sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Uma questão de ouvido

Bem sei que nem toda a gente nasce com jeito para línguas (e aqui já estou a rir para dentro só de me lembrar do pobre Obélix, que, em definitivo, não era doué pour les langues, em Astérix e Cleópatra, a reproduzir verbalmente uns hieróglifos muito toscos), mas um pouco mais de ouvido e, sobretudo, de atenção, não fariam mal nenhum.

Quando aos 12 anos comecei a aprender inglês, com a nossa saudosa Miss Sá Marques, neta de presidente da República e a última criança a nascer no palácio de Belém, das primeiras coisas que ela deve ter-nos ensinado foi o alfabeto inglês. Para tal até se socorreu de uma canção, que ainda sei de cor, com a melodia da comptine francesa Quand Trois Poules Vont Aux Champs, que eu tinha aprendido aos dez anos. Suponho que com a maior parte das pessoas terá acontecido o mesmo, e que muito cedo terão aprendido o alfabeto. Mas os locutores de televisão insistem naquele GFK para JFK, nada a fazer.

E palavra que não sei mesmo o que pesa mais, se a surdez ou a falta de atenção. A jornalista da Reuters que faz o comentário das bolsas na SIC Notícias fala sempre em "Wool" Street, querendo referir-se a Wall Street. E passamos a ter qualquer coisa como a rua da lã. E quantas pessoas conheço que insistem num irritante "eiple" (ler à portuguesa) para apple, e que deve pronunciar-se "éple"!

A televisão é um manancial inesgotável de asneiras de pronúncia, das quais já aqui referi algumas. Ultimamente tem aparecido uma referência publicitária a uns restaurantes Wok the Walk. O locutor lê aquele walk inteirinho, com l e tudo (o l não se lê, e as duas palavras devem ter quase-quase o mesmo som, com uma muito subtil diferença). E que dizer da pronúncia daquele anúncio ao som de All Together Now, dos meus queridos Beatles? Escusado será dizer que aquilo sempre me irritou imenso, por duas razões: por mexerem nos Beatles e pela pronúncia. A seguir apareceu uma coisa chamada Duetos Improváveis ao som da mesma música, e arrepelei os cabelos com aquele together com o r final, que é mudo, ali bem marcadinho, para que não houvesse dúvidas!

O nosso crescimento e a nossa aprendizagem são constantes. Posso garantir-vos que já passava dos 30 anos quando me apercebi de que toda a vida tinha pronunciado mal certas palavras inglesas. Surdez ou falta de atenção? Não sei qual das duas, mas fiquei estupefacta quando se fez luz. Como foi possível não ter percebido mais cedo? Palavras em que a consoante final, normalmente um b, é muda. Exemplos? Lamb (cordeiro) lê-se "lam" — lembro-me da incompreensão de Larry King, aquando da campanha presidencial de 2004, tendo como convidada Teresa Heinz Kerry, quando ela, em resposta a não sei que pergunta, usou a palavra "lamb", bem à portuguesa, ali com o b bem explícito, apesar de viver nos Estados Unidos havia tantos anos; ele acabou por perceber. Ahhh! Lam!!! Numb (dormente, entorpecido, etc.) lê-se "num", oiçam a música que está a tocar. Bomb lê-se "bom" — vão ver o vídeo Sex Bomb, de Tom Jones, e abram os ouvidos. Bomber (bombardeiro, bombista), lê-se "bomer", ou "bomar", como preferirem, já que estou a tentar encontrar equivalente na nossa pronúncia, sem perder a raiz inglesa. Plumber (canalizador) lê-se "plumer", ou "plumar".

No meio de todas estas considerações, um apontamento e uma ressalva que me parecem importantes. Mário Soares foi muito troçado pela sua execrável pronúncia de francês (não obstante ter, parecia-me, um bom vocabulário). Com o nosso anterior primeiro-ministro e o inglês ainda temos muito fresca na memória a chacota que ia pelo YouTube (por essas e por outras é que eu ficava inchada de vaidade quando ouvia o ex-presidente Jorge Sampaio falar inglês). Apontamos o dedo aos nossos e ignoramos os de fora. Ponham políticos de um país qualquer a falar outra língua que não a sua e garanto-vos que ainda fazem pior figura (se a língua-mãe for o espanhol é o terror total). Alguma vez ouviram o francês de membros da família real inglesa? É difícil perceber uma única palavra. Já ouviram a pronúncia de inglês da multimilionária Ivana Trump ou de Diane von Fürstenberg, radicadas nos Estados Unidos há bem mais de trinta anos? É de fugir para as colinas!

