The domino effect
«I have always depended on the kindness of strangers.» — esta frase célebre é da patética Blanche DuBois de Tennessee Williams em A Streetcar Named Desire. Patética no sentido de comovente, que inspira piedade, e não no sentido pejorativo e vulgarizado nos últimos anos, julgo que por influência directa do inglês. Nem de outra forma se poderia entender que Beethoven tivesse uma sonata para piano e Tchaikovsky uma sinfonia com esse nome.
Tive a sorte e o privilégio de ver uma assombrosa Glenn Close no papel que já tinha dado a Vivien Leigh o seu segundo Oscar. Foi no National Theatre, em Outubro de 2002 (ver aqui a crítica do The Guardian).
Devo dizer que há uma coisa que me põe doente no público teatral, quer em Londres quer em Nova Iorque: a rapidez com que despacha os aplausos, por mais extraordinário que seja aquilo que viu em palco. Duas ou três curtain calls e ala que se faz tarde. Com Glenn Close foi diferente. Quando ela surgiu para agradecer pela primeira vez irromperam berros e palmas entusiásticas vindos de umas quatro ou cinco filas atrás de nós, que estávamos na primeira, ao centro. Voltámo-nos para trás, tão invulgar aquilo era. De pé, aplaudindo furiosamente, estava Woody Harrelson. Os espectadores atrás dele, para verem melhor, acabaram por se levantar também, e em menos de nada a sala inteira aclamava de pé, numa ovação interminável que se repetiria mais umas cinco ou seis vezes, graças a ele (que tinha vivido com Glenn Close alguns anos antes). Os theatre buffs chamam a isto «the domino effect», na maior parte das vezes em tom trocista. Naquele caso justificava-se plenamente, e devo dizer que aquela produção, assinada por Trevor Nunn (a quem eu já devia a de Les Misérables), tinha um dos cenários mais espantosos que me lembro de ter visto, julgo que só superado pelo de The Breath of Life, de que já falei aqui.
Vivien Leigh e Marlon Brando, A Streetcar Named Desire (1951)
«Whoever you are, I have always depended on the kindness of strangers» é a frase final de Blanche DuBois, e tem-me ocorrido muitas vezes, perante as tantas mensagens de desconhecidos que me têm chegado nos últimos tempos. Uma delas calou especialmente fundo. Reproduzo-a abaixo, com autorização da autora, a que chamarei A. É um testemunho. É um documento.
«Teresa,
Sou filha de um médico.
Durante anos, ao almoço, falar de fígado não significava necessariamente que a minha mãe tinha feito iscas, mas antes que o tema de discussão era a cirrose hepática de um doente alcoólico. Quando se juntavam amigos, então, era brutal: uma alma mais sensível teria dificuldades em acompanhar alguns jantares sem ficar mal disposta.
Habituei-me a ver fotografias de pernas ulcerosas, estômagos com feridas e intestinos roxos metidas no meio de belas recordações da minha família de férias na praia.
Fiz cirurgias completas em todas as Tuxas que tive e muitas acabaram sem cabelo porque estavam a fazer quimio.
Nunca disse “vista”, mas olhos. Nem “peito”, mas mamas (ou maminhas, que cedo percebi que o mundo não estava preparado para ouvir uma miúda de 12 anos dizer assim mamas, com as letras todas. É a palavra mais feia da língua portuguesa, eu acho). O meu pai fuzilava-me com os olhos quando eu, ranhosa, dizia que estava com gripe. Qual gripe, isso quanto muito é uma constipaçãozita! Ben-u-ron no bucho e segue, amanhã já estás boa.
Enquanto os meus coleguinhas na escola primária escreviam sobre a Primavera, eu lembro-me de inventar enredos mirabolantes, passados invariavelmente num hospital – para mim, o único lugar do mundo onde o luto nunca vencia, porque toda a gente usava sempre a mesma bata imaculadamente branca e, quando morria alguém, não havia tempo para chorar. Tão deprimente e “adulto” que a Professora Fátima, coitadinha, ficava aflita e chamava a minha mãe à escola, para saber se havia problemas em casa. Hei-de ter lá para casa essas pérolas, guiões infantis da Anatomia de Grey.
Desde miúda, portanto, que lido com as doenças como parte natural da vida. Claro que durante muitos anos fi-lo de modo abstracto: tudo era ciência, a cura não era um mito urbano, nem um milagre, mas antes um organismo a receber – e a aceitar – centenas de anos de investigação. Quando corria mal, corria mal – nos hospitais não há tempo para lutos. Salvemos o seguinte.
