terça-feira, 10 de maio de 2011

Conversa de cabeleireiro

Há muito, muito tempo, no tempo em que os animais falavam (e o Camané que nos atendia no bar da Católica era a prova viva, a ver se me lembro de vos contar amanhã), tive um gesto de rebelião e mudei de cabeleireiro. Quem me cortava o cabelo era a Nani, no 204 da Avenida da Liberdade, onde é hoje (e já há muitos anos, o Rosa & Teixeira). Mas eu tinha acabado de entrar para a universidade,  17 anos acabados de fazer, era muito tonta, queria ser como as outras e ir a cabeleireiros da moda. A Rosário, namorada do Vítor, tinha começado a ir recentemente ao Baeta, o cabeleireiro do Centro Comercial de Alvalade, e recomendou-mo. E lá fui eu, no corte de cabelo forçoso seguinte (ainda hoje, mais de trinta anos passados, só ponho os pés num cabeleireiro para cortar, continuo sem precisar de pintar, só Deus sabe até quando).

No Baeta (ao lado da Ourivesaria Camanga) pontificava o António, o homem por quem todo o mulherio queria ser atendido. Eu não era menos do que aquelas senhoras com mais do dobro da minha idade, na maior parte, e também queria que fosse o António a cortar-me o cabelo. Isto redundava numa tarde inteira, muitas horas passadas naquele maldito cabeleireiro, que não aceitava marcações. Eu entrava, punha-me na bicha, e depois era ir esperando — sempre munida de um livro, de outra maneira daria em doida. O D., meu namorado, uma brasa e um anjo autêntico, deambulava melancolicamente pelo centro comercial (pequeno) a ver e rever durante horas as mesmas montras, passando de vez em quando à porta do Baeta, a espreitar discretamente, tentando perceber em que fase do nosso comum suplício estávamos. Eu ainda estava sentada a ler? Se não me via era bom sinal, já estava lá para dentro, a lavar a cabeça, a seguir era só o corte pelo António e a secagem por uma ajudante, que o meu cabelo não tem nada que saber. A partir daí amiudava as passagens, a tentar perceber quando acabaria aquele tormento. A bancada do António era frente à porta, via-me as costas, eu sentada e embrulhada numa bata, o António de pé de tesoura em riste, via-me a cara no espelho, a arquear apologeticamente as sobrancelhas. E ia passando, e passando.

Da segunda vez que fui ao Baeta, depois de longas horas de espera e longos passeios do D. e de consequentes espreitadelas à porta, estava o António em plena operação de me podar a abundante trunfa, e surge uma pergunta inesperada:

— Eu já lhe cortei o cabelo, não já?

Ah, como me senti lisonjeada! Tinha apenas 17 anos, ia a um cabeleireiro da moda, o disputado cabeleireiro lembrava-se de mim! Era uma promoção a adulta que hoje não saberia explicar, tão parvinha acho que fui. Acenei mudamente que sim.

— Pois! Reconheci logo o seu namorado! — explicou o António, a manejar habilmente a tesoura.

Fixei-me no espelho, lá atrás estava o D., a passar mais uma vez à porta. Loiro, lindo, uma figuraça. Nunca lhe contei esta história.

O António que me cortava o cabelo não deve ter continuado no Baeta muito mais de um ano, abriu depois o seu próprio barbeiro. Mas foi como cantor que viria a ficar famoso. E morreu em 1984.

17 comentários:

  1. Nunca fui ao Baeta, mas eu não teria atributos para que o António me reconhecesse à segunda passagem. Nem todos podem ser Dês, isto é, brasas. Mas gostava à brava do António como cantor. Quanto a si espero que continue a ter o cabelo bem cortado.

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  2. Olha, pois em minha casa lembro-me sempre de se dizer quando íamos ao cabeleireiro: "foste/vais ao baeta?"

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  3. Cheguei a cortar o cabelo no Baeta, havia lá um cabeleireiro que cortava à navalha, ficava excelente. Mas nunca tive a honra de ser atendida pelo António (em 1984 ainda tinha 13 anitos, franjinha e cabelo pelo queixo - como agora, aliás ;P).
    Gosto tanto da música dele.

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  4. São histórias como esta que me fazem lamentar não ter nascido numa outra época, num outro local, com outros valores. Apesar de ter convivido neste mundo apenas uns poucos meses com Variações, o seu legado é suficiente para que esta manhã tenha sorrido com nostalgia ao ler esta história maravilhosa.

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  5. Engraçado. A mim, quem me cortava o cabelo, era o namorado do António, o Athaíde. Morreu 2 anos depois, em 1986.

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  6. Já limpei lágrimas dos olhos, não digo é porquê nem de quais.

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  7. Nunca fui ao Baeta mas a história arrancou-me um enorme sorriso.

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  8. Constantino,
    Continua bem cortado, sim senhor. Aí umas quatro ou cinco vezes por ano. A última foi em Janeiro, já pode ver o que eu gosto de ir ao cabeleireiro.

    Luna,
    Também eu toda a vida conheci a expressão "ir ao baeta" como sinónimo de ir ao barbeiro e/ou cabeleireiro. Não lhe sei a origem, mas talvez até seja fácil descobrir.
    Seja como for, acho que o nome do cabeleireiro deve ter-se devido a isso mesmo.

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  9. I.,
    Esta história passou-se já em 1978, no meu primeiro ano de faculdade. O António não ficou lá muito mais tempo, um ano, no máximo. A seguir passei a cortar com a Zé António, e acho que é a ele que se refere. Tanto quanto sei, manteve-se por lá até meio dos anos 90. Muito assediado por outros cabeleireiros, mas manteve-se fiel. Cortava que era um espanto.

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  10. Raquel,
    Acho que todos nós temos uma qualquer nostalgia de uma época que não foi nossa e que gostávamos de ter vivido.
    Eu já fiz as minhas contas há muito tempo e descobri que devia ter nascido 12 anos mais cedo. Seriam suficientes para ter vivido em cheio a época dos Beatles, em vez de ter apenas nove anos quando eles se separaram.
    António Variações é um caso muito curioso. A minha Mãe, tão conservadora e tradicional, adorava-o. Gostava da música e divertia-se com a roupa extravagante. E como ela conheço muita gente mais velha.

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  11. Stiletto,
    Isso no Baeta ou já na barbearia do António? Não me lembro de nenhum Athaíde, e havia poucos homens no Baeta. Além do Zé António, neste momento não consigo lembrar-me de mais nenhum.

    Provocação,
    Pois eu gostaria muito de saber.
    Elaborate, please! :))

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  12. Alexandra,
    A história é gira, não é? O D. vai rir bastante se e quando a ler aqui, porque nunca lha contei.

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  13. No Ayer Teresa. Ao que sei o Athaide nunca trabalhou no Baeta.
    Cruzei-me várias vezes com o António, já cantor, que ia buscar o namorado ao Ayer. E eu a apanhar a seca da vida... odiava aquilo :-)

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  14. Stiletto,
    Ahhhh! Nunca cortei o cabelo no Ayer, só lá ia maquilhar-me em ocasiões mais especiais.

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  15. Meninas, parece que o Blogger apagou os comentários posteriores, inclusive aqueles em que vos respondia. Não sei se terão chegado a ver as minhas respostas.
    So sorry.

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  16. Eu vi.
    O Athaíde trabalhava no Ayer (não no Baeta). Ví o António por lá muitas vezes, já cantor, quando ia ter com o namorado.

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  17. E eu, como lhe disse, nunca cortei o cabelo no Ayer (os preços eram um assalto à mão armada), só lá ia maquilhar-me em ocasiões mais especiais.

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