domingo, 10 de abril de 2011

Eles andem

Desengane-se quem pensar que a blogosfera detém o monopólio do disparate e da alucinação (fenómeno em que os últimos dias foram, uma vez mais, particularmente generosos). A coisa é contagiosa, é global e infiltra-se nos sítios mais insuspeitos, até na respeitável Amazon.

Foi graças aos Tudors, essa fascinante e monumental fantochada histórica em forma de série de televisão (caluda, já encomendei a quarta e última temporada, guilty pleasures) que há tempos deparei com a seguinte pérola, nas críticas à terceira temporada:

Este crítico, que sustenta ser descendente em linha directa de Jane Seymour, terceira mulher de Henrique VIII (não obstante desconhecer a grafia do apelido), declara ser também Henry Cavill, aquele colírio para os olhos da imagem lá de cima, senhor para qualquer mulher se atirar nua para o chão (assinar a crítica com nome substancialmente diferente não vem ao caso). Por último, porque não há duas sem três e porque é pessoa de multifacetados talentos, anuncia-se também historiador, gabando o rigor histórico da série — uma opinião verdadeiramente revolucionária. Tudo isto em escassas seis linhas pejadas de erros de ortografia. Convenhamos que é notável.

Chorei a rir com os comentários que se seguiram (podem ler tudo aqui), destaco os meus favoritos: 

This guy is a real nut case and old Henry would probably have him beheaded for inpersonation.

S. Curtis says:
This is obviously a cry for help.


Have the fellow chained and sent to the Tower to await the kings pleasure

This guy's off his meds!

17 comentários:

  1. A 1ª vez que vi os "Tudors" foi também a última, porque coincidiu com o episódio em que a corte portuguesa era retratada como um bando de selvagens, em absoluto contraste com os civilizadíssimos ingleses. Além disso, apresentaram um rei português assassinado por uma inglesa, o que abalou todas as minhas certezas acerca da História de Portugal e me lançou numa releitura da História pátria em busca de quem poderia ser tal personagem. Obviamente, não existe! Fiquei furiosa. Nem os olhos do Rhys Meyers me conseguem fazer esquecer a falta de rigor da série.

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  2. Julie,
    Também escabujei de raiva com esse episódio, que é uma invenção completa. Reproduzo no comentário abaixo um artigo de Maria José Nogueira Pinto no DN (mail enviado pela minha amiga Ana há mais de dois anos, vale a pena ler): http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=997963
    E também vale a pena espreitar o artigo sobre os (medonhos) erros históricos, ignorando a escrita vergonhosa: http://pt.wikipedia.org/wiki/The_Tudors#Erros_hist.C3.B3ricos

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  3. O artigo de Maria José Nogueira Pinto, no DN, parte I

    Acomodei-me no meu sofá para ver The Tudors, um drama histórico televisivo sobre a vida de Henrique VIII de Inglaterra. A série prometia, tinha sido difundida pelas televisões de vários países (me Portugal pela RTP) e tivera honras de Emmys e Globos de Ouro. E eu, que pertenço a uma geração que aprendeu História sem audiovisuais, vejo neste género de produção televisiva um modo entretido de relembrar episódios históricos com ganhos de familiaridade com os personagens que a simples leitura, por definição, não propicia.

    Qual não é, pois, o meu espanto quando um tal personagem denominado "Princess Margaret", supostamente irmã de Henrique VIII, é dada me casamento ao Rei de Portugal, (D. Manuel I ?). Sabendo que este nosso Rei se casara três vezes, pensei que a princesa inglesa me tinha escapado, uma falha de memória, sei lá! Inquieta, mas com a curiosidade aguçada, aguardei com expectativa as cenas relativas ao casamento, a entrada me cena da corte portuguesa num periodo aúreo da nossa História. Vi, então, como a princesa choramingava porque D. Manuel era um velho corcunda, implorando ao irmão que a troco de tão grande sacrifício lhe desse liberdade para escolher segundo marido quando enviuvasse, o que, esperava, ocorreria rapidamente.

    Após uma imagem de rara beleza do Tejo e da Ribeira das Naus, seguiu-se uma sucessão de cenas de verdadeiro horror. D. Manuel era um gnomo marreca e saltitante, desdentado e de olhar lúbrico, baboso, falando um português mal amanhado. A corte, um conjunto de velhotas vestidas de Negro, clérigos encapuçados, homens feios e sujos. As cerimónias pareciam ter como cenário uma espécie de barracão e as músicas eram espanholas (Falla?). O casamento consumou-se No que poderia ser um quartinho do Castelo de S. Jorge, com uma data de basbaques de mau aspecto rodeando o tálamo conjugal e aplaudindo grosseiramente.