Com a idade e a chegada de mazelas aos meus, comecei a tentar levar a coisa da forma mais desassombrada que os afectos me permitem, num equilíbrio às vezes ténue entre o racional e o emotivo – porque é tudo muito bonito, isso da ciência e da lei da vida e da morte e tudo o mais, mas quando nos toca directamente a coisa muda de figura.
Percebi também que ter uma doença muito grave deve ser o momento mais solitário que se pode viver: somos só nós e a noção clara de ver uma pistola apontada à cabeça (que todos temos, mas só alguns vêem): tive a certeza disso quando acompanhei muito de perto a luta de um querido tio, que se debateu estoicamente durante 12 anos contra um estupor de um tumor cerebral. Benigno, como se uma coisa tão má e incapacitante algum dia pudesse ter um nanograma de benignidade (enfim). Esteve sempre connosco e entregue à melhor equipa de neurocirurgia do país, mas no fundo estava sozinho – a luta era contra ele próprio, contra a multiplicação de células que o seu organismo teimava em continuar. Coisa mais parva, quando uma pessoa quer tanto viver e a luta que tem é contra o seu próprio corpo.
Durante anos, ao almoço, falar de fígado não significava necessariamente que a minha mãe tinha feito iscas, mas antes que o tema de discussão era a cirrose hepática de um doente alcoólico. Quando se juntavam amigos, então, era brutal: uma alma mais sensível teria dificuldades em acompanhar alguns jantares sem ficar mal disposta.
Habituei-me a ver fotografias de pernas ulcerosas, estômagos com feridas e intestinos roxos metidas no meio de belas recordações da minha família de férias na praia.
Fiz cirurgias completas em todas as Tuxas que tive e muitas acabaram sem cabelo porque estavam a fazer quimio.
Nunca disse “vista”, mas olhos. Nem “peito”, mas mamas (ou maminhas, que cedo percebi que o mundo não estava preparado para ouvir uma miúda de 12 anos dizer assim mamas, com as letras todas. É a palavra mais feia da língua portuguesa, eu acho). O meu pai fuzilava-me com os olhos quando eu, ranhosa, dizia que estava com gripe. Qual gripe, isso quanto muito é uma constipaçãozita! Ben-u-ron no bucho e segue, amanhã já estás boa.
Enquanto os meus coleguinhas na escola primária escreviam sobre a Primavera, eu lembro-me de inventar enredos mirabolantes, passados invariavelmente num hospital – para mim, o único lugar do mundo onde o luto nunca vencia, porque toda a gente usava sempre a mesma bata imaculadamente branca e, quando morria alguém, não havia tempo para chorar. Tão deprimente e “adulto” que a Professora Fátima, coitadinha, ficava aflita e chamava a minha mãe à escola, para saber se havia problemas em casa. Hei-de ter lá para casa essas pérolas, guiões infantis da Anatomia de Grey.
Desde miúda, portanto, que lido com as doenças como parte natural da vida. Claro que durante muitos anos fi-lo de modo abstracto: tudo era ciência, a cura não era um mito urbano, nem um milagre, mas antes um organismo a receber – e a aceitar – centenas de anos de investigação. Quando corria mal, corria mal – nos hospitais não há tempo para lutos. Salvemos o seguinte.
Com a idade e a chegada de mazelas aos meus, comecei a tentar levar a coisa da forma mais desassombrada que os afectos me permitem, num equilíbrio às vezes ténue entre o racional e o emotivo – porque é tudo muito bonito, isso da ciência e da lei da vida e da morte e tudo o mais, mas quando nos toca directamente a coisa muda de figura.
Percebi também que ter uma doença muito grave deve ser o momento mais solitário que se pode viver: somos só nós e a noção clara de ver uma pistola apontada à cabeça (que todos temos, mas só alguns vêem): tive a certeza disso quando acompanhei muito de perto a luta de um querido tio, que se debateu estoicamente durante 12 anos contra um estupor de um tumor cerebral. Benigno, como se uma coisa tão má e incapacitante algum dia pudesse ter um nanograma de benignidade (enfim). Esteve sempre connosco e entregue à melhor equipa de neurocirurgia do país, mas no fundo estava sozinho – a luta era contra ele próprio, contra a multiplicação de células que o seu organismo teimava em continuar. Coisa mais parva, quando uma pessoa quer tanto viver e a luta que tem é contra o seu próprio corpo.