Contas bem feitas, o mais importante de tudo é que nos façamos entender. Mas um esforçozinho para estar atento ou abrir os ouvidos não custa assim tanto.

26 comentários:

  1. Hum... talvez isto seja coisa de differentes pronuncias norte/sul, este/oeste, mas sempre ouvi apple com um A bem aberto AAple, nao e'ple. Porque a consoante dobrada abre a vogal anterior. Como em ammonia, alliance, etc.. sempre A aberto.

    As palavras em que o b e' mudo no final tem a outra consoante mais longa. Tipo lamb le-se lammm (ou melhor lemm com circunflexo no e), nao so lam. O b mudo prolonga a consoante anterior, e e' assim que se denota a ortografia lamb e nao lam.

    Mas os estrangeiros sao muito piores que nos. Melhores talvez os germanicos/escandinavos. De resto... um pavor. Nunca mais me hei de esquecer um namorado espanhol que tive nos US, que no primeiro "date" se queria gabar dos seus conhecimentos de matematica: "You don't know the Pitchum Wall theory??" Dizia ele... e eu "No, never heard of that Pitchum Wall". E tempos mais tarde me mandou um link online para a teoria do "Pigeon hole"... uma lemma muito simples de logica. As desse eram tantas, umas atras das outras, que acho que andei com ele um ano inteiro so porque nao parava de rir. Tenho pena nao manter apontamentos.

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  2. Devias ter tirado notas, aposto que havíamos de rir muito! :))

    Aquilo que aqui escrevi são tentativas grosseiras de grafar a pronúncia correcta para português perceber, bem sabes. Não é fácil que fique inteligível.

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  3. Teresa, não te esqueças da questão das pronúnicas. Há o eruditismo inglês e o "boémismo" irlandês, por exemplo ;)

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  4. Sim, mas por maior que seja a diversidade de pronúncias, aquele b final é sempre mudo, nos casos que referi.

    E se estivermos a falar da Received Pronunciation então, nem se fala.

    Os escandinavos são, de longe, os estrangeiros com melhor pronúncia de inglês.

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  5. E a confusão que se gerou na minha cabeça quando em Londres ouvia falar em Leis'ter Square? Uns cinco anos de British Council e esqueceram-se de me ensinar esta subtileza. :D

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  6. A propósito do Britânico, na preparação para os exames do First Certificate e do Proficiency, por causa da prova de entrevista, mostraram-nos exemplos de más entrevistas. A sério, árabes e espanhóis a falar inglês fazem pela nossa auto-estima o que o Vasco da Gama não conseguiu.

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  7. Izzie, essa aprendi logo com 13 anos, no 4.º ano, quando estudávamos a cidade de Londres. Os professores do Liceu de Camões não brincavam em serviço. :)

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  8. Mas a sério, só se no British Council o nome da praça nunca calhou em conversa!
    Experimenta ouvir os nossos locutores a dizê-lo. :)))

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  9. Nunca mais me esqueci, já foi há alguns anos, no sul de França. O meu marido e eu não somos muito versados em francês e não conseguíamos entender o encarregado da pensão em que dormimos. Falava de enfiada (penso que o maior problema estava na velocidade)e, numa qualquer pausa, conseguimos perguntar: do you speak english? Yes, yes - respondeu e começou a debitar o seu inglês. Foi pior a emenda do que o soneto. Algumas frases mais à frente, estávamos a implorar: parlez-vous français, s'il vous plait!

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  10. Cristina, não se sentiram de repente dentro de um episódio do Alo Alo? :))))

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  11. Teresa, só discordo consigo ali no "together". Bem sei que os Beatles são ingleses, mas em inglês americano o "r" final pronuncia-se (logo, o pessoal dos duetos improváveis até tem desculpa ;)).
    Fiz um vídeo para o Youtube há pouco tempo precisamente sobre a forma tão característica como os portugueses pronunciam determinadas palavras em inglês (um exemplo é esse da "aple" em vez de "apple"; outro, a nossa tendência para tirar "h" de uns sítios e pô-los noutros onde não existem).

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  12. :D
    Se bem que aí era o contrário: uma série inglesa a imitar franceses. E ainda havia um que falava um inglês muito esquisito, que era para imitar um inglês que julgava falar francês, mas que os franceses não entendiam...
    Uma confusão, que ninguém entendia. Mas era precisamente esse o objectivo. Só mesmo ingleses para se lembrarem de coisas dessas ;)

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  13. Exactamente. Aquilo era um chorrilho de disparates de chorar a rir.

