...

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  12. Adoro o poema e emociona-me sempre!

    Mas olha que o poeta também foi professor no melhor liceu do mundo... o Pedro Nunes, claro está!

    ;)

    beijinhos

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  13. Sem dúvida, uma das melhores músicas portuguesas de sempre, opinião partilhada pela Mãe, que é fã de baladas - Zeca Afonso também, mas sobretudo Adriano Correia de Oliveira.

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  14. o tempo passa, mas este poema é intemporal...
    Também um dos meus preferidos...
    :o)))***

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