sábado, 26 de maio de 2012

Todos os homens são maricas quando estão com gripe

A minha embirração por António Lobo Antunes vem de longe, de muito longe, do princípio dos anos oitenta, quando lhe li os três ou quatro primeiros livros. Achei-o presumido, de uma vaidade em que cabia uma casa, assim uma coisa com pretensões a Hemingway nacional e de pacotilha. Que peneiras, santo Deus, que peneiras!

Em anos recentes foi-me contada por pessoa do meio literário uma história que me fez delirar. Sabem os meus amigos qual foi a primeira coisa que Lobo Antunes fez ao publicar o seu primeiríssimo livro (Memória de Elefante, 1979), e a expensas suas? Mandou traduzi-lo para sueco! Não sei bem se estão a ver a ideia, eu percebi logo, e ri como uma tarada. Ai as peneiras, as peneiras!

Depois houve aquele ano (97 ou 98) em que Lobo Antunes embandeirou em arco e proclamou, alto e bom som para quem quisesse ouvi-lo e até para quem não quisesse, que o Nobel desse ano era dele. E eu, confesso, quando a 9 de Outubro se soube que o laureado era Saramago, fiquei duplamente felz: por ser um português e... por não ser Lobo Antunes.

Ainda assim, ontem dei comigo a rir ao deparar com o poema abaixo numa parede do IPO, estrategicamente situado junto à zona de Ginecologia. Apreciei o humor sardónico de quem escolheu justamente aquele sítio para o afixar, vinte valores!

«Todos os homens são maricas quando estão com gripe

Pachos na testa
Terço na mão
Uma botija Chá de limão
Zaragatoas
Vinho com mel
Três aspirinas
Creme na pele
Dói-me a garganta
Chamo a mulher
Ai Lurdes, Lurdes
Que vou morrer
Mede-me a febre
Olha-me a goela
Cala os miúdos
Fecha a janela
Não quero canja
Nem a salada
Ai Lurdes, Lurdes
Não vales nada
Se tu sonhasses
Como me sinto
Já vejo a morte
Nunca te minto
Já vejo o inferno
Chamas diabos
Anjos estranhos
Cornos e rabos
Tigres sem listas
Bodes de tranças
Choros de corujas
Risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes
Que foi aquilo
Não é a chuva
No meu postigo
Ai Lurdes, Lurdes
Fica comigo
Não é o vento
A cirandar
Nem são as vozes
Que vêm do mar
Não é o pingo
De uma torneira
Põe-me a santinha
À cabeceira
Compõe-me a colcha
Fala ao prior
Pousa o Jesus
No cobertor
Chama o doutor
Passa a chamada
Ai Lurdes, Lurdes
Nem dás por nada
Faz-me tisanas
E pão-de-ló
Não te levantes
Que fico só
Aqui sozinho
A apodrecer
Ai Lurdes, Lurdes
Que vou morrer.»

António Lobo Antunes

11 comentários:

  1. O poema está giríssimo! Não o tinha por peneirento - as coisas que a Teresa partilha connosco são sempre deliciosas. E é verdade que eles são assim, fala filha de um orgulhoso e bravo militar para quem a gripe é pior que Kryptonite!

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  2. Já conhecia, mas há muito tempo que não lia e gostei de recordar.

    Ainda não li nenhum livro do Lobo Antunes. Fui assinante da revista Visão durante vários anos, onde ele escrevia uma "crónica", salvo erro, quinzenal. Algumas, achava-as geniais, do género deste poema. Outras, não as conseguia ler até ao fim.

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  3. Esse poema é divertido e infelizmente realista. Admito que o senhor é peneiroso, mas eu gosto dele. :)

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  4. Tão verdade!

    Também não consigo ler muitas coisas que escreve mas depois aparece uma ou outra que me encanta.

    Beijinho grande

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  5. AH! gosto tanto do ALA que até lhe perdoo a "peneirice" :)

    e esse poema é delicioso...já conhecia

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  6. Tenho a mesma embirrão por ele (essa história da tradução) é maravilhosa mas confesso que esse poema me arrancou um sorriso!

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  7. Adoro o Lobo Antunes, com toda a sua arrogância e todas as manias. Tem uma ternura no olhar (e na escrita) a que não resisto. Sou leitora dele há muitos anos, e já li tudo o que escreveu. Esse poema é simplesmente delicioso.
    Beijo enorme para si, Teresa.

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  8. Um beijinho, Teresa, e trata de vencer essa batalha, essa guerra.

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  9. Adorei o poema... Que seja vaidoso, não importa escreve bem....

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  10. ....somos assim...uma mistura aleatória de génio e parvoeira!.

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