segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O homem ideal

Ao longo de quase seis anos de blogosfera encontrei muita coisa escrita sobre essa entidade nebulosa, o homem ideal. Que tinha de ter esta e aquela características, e que Deus o livrasse de cometer certos erros que o riscavam para todo o sempre dos candidatos apetecíveis ao nosso afecto. Confesso que isto sempre me causou estranheza. Lia, muitas vezes francamente divertida, as listagens para mim absurdas de atributos desejáveis e de senãos intoleráveis. Levianamente, muitas vezes, atribuí-as a falta de maturidade de quem escrevia. Duas objecções, como cedo percebi: frequentemente, as autoras de tão draconianos juízos já iam a meio da casa dos trinta; não me lembro, nem sequer aos vinte anos, de ter ideias destas. Porque sempre achei que o homem ideal era aquele que encaixava bem connosco, e que isso não era uma questão de nos ler versos ao ouvido (e aqui confesso que nem estou muito bem a ver a coisa, apesar de já ter lido versos a dois e em enorme comunhão), ou de nos surpreender com presentes fabulosos a toda a hora, mais ramos de flores e viagens inesperadas para destinos de folhetim de televisão. É certo que vivi todas essas coisas, mas nunca foram parte da equação.

Nunca tive em mente qualidades imprescindíveis para me interessar por um homem, para detonar aquele interesse que pode (ou não) transformar-se em amor. Tal como nunca tive presentes objecções inapeláveis. Que não se drogue, que não seja um bêbedo, que trabalhe e tenha interesses na vida, que tome banho todos os dias, que lave os dentes várias vezes ao dia, que não use meias brancas ou tenha tatuagens? Isso nem são requisitos, são coisas básicas, nem se perde tempo a pensar nelas. No meu mundo as pessoas não são assim, ponto final.

O que sei, e é a única coisa que sei, é que há um momento mágico em que nos apercebemos de que aquele homem se insinuou em nós e passou a ser o único. E pode ter passado muito ou pouco tempo. E não é por uma listagem de qualidades, algumas bem patetas. É por uma questão de pele, de sintonia, de empatia, da sua pessoa a fazer-se cada vez mais presente nos nossos pensamentos até àquele momento em que descobrimos que é a sua imagem e as coisas que nos disse, por mais miudinhas que sejam, que já não nos largam.

Não tive poucas relações, mas grandes amores, e nunca será de mais dizê-lo, tive apenas dois. Dois e meio, melhor dizendo. E notem que não retiro importância aos outros, continuo a guardar afecto a quase todos, os que foram fogachos e entusiasmos passageiros. Não eram para mim, ou eu não era para eles, ou pura e simplesmente não era a altura certa. Se tinham todos coisas em comum? Claro que sim. Inteligência, sentido de humor e cavalheirismo. Integridade e bondade. E uma profunda sensatez, qualidade que muito prezo.

Deixem-me elaborar um bocadinho. O meu primeiro amor surgiu quando eu era muito novinha. Durante meses vivemos lado a lado sem que eu, ainda tão criança, tivesse qualquer estremecimento de um coração que se entregava muito mais à música, aos livros e aos jogos de matrecos no Circuito. Achava-o lindo, encantador, uma companhia fantástica, mas durante muito tempo não pensei no assunto. Até ao dia. E depois foram quase cinco anos.