Confesso que li o email que teve a delicadeza de me enviar e sabe o que achei que lhe tinha acontecido? Um problema qualquer com uma daquelas stalkers malucas. Quando à noite fui ao “gota” e li o título do seu post pensei: casou-se! (o Big C seria de Casamento). Claro que depressa percebi: afinal a Teresa está doente. Um cabrão de um cancro. Merda.
Não vale a pena dizer-lhe que hoje em dia uma percentagem muito significativa de doentes oncológicos superam o cancro e seguem a sua vida em frente – com eternas cicatrizes, físicas e morais, mas seguem. Isso a Teresa já sabe.
Também não vale a pena dizer-lhe que, mesmo que as estatísticas digam que o cancro A tem uma taxa de mortalidade muito elevada, os milagres acontecem e a ciência blá blá blá. Não é novidade, a Teresa sabe.
Muito menos valerá a pena tentar diminuir-lhe o terror que deve ter sido encarar a notícia. E o medo de viver o que aí vem. Ou forçá-la a desvalorizar o sofrimento, o desânimo, o desalento (caramba, tem de ser forte, não se pode ir abaixo). Se o seu cabelo cair, vai ser duro. É ridículo dizer-lhe “deixa lá, que cresce, isso não é nada”. Pois cresce, mas entretanto caiu todo e a Teresa gosta dele. É seu. Faz parte do que é.
Afirmar convictamente que a Teresa vai superar isto tudo e enviar-lhe muita força e energia? Saber-lhe-á bem sentir-se querida pela comunidade blogosférica? Acredito que sim, e muitos fá-lo-ão - porque se preocupam, porque gostam de si. Porque a querem acompanhar, ainda que à distância. E não vale a pena fugir desse abraço bem intencionado, mesmo que seja virtual. Pela parte que me toca, todos os dias estenderei os meus braços para si, de manhã, pelas 8 e tal, 9 e picos.
Eu não sei se vai correr tudo bem; quero muito que sim, acredite. O meu lado emotivo diz-me que voltará aos teatros londrinos, ouvirá muitas músicas ainda não gravadas, lerá muitos livros ainda não imaginados. Gozará o seu amado sol, com gatos meigolas a ronronar-lhe as pernas. Comemorará muitos Agostos. Confio na ciência e mais, confio na luta que vai encetar, por si e ao mesmo tempo contra si.
E de facto, como disse tão bem a Pólo Norte, dignidade é a melhor palavra para a descrever. A Teresa é uma mulher digna. Já a sabia leal. Testemos, a partir de agora, a sua resiliência.
Deixo-lhe um forte abraço e se quiser, use-me como fiel depositária das suas amarguras. A vida leva-se a rir, mas chorar também faz parte.
A.»
Não vale a pena dizer-lhe que hoje em dia uma percentagem muito significativa de doentes oncológicos superam o cancro e seguem a sua vida em frente – com eternas cicatrizes, físicas e morais, mas seguem. Isso a Teresa já sabe.
Também não vale a pena dizer-lhe que, mesmo que as estatísticas digam que o cancro A tem uma taxa de mortalidade muito elevada, os milagres acontecem e a ciência blá blá blá. Não é novidade, a Teresa sabe.
Muito menos valerá a pena tentar diminuir-lhe o terror que deve ter sido encarar a notícia. E o medo de viver o que aí vem. Ou forçá-la a desvalorizar o sofrimento, o desânimo, o desalento (caramba, tem de ser forte, não se pode ir abaixo). Se o seu cabelo cair, vai ser duro. É ridículo dizer-lhe “deixa lá, que cresce, isso não é nada”. Pois cresce, mas entretanto caiu todo e a Teresa gosta dele. É seu. Faz parte do que é.
Afirmar convictamente que a Teresa vai superar isto tudo e enviar-lhe muita força e energia? Saber-lhe-á bem sentir-se querida pela comunidade blogosférica? Acredito que sim, e muitos fá-lo-ão - porque se preocupam, porque gostam de si. Porque a querem acompanhar, ainda que à distância. E não vale a pena fugir desse abraço bem intencionado, mesmo que seja virtual. Pela parte que me toca, todos os dias estenderei os meus braços para si, de manhã, pelas 8 e tal, 9 e picos.
Eu não sei se vai correr tudo bem; quero muito que sim, acredite. O meu lado emotivo diz-me que voltará aos teatros londrinos, ouvirá muitas músicas ainda não gravadas, lerá muitos livros ainda não imaginados. Gozará o seu amado sol, com gatos meigolas a ronronar-lhe as pernas. Comemorará muitos Agostos. Confio na ciência e mais, confio na luta que vai encetar, por si e ao mesmo tempo contra si.
