Mundo muito mal feito, sr. Afonso da Maia
«Carlos, rindo, arrastou-o pelo corredor. E de repente, ao entrarem na antecâmara, deram com Afonso falando a uma mulher carregada de luto, que lhe beijava a mão, meio de joelhos, sufocada de lágrimas: e ao lado outra mulher, com os olhos turvos de água também, embalava dentro do xale uma criancinha que parecia doente e gemia. Carlos parara embaraçado; o marquês instintivamente levou a mão à algibeira. Mas o velho, assim surpreendido na sua caridade, foi logo empurrando as duas mulheres para a escada: elas desciam, encolhidas, abençoando-o, num murmúrio de soluços; e ele, voltando-se para Carlos, quase se desculpou numa voz que ainda tremia:— Sempre estes peditórios... Caso bem triste todavia... E o que é pior, é que por mais que se dê nunca se dá bastante. Mundo muito mal feito, marquês.— Mundo muito mal feito, sr. Afonso da Maia — respondeu o marquês comovido.»
Eça de Queiroz, Os Maias
Ainda estou para saber por que raio compro todas as semanas a ¡Hola! desde os 16 ou 17 anos, se só a folheio, vejo os bonecos e, regra geral, me limito a ler os títulos. Ontem tropecei numa reportagem que irresistivelmente me trouxe à memória esta passagem de Os Maias. A dita reportagem mostrava-nos as duas manas Ecclestone em todo o esplendor da sua riqueza e acompanhadas dos correspondentes sinais exteriores. Tudo excessivo, tirando aquilo que o dinheiro não compra — bom gosto e bom ar. Está bem que o pai, patrão da Fórmula 1, é de origens muito humildes (fiquei a saber, dei-me ao trabalho de ler), filho de pescador, houve certamente muito mérito e muito trabalho em tamanha ascensão. Mas não deixa de ser revoltante transformar os números vertiginosos que a revista nos revela em milhões de refeições ou em cuidados de saúde. Não deixa de ser revoltante comparar estas duas inúteis com alguém como a Maria, que toda a vida se esfalfou a trabalhar e que presentemente vive uma odisseia num país carenciado de tudo como é Timor.
Demos então uma olhadela a algumas das imagens das manas Ecclestone com que a ¡Hola! nos presenteia (e palavra que amaldiçoo o tempo que desperdicei a digitalizá-las, não estão na página da revista, não tive outro remédio).
A mana morena, Tamara, ao volante do seu Ferrari. Não podemos negar que é bonita, mas o ar está muitíssimo mais para o extinto Café Photo de S. Paulo (os homens devem saber o que era) do que para Mayfair ou Belgravia. Há mesmo coisas que o dinheiro não pode comprar.
A mana morena no seu quarto da sua mansão de Londres. Menção para a decoração intimista e acolhedora, sem mais comentários. Vejam também a panorâmica da sala de cinema, na imagem inferior. Lord, take me now!
A mana morena num modesto cantinho do seu gigantesco closet (fiquei a saber que, só de Louboutins, tem a frioleira de 14 armários), junto de algumas das suas malas. De notar o papel de parede do interior, em padrão monogramado Vuitton, sendo apenas que as letras LV foram substituídas pelas suas iniciais, TE. E continua com ar de Café Photo, nada a fazer.
Reparem nas duas imagens de baixo. A ¡Hola! informa-nos amavelmente de que Tamara tem 17 Birkins. Mas é impossível não ver também as carteiras Chanel na prateleira inferior (tentei contá-las, mas perdi a paciência). Quantas crianças poderia esta única esquina de armário alimentar, vestir e manter na escola durante um ano inteiro? Umas largas centenas, se fosse em África.
A mana loira (?), Petra, com o marido muito recente (tenho uma vaga ideia de ter visto há duas ou três semanas a reportagem na ¡Hola!, mas é a tal coisa, nem dei atenção, fiquei agora a saber que casaram no mesmo castelo de Roma que foi cenário do casamento de Tom Cruise e Katie Holmes). O novel casal na acolhedora sala (nada como o preto para dar essa sensação de aconchego) da sua mansão de Belgravia.
A mana loira (?) à secretária do seu escritório na mansão de Belgravia, ecologicamente forrada de pele de crocodilo (estou capaz de lhe encher aquelas trombas de estalos). Folgo em verificar que o ar Café Photo runs in the family. A singela moradia do casal em Los Angeles (só para o Outono, esclarece a ¡Hola!), em tempos propriedade de Aaron Spelling. Custou 120 milhões de dólares, 104 milhões de euros, mais coisa, menos coisa, sendo que o menos coisa poderia provavelmente equivaler a um belíssimo apartamento no Príncipe Real. Foi presente da mãe, croata, que arrebanhou a modesta quantia de 815 milhões de euros ao octogenário ex-marido no acordo de divórcio de há dois anos. Estas eslavas devem ter talentos inimagináveis.