O segundo amor veio de forma diferente. Eu já com vinte, quase 21 anos. E lembro-me muito bem da noite em que nos conhecemos, 24 de Julho de 1981, uma sexta-feira. E eu furiosa com uma amiga a suplicar-me um bind date com o grande amigo de um menino que eu não podia reprovar mais, tão mal a tinha já tratado. Danada, e a pedir desculpa, cancelei o cinema que tinha combinado com um bom amigo, arrastei-me para aquela saída como quem cumpre penitência. De rabo de cavalo e cara lavada, um simples vestido branco de alças. Predisposta a detestar o meu suposto acompanhante. E assim foi durante umas boas horas, nem devo ter olhado duas vezes para ele (e se era uma brasa!), mantive a casmurrice. Passagem na Versailles e eu malcriadamente a demorar-me imenso tempo a conversar na mesa de amigos encontrados por acaso. Passagem num bar esquisito e com ares de frequência de extrema esquerda para os lados da Sé (não me lembro do nome, nunca lá voltei), e eu quase muda, a responder por monossílabos desinteressados, a fazer um frete descomunal. A seguir, muitas franzidelas censórias de sobrancelhas aos olhares suplicantes da minha amiga, e para pôr fim àquele calvário, ainda fomos a casa do meu suposto acompanhante. Que era a casa dos pais dele, claro, tinha apenas 22 anos. A minha amiga e o outro imbecil (que nunca mais consegui tragar) arrulhavam a um canto. Eu pus-me a inevestigar os livros das estantes, sempre curiosa de saber o que lêem os outros. E encontrei os Contos de Oscar Wilde, em português. Como desde os 16 anos (obrigada, querida Dr.ª Teresa Monteiro!) só o lia em inglês, tirei o livro, fui direitinha à procura do final de O Principe Feliz, tentando avaliar a qualidade da tradução. Foi quando o M. chagou ao pé de mim, a estender-me um copo e a perguntar o que estava eu a ver. Suponho que a minha paixão por Oscar Wilde terá sido mais forte, porque lhe contei resumidamente a história e lhe li o parágrafo final, que na minha cabeça continuará sempre a ecoar em inglês:

«Bring me the two most precious things in the city, said God to one of His Angels; and the Angel brought Him the leaden heart and the dead bird. 
You have rightly chosen, said God, for in my garden of Paradise this little bird shall sing for evermore, and in my city of gold the Happy Prince shall praise me.» 


Infelizmente, tenho a certeza de ter lido com lágrimas já a tremular na voz, tanto este conto me comove.

Depois disso só me lembro de termos conversado muito tempo, eu menos hostil, menos avessa, um puff com os nossos copos pousados de permeio e música que ele pôs de que só lembro Joan Baez e Leonard Cohen. E lembro-me muito bem de Forever Young (por ela) e de Suzanne (dele) tocarem, e do silêncio reverente dos dois. E de, a certa altura, eu ter começado a reclamar, era tarde e no dia seguinte não só trabalhava ao meio-dia no Disaster como tinha de fazer o turno da noite, em substituição de um colega. Os meninos foram levar-nos a casa.

Tudo isto para dizer que a tal empatia, que provavelmente até começou nessa noite (e da parte dele deve ter começado, já que na noite seguinte apareceu para jantar no Diasaster, ficando com toda a firmeza até à minha saída, tendo acabado os dois a noite num Ad Lib à cunha sentados no degrauzinho por baixo do balcão do bar, numa tagarelice sem fum), nem foi consciente a princípio, como nunca é, ou pelo menos comigo nunca foi. E eu sempre agradada, sempre a gostar das nossas conversas, sempre sem sentir mais nada, ele já a telefonar-me diariamente. Até dois ou três dias depois, o tal momento em que há um estalido e de repente percebemos que estamos apaixonadas. Acho que foi no dia do casamento real que tão mal acabou que comecei a desconfiar de que aquele senhor estava a começar a ser muito importante. Fomos ao Fox Trot e ficámos horas à conversa à porta de minha casa. Julgo que no dia seguinte eu já respirava M. por todos os poros.

Nem no caso do D. nem no do M. parei para pensar se preenchiam requisitos — até porque eu nem requisitos tinha, a haver requisitos eram apenas coisas óbvias com que não se perde tempo. Foi uma construção, uma questão de tempo, mais vagarosa  num caso, mais rápida noutro, cada uma de acordo com a idade, tudo no tempo certo. E essa é bem uma das coisas mais preciosas da minha vida, tudo ter sido vivido no tempo certo, nem antes nem depois.

Foi sempre uma misteriosa e surpreendente comunhão de almas, um riso inesperado e cúmplice, um súbito e alarmante aperto na garganta. Nada que passasse por abrir portas, puxar cadeiras ou apertar o casaco para cumprimentar alguém ou ir dançar, tudo coisas que eles faziam naturalmente, como quem respira.


14 comentários:

  1. Sábias palavras. Sempre me fez muita confusão os pré-requisitos. Acho que é como diz, uma questão de pele, de empatia, de encaixe. Não importa se é alto, se tem barba, se abre a porta.

    Acho que essas coisas de preferências e defeitos insuportáveis, além do básico, é para gente que sonha e/ou vê demasiadas novelas, séries e filmes e nunca gostou verdadeiramente. E o pior é que muitas vezes essas pessoas destroem à partida bonitos relacionamentos à custa desses preconceitos. E continuam a achar que o príncipe encantado chegará.

