domingo, 2 de junho de 2013

Primavera perdida

Há meses, lá pelos princípios de Fevereiro, o querido Ricardo (ele que assistiu a tantas coisas e delas foi parte tão importante) fazia-me, num mail, esta pergunta tremenda: «E para ti, já é Primavera?»

A pergunta comoveu-me, porque em mim tudo era já uma antecipação feliz da Primavera que aí viria. Mas a Primavera atraiçoou-me, mal dei por ela, e temos o Verão à porta não tarda. Sinto-me lesada. Ontem ainda dormi com saco de água quente, tenho sempre muito frio. Na quinta-feira tive de sair de casa muito cedo, tinha mais uma consulta no dentista (um longo calvário, meus amigos — a quimioterapia não me levou o cabelo, só o deixou muitíssimo mais fraco, coisa que vim a perceber no Inverno, quando de repente percebi que todos os meus adorados chapéus me estavam enormes, não me fez cair unhas, não me fez nascer as pavorosas e dolorosíssimas aftas (é verdade que fui escrupulosa nos cuidados, sempre que comia alguma coisa bochechava depois com um líquido benfazejo que mas poupou. Mas não há bela sem senão. A quimioterapia arruinou-me as veias (prefiro nem falar disso, tão doloroso é hoje tentar apanhar uma veia que não rebente logo a seguir) e arruinou-me os dentes. 

Os dentes, ah, os dentes! Nasci num tempo em que, em Portugal, ter dentes bonitos era uma questão de sorte, porque fosse a família remediada ou até rica, ninguém ligava muito a essas coisas e ninguém usava aparelho. Tive a sorte de herdar os dentes da minha Mãe, muito brancos e alinhados, muitos certos. Lembro-me de ter colegas de faculdade que chegaram a perguntar-me se usava algum dentífrico especial, tão brancos e bonitos eram os meus dentes. E não, não usava, limitava-me a duas ou três escovadelas diárias, na época nem sequer se usava fio dental. O P.M. dizia muitas vezes que eu tinha «um sorriso que valia um milhão». Mas os deuses são caprichosos, malévolos, e sabem muito bem como castigar-nos, atingindo-nos precisamente naquilo que temos de melhor. E que, de caminho, é a coisa que mais me aterroriza: a cadeira do dentista. Uma fobia em mim só comparável à que tenho por ratos. Droguem-me durante dois, três dias, o que for preciso, acordem-me só quando estiver tudo feito, é agora a minha divisa. Infelizmente não pode ser assim. E engulo com esforço mais esta provação, a dos resultados da quimio, e de ter de extrair dentes absolutamente sãos, sem vestígio de cáries ou qualquer outro problema, apenas porque começaram a abanar e em breve cairão.

Tenho vivido em reclusão, porque estou desfigurada. Quando me caiu um dente da frente do maxilar inferior (sempre o mais visível, quando se fala, e só Deus sabe o que eu gosto de falar) — tenho-o guardado, um dente impoluto, sem sombras de problemas, telefonei em pânico ao Ricardo, a desabafar. O Ricardo, como sempre, não foi de meias medidas. Marcou-me consulta na sua dentista e avisou que o que houvesse a pagar era por conta dele — assim é o Ricardo, assim são os meus amigos do Liceu. Não tive coragem de ir, por duas razões: a primeira o atávico medo que tenho à cadeira do dentista desde a morte do Tio Artur (estomatologista, meu padrinho de baptismo), com um consultório que parecia saído de um futuro ainda distante), em quem eu confiava cegamente. Dava-me seis ou sete anestesias, tão aterrorizada me percebia. Nos intervalos íamos para a janela fumar um cigarro e ele contava-me histórias fascinantes. Foi numa dessas pausas à janela, o Café Central a poucos metros do outro lado da rua, que fiquei a saber que Santa Apolónia era a padroeira dos dentistas, ele tinha uma linda imagem em marfim na secretária. A segunda razão foi recusar que o Ricardo gastasse uma fortuna comigo. Bem sei que ficou zangado comigo, mas vai abraçar-me feliz quando vir a minha boca devolvida à normalidade.

Eis quando entra a Tina. A Tina não me via havia uma data de tempo, mesmo falando nós ao telefone todos os dias. E a Tina... bom, a Tina é a Tina. Sempre a preocupar-se com os outros. No coro em que canta uma vez por semana há uma estomatologista de grande prestígio, a Isabel. A Tina nem seria a Tina se não lhe tivesse falado de mim, e do meu drama, contando mais algumas coisas. A Isabel abriu-me os braços, a sua clínica tinha um protocolo qualquer em que doentes oncológicos eram tratados a custo zero.

Na véspera da primeira consulta nem dormi, tamanho o medo. A Tina foi comigo e ficou impressionada. Eu tremia por todos os lados, as mãos tremiam-me, não conseguia articular uma frase de jeito, fartei-me de beber água numa tentativa de me acalmar (helpless), a Isabel (querida Isabel, e tão terna!), depois de todas as radiografias explicou-me que teria de extrair muitos dentes, mesmo completamente sãos, culpa exclusiva da quimioterapia, que os tinha posto a abanar e em breve seriam dentes perdidos. E teve pena, porque achou que eu tinha mesmo dentes muito bonitos.

Estou reconciliada com isto, anseio pela conclusão do processo, por voltar a ter uma boca de gente e o meu sorriso de volta. O terror ao sentar-me na cadeira é sempre igual. e nada pode mudar isso. A Isabel já me disse que teria de extrair-me dois dentes da frente do maxilar inferior. Estão perfeitamente sãos. mas já abanam, são dentes perdidos a curto prazo. FDP da quimioterapia. Por outro lado, God Bless a puta da quimioterapia, que me salvou a vida. Mixed blessings.

Ia-me esquecendo: no dia 30, dia de greve do metro, tive de ir de táxi para a clínica dentária. E andei muito a pé (coisa que adoro) para ir à consulta de revisão no IPO. Aparentemente. está tudo bem. A minha certeza não é absoluta, detesto aquela médica que desde a operação me calhou em rifa. O Ricardo (sempre o querido Ricardo) foi falar com ela no exacto dia da operação, que o Ricardo não se afastou um milímetro da minha cama em todos os dias do meu internamento. E sempre ramos de rosas, é por isso que lhe chamo o meu Rosenkavalier. Ainda ponderei oferecer-lhe a ópera de Strauss, mas achei que ele não teria paciência, que não é uma ópera fácil. Achou-a linda. Eu ri baixinho, em resposta. «Quando conheceres a Maria Fortunato (a minha médica de radioterapia) mudas de opinião num instante! Porque ela, sim, é LINDA!» A outra tem uma cara equídea. E odeio pessoas com um aperto de mão mole, que é o caso dela.

Só para acabar: nesse dia 30 de Maio saí à rua com um vestido de lã, meias e um blusão. E tive um frio do caraças. Maldita a hora em que achei que vestir também uma camisola interior seria exagero.

2 comentários:

  1. Teresa, a primavera cá está, e tomara que agora seja de vez. E vai correr tudo bem: se o (meu) pensamento positivo servir de anestesia, essas sessões de dentista vão correr que é uma maravilha :)

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  2. Parece que o frio vai voltar, Izzie.
    Ainda tenho muitas sessões de dentista pela frente (e consequentemente muitos invencíveis terrores). Com um bocado de sorte, lá pelo fim do mês já estarei apresentável.

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