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  14. Secretária, levantou uma questão interessante, a da pronúncia de together nos Estados Unidos. Com 50 estados e tantas pronúncias não tenho a certeza, mas encontrei este site interessante:

    http://pt.forvo.com/word/together/#en

    Eu tento seguir a received pronunciation (http://en.wikipedia.org/wiki/Received_Pronunciation) o melhor de que sou capaz, tal como, nas palavras em que a grafia britânica e a americana são diferentes, uso a britânica.

    A questão dos hh mudos e dos hh expirados é muito engraçada, e a AEnima, que vive em Bristol, pode confirmar-lhe que os próprios britânicos, digamos que os menos instruídos, também tendem a fazer isso mesmo, a trocá-los.

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  15. Sim... os hh.. trocam o "whom" pelo "who" muitas vezes e muitos outros que nao me lembro agora. Mas nesse aspecto, os americanos (mais pobres, em particular afro-americanos) fazem erros gramaticais muito piores: "Yous people" e "We was" sao frequentissimos!


    Por falar em Leicester square e ler-se Lester, eu por ca ando muito por South Gloucestershire se le Glostasher?

    O together em "americano" pode ler-se o r, mas o mais comum e' nao se ler. Alias, ate escrevem em linguagem sms como togeda

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  16. A questão do whom vs. who já é gramatical, é outra conversa.

    Apontaste outro exemplo muito bom, Gloucestershire.

    Só te digo que estou encantada com este site, ouve aqui:

    http://pt.forvo.com/word/gloucestershire/#en

    E, já agora, a cidade:
    http://pt.forvo.com/word/gloucester/#en

    Confirmas portanto a minha ideia de que nos Estados Unidos também se diz together sem o r, e que até é mais comum.

    O livro que ainda estou a ler (interrompi-o), The Help, é escrito nessa linguagem afro-americana inculta. Não querendo ser elitista, a pronúncia dos estratos mais pobres em Inglaterra é de fugir. É feia, é rasca. Não há país como a Inglaterra para, mal bares a boca, denunciares o meio a que pertences e em que tipo de escola estudaste. Por isso sorrio quando oiço Victoria Beckham falar. Aquelas histórias de ir de Bentley para o colégio em miúda, etc. e tal. parecem-me uma bela fantasia. Tem tudo menos a célebre received pronunciation.

    Sabes que já estive muitas vezes em Londres. Das coisas que melhor lembro é de à noite, às vezes com um frio de rachar, vinda do restaurante e a caminho do hotel, passar pelas boîtes do West End e de à porta estarem hordas de inglesas de mau ar, de sandálias e pernas ao léu a tentarem entrar (sem sucesso). Uma vez assisti a uma cena horrível, o porteiro perdeu a paciência com uma e ela desatou aos berros no meio da rua a insultá-lo, com muitos fuck you, que me soavam fock you. Tão grosseiras, tão ordinárias, credo!

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  17. eheheh... eu ja cheguei a viver no norte... Um pavor. Por pior que os americanos sejam em termos gramaticais e de pronuncia, a verdade e' que gosto muito de muitas pronuncias americanas, bem mais que a maioria das inglesas. Ate no calao sao mais musicais e me soam melhor: "Whatchu be talkin' 'bout ol'lady?" de uma americana negra em vez de "wha' da fock ur talkin' abou' ma lassie?" do ingles...


    Lembrei-me agora de outra que erramos tantas vezes, mas nao somos os unicos. "Quay"... de doca, que nao ha estranja nenhum que nao diga mesmo "quai", pronunciando o u como nos pronunciamos "quando", quando se le "key", exactamente igual a key de chave.

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  18. P.S. para a Secretária: adorava ver esse seu vídeo!!
    Não quer pôr aqui o link ou, pelo menos, enviá-lo por e-mail? :)))

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  19. AEnima,

    Confirmas portanto que eles dizem mesmo fock. E esse lassie é medonho. Já para não falar no love, que abomino!!!

    Tens razão, o inglês de Inglaterra, quando rasca, é infinitamente mais agressivo para os ouvidos. Tão, mas tão feio!!!

    Acho que um dos estados americanos com pronúncia mais cerrada é a Carolina do Norte, coisa que nem se percebe bem, se virmos a localização no mapa. Uma vez, em Key West, apanhei uma empregada de restaurante que era de lá. Foi difícil disfarçar a vontade de rir. Por um lado é muito cantado, cheio de subidas e descidas, por outro lado é difícil de perceber.

    E acabas de tocar noutro ponto em que quase todos os portugueses se espalham ao comprido: as palavras acabadas em ey. Era minha intenção referi-lo no post e depois esqueci-me. Dizemos Disney, Berkeley, etc, quando é Disbi, Berkeli, e por aí fora.

