quinta-feira, 7 de abril de 2011

O Gato de Janeiro

Transcrição do artigo ontem publicado no Delito de Opinião

Por razões que agora não vêm ao caso, foi assim que lhe chamei algum tempo mais tarde, ao contar a história num jantar: O Gato de Janeiro.
Por razões que agora não vêm ao caso, foi assim que lhe chamei algum tempo mais tarde, ao contar a história num jantar: O Gato de Janeiro.

Nunca esquecerei o dia 24 de Janeiro de 2009. Foi o dia em que cumpri a promessa, antiga de muitos anos, de prestar homenagem aos cerca de três milhões de vidas que pereceram em Auschwitz. Três dias antes do 64.º aniversário da libertação do campo, a 27 de Janeiro de 1945.

A lista de nomes ilustres que por lá passaram ou lá perderam familiares é infindável (os pais do grande Billy Wilder, por exemplo, morreram em Auschwitz). Mas um nome ressalta, luminoso, a simbolizá-los a todos. O nome de uma adolescente de apenas quinze anos cuja voz cristalina continua a ecoar e a lembrar-nos que aquela tragédia aconteceu, que o Holocausto foi uma realidade: Anne Frank. O destino fez com que Anne Frank não se salvasse por muito pouco, por duas vezes, como que querendo que o seu diário (que, muito provavelmente, nunca teria vindo a público, tivesse ela sobrevivido) proclamasse para todo o sempre a infâmia, como um dedo acusador e indesmentível para toda a eternidade. O comboio que a transportou para Auschwitz foi o último a sair da Holanda com destino aos campos; Anne morreu no princípio de Março de 1945: se tivesse ficado em Auschwitz teria, possivelmente, sobrevivido; mas o exército vermelho avançava, vindo de Leste, e algures entre o fim de Outubro e os primeiros dias de Novembro de 1944, Anne e a irmã, Margot, foram levadas para Bergen-Belsen, mais a Ocidente, já na Alemanha. Recomendo a todos o extraordinário documentário Anne Frank Remembered, vencedor de um Oscar em 1995. Quando for a Amsterdão (que não conheço) hei-de visitar a casa-museu de Anne Frank. Outra peregrinação.

Ao contrário do que sucedeu em Dachau, há oito anos, desta vez fiz fotografias. Muitas. É que aquilo não pode ser esquecido. NUNCA. E levava uma incumbência. Pôr uma pedra (Os Judeus não põem flores, põem pedras) em memória do bisavô materno de um amigo, senhor respeitadíssimo e de rara erudição, de quem ele herdou um dos nomes, que morreu em Auschwitz, bem como quase toda a família desse lado, originária da Polónia. Recolhi em Auschwitz I uma pedra que depositei depois em Birkenau (Auschwitz II). É que o fim da linha de comboio, a linha de pesadelo que para entrar no campo passava por baixo daquela torre sinistra, ominosa, que visita às vezes os meus pesadelos como símbolo absoluto do Mal, era em Birkenau. Logo ali, junto à plataforma, eram feitas as selecções. Três quartos das pessoas seguiam directamente para a câmara de gás, só o quarto restante era usado (por tempo incerto e, quase sempre, muito breve) como mão-de-obra escrava. Para as crianças, os idosos e os deficientes Birkenau era o fim da linha, a morte imediata.

O Gato de Janeiro apareceu-nos numa manhã gélida, logo à entrada do campo, a seguir ao medonho letreiro de ferro que diz que o trabalho liberta. Baixei-me, ficámos uma eternidade em mimos, cócegas nas orelhas e no pescoço, ele a dar-me encorajadoras marradinhas nas pernas. Quando tentei despedir-me atirou-me uma sapatada certeira à bainha das calças, a puxar-me, acompanhada de um miado dengoso. «Não vás já embora! Quero mais mimo!» era a única interpretação possível para aquele gesto imperioso. Na atmosfera opressiva do campo, em que se fala baixinho, num sussurro respeitoso pelos horrores passados, aquele encontro cheio de afecto foi como uma pequenina clareira de sol ameno.

Esta manhã, dois anos volvidos, descobri que o meu Gato de Janeiro é célebre. Uma pesquisa no Google com as simples palavrinhas "Auschwitz cat" trouxe-me incontáveis notícias sobre ele. Apareceu um dia no campo e lá vive, anda sempre por perto da entrada, justamente na zona em que se deu o nosso encontro. Já houve até uma petição ao Governo polaco para lhe arranjar um abrigo, dados os frios rigorosos da região no Inverno. E não é ele, é ela. Insistem em chamar-lhe Rudolf ou Bruno. Prefiro chamar-lhe agora Messalina, em honra da inesquecível siamesa que morreu no meu colo três dias mais tarde, poucas horas depois do meu regresso de Cracóvia. A 27 de Janeiro, aniversário da libertação de Auschwitz, aniversário do nascimento de Mozart.

Aqui a têm, em imagens colhidas na Internet:




4 comentários:

  1. Sobre Auschwitz não sei tudo mas sei o bastante para me emocionar sempre que oiço/vejo/leio algo. Mas a história da Messalina deixou-me com uma lágrima ao canto do olho. Sou um maricas por gatos.

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  2. Também visitei Auschwitz em 2009, mas em Setembro... e não vi felinos por lá!

    http://agre-e-doce.blogspot.com/2009/09/polonia-v.html

    Foi uma visita impressionante, mas daquelas que acho «obrigatória».
    Uma amiga polaca disse-me que esta é uma visita obrigatória para eles, quase sempre organizada pelas escolas e liceus, ainda em tenra idade. Achei admirável... nós por cá temos uma tendência para «apagar» a História, sobretudo os períodos mais controversos... e por lá aprendem com a História (bem mais atroz que a nossa, diga-se)!

    Não é por acaso que logo no primeiro bloco visitável lê-se: «The one who does not remember history is bound to live through it again».

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