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  2. Teresa

    Tem toda a razão.
    Mais uma em que estamos de acordo!

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  3. :)

    Mais uma entrada linda de morrer. Curioso que falo dos meus requisitos mas personifiquei-os numa fachada de um edifício.

    O amor tem tanto de belo como de misterioso. Nunca tive "homens tipo" e acabo por me apaixonar sempre por aqueles que nem um olhar furtivo me roubariam na rua.

    Mas é essa a beleza do amor, sem nada procurar encontramos alguém que nos preenche...

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  4. Raios me partam, que a resposta aos vossos comentários não foi publicada. E duas eram bem extensas! Já volto, desculpem!

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  5. Oh, gostei tanto. O amor não se faz preceder de listagens, não é um concurso, não é uma entrevista de emprego. Aparece e pronto, quando damos por nós estamos ali estatelados, e às urtigas com o ser alto, loiro ou moreno, gostar de pataniscas ou de arroz de polvo. Acontece e pronto.

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  6. Meninos, acho que vou transformar a resposta aos vossos comentários num post, que o assunto dá pano para mangas.

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  7. Uau que texto tão intenso, que coloca o dedo na ferida, que nos alerta que o tempo não pára e que quando acontece gostar de alguém o melhor é deixar fluir.
    Abraço

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  8. Aguardamos a resposta então, desde que não venha numa garrafa de água de Fielas :) brigado pela gargalhada matinal!! ^^

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  9. As tuas historias de amor sao lindas. Todas as historias de amor verdadeiro sao lindas. Mas acho que ha epocas e epocas e requisitos todos nos temos, somos humanos.

    Se o M tivesse sido antipatico, nao tivesse demonstrado interesse, nao te tivesse dado atencao nem te fosse fisicamente apelativo, nao teria sido teu namorado na altura. Logo tambem tu tens requisitos alem dos "basicos": que tenha bom gosto em musica e literatura, e que saiba estar da forma que tu aprecias estar. Pode nao ser com bouquets de flores, como outras mulheres apreciam, mas que seja da forma que tu aprecias.

    Outra diferenca grande que noto e' a forma como se namorava ha 10 ou 20 anos atras e a forma como se namora agora. Hoje em dia e' muito mais frequentemente os casais se conhecerem por internet, no facebook ou websites, onde e' tanta a potencial escolha que nao ha tempo para vir a conhecer cada um com tempo. A pre-seleccao e' feita muito mais rapidamente, dai' os criterios de escolha serem mais expressamente visiveis.

    Eu nao tenho homem tipo tambem. Mas nem os meus requisitos "basicos" sao os teus. Nao me importo com tatuagens, meias brancas ou mesmo que use drogas recriativamente. Ja, no entanto, dificilmente me sinto atraida por um homem gordo, por exemplo, ou baixo. Mas a unica coisa que verdadeiramente todos os homens da minha vida tem em comum e' serem estupidamente inteligentes. Eu, que nao tenho propriamente um QI baixo, tenho que lhes admirar a inteligencia e sentir que eles tem algo de novo a me ensinar. E' por esse lado que me conquistam... E' esse o meu requisito, o meu "basico", que nao e' basico para a grande maioria da populacao, felizmente!

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  10. É como a mulher ideal:

    http://jiboiacega.blogspot.com/2010/10/mulher-ideal.html

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  11. Não há homens ideais... há pessoas que encaixam em nós e há os que não encaixam. Essa comunhão de almas é muito bonita de encontrar.

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  12. Este texto está fantástico (mais um), é tão bom ler as suas histórias...

    Tive várias discussões com a minha melhor amiga a propósito da questão do homem ideal. Eu dizia-lhe que há requisitos que nem se põem em causa, ela falava-me de amor e uma cabana. Continuo a achar que tenho razão e ela a viver ano após ano com o homem que é tudo menos ideal. Talvez tenha razão e eu ainda não o tenha descoberto.

    Dois parênteses. Também tenho os Contos do Oscar Wilde, descobri há muitos anos numa colecção antiga da minha mãe. E um dos bares que mais gostei de conhecer em Lisboa quase há uns 10 anos, foi o Foxtrot, ainda sabendo que já não é o que era.

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  13. Só pela banda sonora já me encheu o coração. Lindas histórias.

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