E de facto, como disse tão bem a Pólo Norte, dignidade é a melhor palavra para a descrever. A Teresa é uma mulher digna. Já a sabia leal. Testemos, a partir de agora, a sua resiliência.
Deixo-lhe um forte abraço e se quiser, use-me como fiel depositária das suas amarguras. A vida leva-se a rir, mas chorar também faz parte.
A.»
Banda sonora - Beethoven - Pathétique -Adagio Cantabile (Wilhelm Kempff)
Não tinha até agora comentado nada quanto à sua doença, porque acho que sou ainda demasiado pequenina para um assunto tão grande,pelo que optei pelo respeito de ficar calada. Mas perante um texto tão bem escrito aproveito para fazer minhas as palavras de A. Para que saiba que, apesar de no silêncio, sou mais uma das muitas pessoas que torcem por si, valha isso o que valer.
ResponderEliminarVale muito, Navajowski. Tal como valem muito todas as palavras que me têm chegado.
ResponderEliminarE agora falemos de outras coisas, sim?
Há pessoas mesmo especiais. A A. é uma delas. A Teresa também, mas isso já eu tinha percebido.
ResponderEliminarUm abraço nada virtual enorme.
ResponderEliminarQuem pensa que a blogosfera é virtual está redondamente enganado.
Aqui, sente-se, vive-se, amiga-se, apaixona-se. Com tanta ou maior intensidade do que no mundo dito real.
Tenho a sensação de que nos conhecemos melhor aqui do que os amigos "reais".
Assim, um abraço gigante, uma certeza e crença enorme em ti. (O texto é maravilhoso, verdadeiramente digno da pessoa a quem se dirige.)
(E muitos beijinhos)
Faço das palavras do Navajowski praticamente as minhas. Nada me passou indiferente, despercebido, mas sinto-me demasiado pequena para falar de algo tão grande.
ResponderEliminarA história que conta é maravilhosa, a Teresa, como já o disse aqui e o disse também entrelinhas no meu blog, é a melhor contadora de histórias da blogosfera. E sabe muito bem voltar a lê-la como sei que escreve com gosto estas memórias que de tão gloriosas não merecem que as guarde apenas para si.
O efeito dominó é como a roda gigante. Um dia a engrenagem muda o sentido e de repente tudo parece correr melhor quando até então tudo corria mal. Muita força.
Teresa,
ResponderEliminarTenho-a lido com frequência mas é raro comentar. E, por isso, demorei tanto tempo a comentar agora também. Por um lado tinha vontade mas por outro não sabia se devia.
Mas, e tendo-me a Teresa apoiado na altura em que foi com a minha mãe, não posso deixar de, ainda que à distância e virtualmente, lhe dar também todo o meu apoio.
Sei que a Teresa vai enfrentar isto tudo com a sua inquestionável dignidade.
Tenho a noção que esta doença é um experiência que se vive de forma solitária, tal como alguém aqui e disse e muito bem, mas, ainda assim saber que temos tantos que estão connosco e torcem por nós penso que é reconfortante.
Não vou minimizar as coisas, tentar mostrar que é fácil, porque sei bem que não é. Mas também sei que a Teresa manterá a cabeça erguida e lutará com todas as suas forças. Alguma coisa que precise pode contar com a experiência que adquiri neste longo processo com a minha mãe.
Um beijinho muito grande,
Teresa
Sabe, sim, que somos muitos a torcer por ti. E com vontade de ajudar mas sem sabermos como. E a querer escrever um texto assim mas sem sabermos como.
ResponderEliminarSabe, sim, que somos muitos a torcer por ti. E com vontade de ajudar mas sem sabermos como. E a querer escrever um texto assim mas sem sabermos como.
ResponderEliminarNós, que gostamos de escrever e achamos que palavras é connnosco, ficamos muito surpreendidos nestas alturas, em que todas as palavras parecem parvas e a mais. O texto de A é absolutamente extraordinário. Para alguém como a Teresa, que não conheço senão do seu blogue (que a revela porém bastante bem, na sua dignidade e na sua qualidade intelectual, cultural e ética), não poderia haver outro texto. As lamechices deixá-la-iam furiosa. Pode parecer cobardia um gajo refugiar-se nesse texto, usar aquelas palavras e fazê-las suas, mas não tenho alternativa. Está lá tudo o que penso e o que desejo.
ResponderEliminarGosto muito de si. Ponto.
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