terça-feira, 7 de novembro de 2006

Dame Joan Sutherland, La Stupenda

Faz hoje 80 anos. Many happy returns, Dame Joan!

O cognome La Stupenda foi-lhe atribuído em Veneza, com o La Fenice em delírio com a sua Alcina. O êxtase foi tamanho que as enormes grinaldas de cravos que decoravam o teatro em grande profusão foram arrancadas para o público poder atirar as flores para o palco. Isto foi em Fevereiro de 1960, apenas um ano depois daquela mítica Lucia di Lammermoor no Covent Garden que fez dela uma lenda da noite para o dia.

Costumo dizer a brincar que teria vendido a alma ao Diabo para ter assistido a duas coisas. Ao concerto dos Simon & Garfunkel no Central Park, em Setembro de 1981. E, bem entendido, àquela primeira récita da Lucia, a 17 de Fevereiro de 1959. Difícil, considerando que nem sequer tinha ainda nascido...

Cantou uma única vez em Portugal, e a história tem o seu quê de humor negro. A Voice of the Century vem a Portugal, uma única vez, e tem logo de levar com o 25 de Abril em cima! Já é azar! Eu nem teria sabido disto se não fosse a Mãe do meu amigo Artur. Há uns anos, fomos todos a S. Carlos ver uma Bohème e depois, no caminho para a ceia no Gambrinus (de rigueur, a seguir à ópera), a senhora começou a evocar antigas noites em S. Carlos. E eis que me fala de uma Traviata mesmo antes do 25 de Abril com aquela australiana de voz inacreditável. Dei logo um pulo no banco do carro. A Joan Sutherland?! Sim, sim, essa mesmo. Confesso que fiquei um bocadinho desconfiada, afinal a senhora estava com oitenta e tal anos (agora já passou os noventa) e podia estar a fazer confusão. A memória prega-nos partidas.

Mas não estava a fazer confusão, não senhor. Mal cheguei a casa precipitei-me para a biografia de Joan Sutherland por Norma Major (a mulher do ex-primeiro-ministro britânico, tão fanática que tentava segui-la onde quer que ela fosse cantar; récitas no Covent Garden não perdia uma, no estrangeiro ouviu-a nas mais variadas casas de ópera, de Viena a Milão e Palermo, passando por Paris e Nova Iorque). Ora a tal biografia tem apêndices muito úteis, e foi um deles, onde ela regista TODAS as actuações de Sutherland em mais de 30 anos de carreira, que me esclareceu.

Fui ver o ano de 1974, e lá estava. Traviata, em Lisboa, 18, 21 e 24 de Abril. Alfredo era Alfredo Kraus (voz linda, que já nos deixou há uns anos), que teve também a honra de cantar o mesmo papel com a Callas em 1958. Há até uma peça de teatro de Terrence McNally sobre essa produção – que existe em disco – , com o sugestivo título The Lisbon Traviata. Só é pena que o dramaturgo não tenha sido mais cuidadoso na investigação. Chama a S. Carlos Teatro de S. Marco. A peça passa-se em Nova Iorque, e uma das personagens é portuguesa. Chama-se Paul Della Roverre. Nome mais português não deve haver, pois não? Isto para não falar do facto de uma personagem que tem vinte e poucos anos no princípio dos anos 80 muito dificilmente poder ter assistido a uma ópera em 1959...

O facto de só ter havido três récitas da Traviata de Sutherland, a última das quais a 24 de Abril, faz-me pensar que deviam estar agendadas pelo menos mais uma ou duas, e que foram canceladas por motivos óbvios. Estou a imaginá-la no hotel, na manhã seguinte, certamente querendo saber das críticas... e os militares todos na rua. Duvido muito que os jornais se tenham lembrado de que a maior soprano do mundo tinha cantado na véspera em S. Carlos...

Tudo o que tenho lido sobre ela aponta sempre na mesma direcção. As opiniões são unânimes. É uma senhora encantadora, de enorme simplicidade, com um gigantesco sentido de humor (aliás, a sua Marie do La Fille du Régiment é absolutamente hilariante), sem caprichos de diva, apaixonada por jardinagem, e os seus dotes com a agulha são tão lendários como a voz. Ao que parece, em qualquer teatro em que cantasse quando a iam chamar para entrar em cena encontravam-na invariavelmente sentada a um canto do camarim... a bordar.