Pois. O marido recente da loira (?) deu-lhe este presente de anos, apenas de valor sentimental, que esta gente não liga a dinheiro. Deve ser para quando ela tiver o capricho de guiar da mansão para ir às compras em Rodeo Drive, que andar de limo a toda a hora também enjoa.
Lembrei-me também de versos de Alberto Caeiro por causa de todo este meu ataque de maledicência, que não o é. A coisa cifra-se mais em desprezo. Não, não tenho fome da sobremesa alheia. Entristece-me é que este mundo esteja tão mal feito.
«Ontem o pregador de verdades dele
Falou outra vez comigo.
Falou do sofrimento das classes que trabalham
(Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça de uns terem dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer.
Ou se é só fome da sobremesa alheia.
Falou de tudo quanto pudesse fazê-lo zangar-se.»
Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos
Bom post, Teresa.
ResponderEliminarComo já disse no blogue do PRD, onde ele confessava gostar de ler este tipo de revistas, acho-as muito educativas, para que nos apercebamos até onde pode ir a natureza humana. Conhecer comportamentos destes, no fundo, é cultura, para que tenhamos consciência deste aspecto do nosso mundo.
Estamos sempre a aprender, tudo depende do ponto de vista.
A foto dos pais delas:
ResponderEliminarhttp://www.mdig.com.br/imagens/amor/bernie_slavica_ecclestone.jpg
-pausa para rir muito-
Parte destas posses vêm de ligações comerciais, a LV e Hermés ganham muito ao terem os seus artigos associados a estas fortunas, duvido MUITO que paguem tudo quanto têm. Tirando isso, acho a Tamara muito bonita, apesar daquele nariz agora na moda entre os cirurgiões... o pior disto tudo é haver gente que absorva que o caminho da felicidade é num closet carregado de tudo.
Gostei muito do texto...há gente para tudo , até para embarcar, como diria o Marquês de Pombal.
ResponderEliminarMas é o mundo que temos...pena que não esteja mais equitativamente dividido.
Olha eu não gostei. O dinheiro é delas, não o roubaram e ao que sei não são as únicas a fazer esta vida de hiper luxo. Ninguém sabe o que dão a quem precisa, se muito se pouco, se nada e também ninguém tem nada a ver com isso.
ResponderEliminarA Tamara é bem bonita. Muito pior ar tem a Paris e muita actriz de cinema, que só se safa nos filmes.
Sinceramente estava à espera do quê? Que quem tem dinheiro dê toda a sua fortuna porque dos pobres é o reino dos céus?
Este post soa a demagogia de esquerda e nem parece seu Teresa. Não consigo concordar.
For Christ's sake! Pensei, antes de ler, que o quarto da mana morena fosse de um hotel qualquer. De resto, nunca tinha visto estas queridas mais magras. Nem sabia da existência delas, aliás.
ResponderEliminarMundo muito mal feito, sim senhora, e é nestas alturas que tenho pena de não acreditar numa justiça divina, que corrija algumas coisitas.
ResponderEliminarNão nego que o dinheiro é delas e fazem dele o que quiserem, prafraseando alguém acima, mas tenho muita, muita pena que haja pesssoas que dediquem a sua vida à inutilidade total, podendo fazer tanto, e para tanto apenas faltando querer. Não há qualquer mérito na forma como estas senhoras ganharam tal fortuna, apenas sorte, e podiam retribuir alguma dessa sorte, ajudando quem podiam.
Também tenho muita, muita pena de quem acha que ter sucesso na vida é ter um closet tão recheado como este. E não são poucos (poucas?).
Já agora, até pensei fazer um post no meu blog, mas este é muito mais lido, por isso aproveito: a unicef está a fazer campanhas em áreas de emergência, realço o corno de África, onde há anos se verifica uma tragédia humanitária. É ir a www.unicef.pt, clicar nas patinhas de emergências e donativos, e nem que seja cinco euritos: eles explicam como tão pouco pode fazer tanta diferença. Podemos retribuir a sorte que tivémos de não nascer ali, embora!
E dou o exemplo de alguém que é multimilionário com muito mais mérito, e anda a dedicar o seu dinheiro e vida a uma causa nobre: Bill Gates associou-se à unicef, pela vacinação e erradicação da polio. Porque há pessoas que têm dinheiro e são pessoas.