    E a risota que na pronúncia de nomes como Plymouth, Bornemouth ou Dartmouth?

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  20. Sem querer meter muito a colher, porque nestas coisas há sempre mais para aprender, gostava de mencionar que nos Estados Unidos (vivi em NY e agora em Maryland) sempre ouvi o "r" do "together". E estava aqui a perguntar ao meu "rapaz-amigo" texano e, segundo ele, na pronúncia dos estados do sul também está lá. O que eles fazem é transformar aquele "e" antes do "r" em "u" ("togetuhr"). Ah, e segundo ele também, uma das pronúncias americanas que come o "r" é o dos Americanos-Italianos (pensem Tony Soprano).

    Quanto a pronúncias de classes baixas, uma que me faz uma comichão impressionante aos ouvidos é o "aks" em vez de "ask". Ouve-se mais nas cidades e está associado a uma cultura gangster urbana bastante recente.

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  21. Cabelo à Lua,
    Parece que estamos mesmo num impasse quanto ao together! Mas é forçoso darmos a primazia a quem vive no país ou nasceu nele, como é o caso do "rapaz-amigo". :)
    E sim, estou a ver o que quer dizer com o sotaque italiano, mesmo nunca tendo visto os Sopranos (lacuna a suprir, eu sei).

    Essa do aks que me conta é para mim completa novidade, mas como diz que é coisa recente fico mais descansada. Não vou aos EU há três anos e nem imagina as saudades!

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  22. Jesus, Maria, José, essa do "eiple" dá cabo de mim. E já reparou no anúncio da "My Label" (cosméticos do Continente)? Um medo. Em casa sempre falámos as duas línguas e o pai não tolerava que se pronunciasse nada com o mínimo sotaque. Com mais ou menos vocabulário a pronúncia em qualquer língua estrangeira tinha de ser impecável. Tudo bem que com o meu background que não é 100% português tenho desculpa, mas é uma questão de método. Os portugueses têm a péssima mania de não pronunciar as palavras e os nomes correctamente (mesmo na própria língua) e achar que não faz mal. Por isso escancaram as vogais e marcam as consoantes, mas depois aceitam um acordo ortográfico que suprime as consoantes que dão graça e elegância ao próprio idioma. Bizarro.Povo indisciplinado o nosso!

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  23. Essa do "aks" nao e' novidade para ti T, tu e' que nao estas a ver bem. Lembraste do filme a time to kill? Em que o Samuel L. Jackson mata os violadores da filha e e' julgado? Ha uma cena no filme em que eles estao a questionar o policia que perdeu uma perna porque foi acidentalmente apanhado por uma bala qdo ele matou os violadores. Fui-te buscar o dialogo abaixo ao imdb. Quando o Carl diz "ask him" e diz isso varias vezes, ouve bem... ele pronuncia "aks him" de todas as vezes, nunca "ask".

    Aqui esta o dialogo para o localizares melhor se vires o filme:





    Carl Lee: Ask if he thinks I should go to jail.
    Jake Tyler Brigance: Carl Lee, they amputated his leg because you shot him. He's the prosecution's witness.
    Carl Lee: You're my lawyer ain't ya? Ask him.
    Jake Tyler Brigance: Your Honor, one question.
    Judge Omar Noose: Make up your mind, Mr. Brigance.
    Jake Tyler Brigance: Deputy Looney, do you think Carl Lee shooting you was intentional?
    Deputy Dwayne Powell Looney: No sir. It was an accident.
    Carl Lee: Ask him!


    E eu tambem me lembro de ouvi o r em together nos US, em brancos classe media. Mas e' muito banal e frequente eles transformarem o th em D e dizer togeda.. ou togeduh... Lembro-me disto mais associado ao que eles chamam "nigga speak" o falar 'a preto, muito frequente por exemplo na carolina do sul, em que a populacao negra ultrapassa a branca.

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  24. Beatles e Pink Floyd ? Este blog gosta de boa música. Obrigada por estes esclarecimentos. Agora que falou nisso fez-se luz, mas a verdade é que eu também dizia bomb e numb...

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  25. Sissi,
    Nunca vi esse anúncio (é raro ver os quatro canais generalistas), fico avisada e antecipadamente receosa.
    Acordo Ortográfico? Don't get me started on that! Até há no blogue uma etiqueta sobre a matéria (barra lateral).

    AEnima,
    Não vi o filme, para mim foi mesmo novidade. Sempre a aprender! :)

    Sandra,
    Indiscutivelmente uma das melhores músicas dos Pink Floyd.

    Ex-mulher,
    Este blogue gosta de música, ponto final. Boa, claro, a outra não existe para mim. :))))

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