Julgar um livro pela capa
Foi a questão da pornografia no programa de Dr. Phil de ontem que me trouxe de volta uma história havia muito sepultada no fundo da memória. E voltei a rir com gosto.
Foi há uns 14 anos e eu estava de namorado recente. Já tinha ficado uma ou duas vezes em casa dele, ainda em regime de castidade (que isto não é ao toca e foge), ainda com uma certa cerimónia de parte a parte.
Numa manhã de fim-de-semana fui à cozinha tirar um café. Ele, sempre preguiçoso, deixou-se ficar na cama. Café tirado, fui saboreá-lo para a sala, passeando o olhar pelas estantes, mais concretamente pelas lombadas das cassetes de vídeo. E nisto, num sobressalto incrédulo, dou com uma série de títulos que me eram muito queridos. Pousei a chávena, fui investigá-los um a um, com sofreguidão. Tosca, La Bohème, Turandot, La Traviata, Il Barbiere di Siviglia, Otello, Rigoletto, La Cenerentola, o mítico Don Giovanni de Joseph Losey... oh, meu bom Deus!
Ainda combalida, perguntei lá para dentro, para o quarto, se ele gostava de ópera (mesmo perante aquele magnífico estendal a pergunta fazia todo o sentido, dada a sua paupérrima colecção de CD, em que não havia um único de música clássica, quanto mais de ópera). A resposta deve ter tardado uns dois ou três segundos. Sim, gostava. Porquê a pergunta? Ora! Por causa daquela colecção de vídeos (muitos dos quais eu tinha), todos eles com grandes cantores. E a coisa ficou por aí.
Tempos depois, uma semana, duas, já não sei, tínhamos ficado de jantar, ele telefonou ao fim da tarde a avisar que a reunião em que estava ainda ia demorar pelo menos uma hora, pedia que fosse para casa dele e o esperasse lá, para não perdermos tempo — tínhamos hora marcada com uns amigos dele num restaurante.
Assim fiz. Cheguei, instalei-me, olhei em volta... e os olhos fugiram-me para aquele íman irresistível que eram os vídeos de ópera. Que bela maneira de passar o tempo de espera! Sem hesitar, peguei numa Bohème com Ileana Cotrubas e Neil Shicoff que nunca tinha visto e muito me interessava. Televisão e vídeo já a postos, abri a caixa e pestanejei, desconcertada. Lá dentro uma cassete de gravação doméstica. O título, escrito à mão (jamais esquecerei), era Pancada de Meia-noite. A conclusão mais óbvia seria ter havido troca de caixas e de conteúdos, mas tive logo ali um mau pressentimento. Que se provou muito acertado — foi com aquele namorado que aprendi em definitivo a confiar na minha intuição. Abri as caixas uma a uma. Lá dentro era sempre a mesma coisa, filmes gravados em casa, títulos manuscritos. Abundavam os filmes de acção e pancadaria, havia uns outros tantos pornográficos. E, heresia das heresias, dentro da caixa do mítico Don Giovanni de Losey estava o não menos mítico Garganta Funda (que nunca vi). E poupem-me analogias entre as capacidades vocais de Ruggero Raimondi, Kiri Te Kanawa e Teresa Berganza e a elasticidade uvular de Linda Lovelace, por favor.
A explicação para tamanha fraude? Ele gostava de ter tudo bonitinho e organizadinho. Um amigo, dono de um clube de vídeo, dava-lhe capas (os filmes para aluguer iam com fotocópias das mesmas), as capas dos filmes que tinham menos saída e ficavam a apodrecer na prateleira. As óperas, claro!
Seja como for, não se perdeu tudo. Dentro de uma daquelas caixas estava Die Hard (o primeiro), que eu nunca tinha visto. E de que gostei imenso.
Este namorado forneceu-me histórias delirantes. Merecia uma etiqueta aqui no blogue. Acaba de ser criada. Já o referi de passagem uma ou duas vezes, é só localizar os posts.
ahahahahaahahahahah tu desculpa mas ahahahahaahahahha é bom demais!!! ahahahaahahahahahah
ResponderEliminarNUNCA mais vou olhar para uma capa de DVD de ópera da mesma maneira!! ahahahahahaahahahahah
A etiqueta "o que eu merecia era que me internassem" é divinal. de repente lembrei-me do meu ex-marido (era nova, há erros que uma mulher com mais de 30 já não repete, e aprende a confiar na intuição, ora se aprende). Já muito me ri neste blog hoje.