Há outras cantoras cuja voz adoro. Renata Tebaldi, que morreu há quase dois anos. Mirella Freni. Elisabeth Schwartzkopf (morreu há três meses). Marylin Horne. Edita Gruberova, com um repertório muito decalcado do de Sutherland – aliás tem sido muitas vezes dirigida pelo marido, o Richard Bonynge. Mas esta é mesmo para mim a voz mais querida de todas. Ouvi-la nas cenas da loucura da Lucia ou dos Puritani é uma espécie de experiência mística. Ouvi-la em Ah! non credea mirarte da Sonnambula pôe-me a chorar baba e ranho. Idem para a Norma. Os duetos dela com Marylin Horne, quer na Norma, quer na Semiramide, são absolutamente indescritíveis. Eu e o Victor até costumamos fantasiar um brasileiro bronco no público, a levantar-se a meio do Mira o Norma e, com aquele jeitinho que eles têm para nomes estrangeiros, a gritar «Ó Suderlandji! Ó Rorne! Vai cantá assim nos quinto dos inferno, pô!» – imaginação não nos falta.

Para fechar, uma historiazinha deliciosa passada com Joan Sutherland e No
ël Coward. Eram muito amigos, vizinhos em Les Avants, na Suíça (foi ele que lhe descobriu a casa). Um belo dia, nos anos 60, na ápoca em que as senhoras usavam aqueles penteados volumosos em que se ripava o cabelo (lembro-me perfeitamente de a minha Mãe se pentear assim), perante uma Joan toda produzida para ir não sei onde, de pérolas e casaco de chinchila, o seu amigo Noël, com aquele fabuloso sentido de humor tão britânico, comentou:

– Joan, dear! You look magnificently like the MGM lion today!

Foto: A noite mágica da primeira Lucia, 17 de Fevereiro de 1959 – Cena da Loucura

5 comentários:

  1. Mais um delicioso relato, como já nos habituaste. E já fiquei a saber mais umas coisas :)) Deliciosa, a da MGM! Beijo grande, Teresa querida.

    ResponderEliminar
  2. Minha cara Teresa.

    Apesar de fora há duas semanas, não resisto a deixar aqui o meu comentário, coisa que dá trabalho, porque estou a usar um pc do hotel e tive de gravar isto em word a recorrer ao symbol para os acentos e os caracteres que este teclado não tem, que sei do seu rigor com a escrita. Que aprovo, diga-se de passagem. No caso presente dá trabalho, mas nada que um cortar/colar não possa resolver.

    Sabia da sua paixão por ópera, não sabia deste seu culto por esta GRANDE DAME. Deduzo que nunca a viu "ao vivo", teria falado disso. Pois eu vi-a. Eis uma vantagem que os alguns anos a mais me dão. E vi-a nessa curta passagem por Lisboa em 74, sim. Vi-a mais três vezes. Nova Iorque, Londres, Sydney, por esta ordem.

    Agradeço-lhe a homenagem tão sentida que aqui lhe presta, para mim ninguém a suplanta. Nunca a vi com a Horne, com muita pena minha.

    Só a título de curiosidade... qual a sua opinião sobre a Callas? Terei lido bem nas entrelinhas e a menina não gosta muito dela?

    ResponderEliminar
  3. Teresa
    Em primeiro lugar, muito obrigada pelas suas palavras n'A biblioteca de Jacinto (é nos Campos Elísios 202, claro!).
    Vejo que temos mesmo muito em comum. O concerto no Central Park é uma referência absoluta da minha adolescência e a seu tempo terá direito a post (já está em draft, só falta publicar). Quanto a Sutherland, concordo consigo: uma voz sublime. Pegando nas suas palavras, eu quase daria a alma ao diabo para ter uma voz assim. Infelizmente, fico-me pelas minhas aulitas privadas de canto, com um professor "topo de gama" (o Fernando Serafim) que me incentiva imenso mas eu só dou o que posso e a mais não sou obrigada. Ontem consegui chegar ao dó, duas vezes, durante os vocalizos e foi um feito histórico... na ária da loucura ela chegará a quê? ao fá?... hei-de ver aqui nas minhas partituras (trabalho no serviço de música da Biblioteca Nacional).
    Um abraço e volte sempre. Eu voltarei também.

    ResponderEliminar
  4. Clara, e não é que temos mesmo muitas coisas em comum?

    infelizmente nunca estudei música, coisa que cada vez mais sinto ser uma limitação. Como tal, não sei nem desconfio a que nota chega a querida Sutherland na cena da loucura, só sei ouvir e arrepiar-me. Quanto ao canto, sou contralto absoluto e incontornável, já era aos 13 anos no coral do Liceu... as únicas árias que consigo cantarolar são de barítono para mais grave, uma ária de tenor já apresenta dificuldades... está a ver o género.

    Biblioteca Nacional? Há que anos lá não entro! Nem sabia que tinha um serviço de música! Conhece a Idalina? - isto no caso de ela ainda ser da casa.

    Um beijinho.

    ResponderEliminar
  5. A Traviatta da Callas/Kraus em São Carlos, foi em 1958 (27 de Março) escassos três meses depois do fatídico FIASCO de Roma, em 2 de Janeiro, quando abandonou a Opera de Roma, depois do 1º acto da Norma, alegando uma gripe, e ofendendo o Presidente Gronchi e o jet set da terra...

    sealion

    ResponderEliminar