ResponderEliminarJoaníssima,
ResponderEliminarO Pitx acaba de me confessar no Facebook que nas caixas dele o título era "Fórmula 1". Sabia que ninguém lhes pegava. :)))
Muito maravilhoso. Faz-me lembrar uma história passada comigo (quase tão boa quanto esta). Hoje se tiver tempo, a contarei! ;)
ResponderEliminarIzzie,
ResponderEliminarEu já tinha 36, merecia mesmo ser internada.
Entretanto já localizei um post relacionado com a pessoa, já está devidamente indexado. ;)
Fico à espera, Pedro. :)
ResponderEliminarAo ir lendo a história, pensei que v. iria concluir que era uma daquelas colecções oferta (ou vendida a baixo preço) de um qualquer jornal e que o tal namorado nunca sequer tinha visto ou ouvido tais óperas. Mas a questão das capas é ainda mais hilariante. e olhe, curioso, curiso, lembrei-me nunca vi o filme do Losey. Mas já vi a Kiri ao vivo no CCB, quando daquela "cena" do ar condicionado. Já agora, diga-me que pôs, de imediato, o pikeno" c/ dono.
ResponderEliminarJC,
ResponderEliminarEu nunca vi a Kiri ao vivo. Lembre-me lá essa história do ar condicionado no CCB, por favor.
Quanto ao filme do Losey, não o considero uma obra-prima, mas não pode perdê-lo. Tem altos e baixos, tem. Mesmo assim, é uma beleza. Acredite que lhe prefiro a versão com muito menos recursos técnicos de 1954 com Furtwangler na batuta e Cesare Siepi como Don Giovanni.
Já o pikeno... ó João, não reparou no nome que dei à etiqueta? Shame on me! Mais histórias haverá.
Que delícia de história, Teresa. Como a Joanissima, passarei a olhar para as capas dos DVDs de ópera com outros olhos (desconfiados).
ResponderEliminarEu vi a Kiri Te Kanawa em recital no CCB mas não me lembro de nada sobre o ar condicionado. Conte, JC, por favor.
Nada de extraordinário: foi nos inícios do CCB e o ar condicionado fazia barulho. A Kiri, do alto da sua imponente figura de "maori", parou e mandou calar o ar condicionado. Quando à ópera tenho duas versões: de 61, com Sutherland, Eberhard Wächt e Schwarzkopf, dirigidos por Giulini, e uma de 78 c/ a Filarmónica de Viena dirigida por Karl Böhm e Sherril Milnes, Anna Tomowa-Sintow and so on. Já agora, Siepi é um excelente Don Giovanni e passei no "blog" alguns excertos.
ResponderEliminarGi,
ResponderEliminarAdmito que a história é boa, sim. A figura que eu fiz! E outras que fiz com a mesma pessoa! Fica prometida para breve a história do MG.
JC,
Obrigada pela história, adoramos saber estas cusquices.
Quando falei em Furtwangler e Siepi referia-me à edição agora também disponível em DVD, esta:
http://www.amazon.com/Mozart-Giovanni-Furtwangler-Wilhelm-Furtw%C3%A4ngler/dp/B00005ONMJ
EM CD a gravação de Giulini que refere continua para mim insuperável, e é a que oiço SEMPRE.
Post fresquinho lá no estaminé ;)
ResponderEliminarComentado, Pedro!
ResponderEliminarAs figuras que a gente faz!
O JC não se lembrou desta alternativa. :))))
http://wahparis.blogspot.com/2011/12/quando-nem-o-recheio-se-aproveita.html
Teresa, eu venho muito pouco visitá-la ultimamente, mas quando venho, devo confessar que me deparo com umas belas preciosidades!!! Hilariante, mesmo.
ResponderEliminarOuvi Kiri Te Kanawa duas vezes no CCB. No segundo recital ela voltou a falar do ruído do ar condicionado e recordou que se tinha queixado antes.
ResponderEliminarMas maior vergonha - não sei já em qual dos recitais - foi o mau comportamento do público e a desorganização do CCB: no início da segunda parte ficou a senhora especada no palco à espera que entrasse uma parte considerável do público. Ela ia batendo o pezinho e fingindo que olhava para o relógio.