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  4. O artigo de Maria José Nogueira Pinto, no DN, parte I


    No dia seguinte - assim prossegue a série - a princesa Margarida, após lançar um olhar nostálgico à sua nau, prestes a partir do Tejo, não está com meias medidas e assassina o nosso Rei, sufocando-o com uma almofada. A última imagem com que o realizador arruma o episódio português é um grande plano dos reais pés, sujíssimos, explicitando que nem para o casamento este se dera ao trabalho de ablações mínimas.

    A indignação venceu qualquer inércia que ainda restasse para confirmar a desconformidade de tão burlesca narrativa com a realidade dos factos. D. Manuel casou três vezes, com duas filhas dos Reis Católicos, Isabel e Maria e, pela segunda vez viúvo, casou novamente com D. Leonor, irmã de Carlos V. Todas eram excelentes partidos, demonstrando bem a importância, à época, de Portugal e do seu Rei. Entre a consulta à História de Barcellos e o recurso à Internet foi possível constatar a existência de muitos outros erros grosseiros. De facto a "Princess Margaret" nunca existiu e é um personagem composto a partir das duas irmãs Tudor de Henrique VIII; o rei português de então era D. João III, de vinte anos de idade; não existiu nenhum Papa Alexandre desde 1503; o cardeal Wolsey não foi preso nem se suicidou e Thomas Tallis não consta que fosse bissexual. Até na escolha dos adereços se repetem os erros, ridículos, tal como a utilização de um mosquete por Henrique VIII, arma que só foi inventada me 1630, ou seja um século mais tarde.

    Posto isto, coloco duas questões. A primeira tem a ver com este, ou qualquer outro, drama histórico televisivo. Embora se possa e deva esperar algum tempero fantasioso da narrativa, não é suposto que tal fantasia deturpe a História, alterando os seus factos, a sua cronologia, a sua geografia ou a identidade das suas figuras. Perdida a dimensão de relato histórico, o que resta passa de ficção a embuste. A segunda tem a ver com a nossa reputação nacional e quem é suposto defendê-la. Num país onde já não se ensina História, o canal estatal difundiu, que eu saiba sem qualquer reparo, uma versão vergonhosa e falsa do nosso passado colectivo. Se a Internet não mente, todos os que se sentiram atingidos foram reagindo e rectificando, excepto nós. Porque será?

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  5. Então e aquele "accured", hã?? The cherry on the cake :)

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  6. Teresa: muito obrigada por ter transcrito o texto de M.J. Nogueira Pinto. Vou confidenciar-lhe mais alguns pormenores acerca do que sucedeu depois de ter visto o nefando episódio. A minha mãe, criada em tempos do antigo regime, foi educada com um amor desmesurado pela História, que fez questão de me transmitir geneticamente (sim, geneticamente, porque só isso explica que aos 28 anos eu me tenha aventurado numa licenciatura em História e tenha, assim, passado 4 anos como trabalhadora-estudante apenas pelo prazer de aprender). Agora imagine estas duas loucas a debater quem poderia ser o tal rei e a pôr em causa tudo o que sabíamos. Já estávamos preparadas para aceitar que além de Filipa de Lencastre teria havido outra rainha inglesa na História de Portugal. Estávamos a descurar o óbvio: a falta de rigor histórico palpável em todo o episódio.

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  7. Não vi a série, mas estou a perceber o género. Bem podia o tal Ryan Gellert ter-se gabado de ser o guionista e talvez tivesse sido acreditado ;-)

    Fico desesperada com mentiras históricas grosseiras, quando bastaria a realidade para um perfeito entretenimento. Lembro-me por exemplo da série Roma.

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  8. Os Tudors foram um guilty pleasure assumidíssimo, já que de rigor histórico, estamos conversados. A cena de que fala a Julie deixou-me primeiro zonza (mas que rei é aquele? não pode? hã?), depois fula, que fui investigar tuuuudo de novo para tirar as teimas.
    É um pormenor, mas também me aborreceu aquele Henrique VIII com abdominais fenomenais até à velhice, quando era obeso já novo, mas enfim...

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  9. O que disse a I. fez-me lembrar do contraste com a descrição de Henrique VIII feita por C.J. Sansom num dos livros acerca desse período da História de Inglaterra. Aproveito para aconselhar essa série de romances histórico- policiais, que se inicia com "Dissolução". Não será literatura erudita, mas é bastante decente do ponto de vista da verosimilhança histórica... além de ser muito competente do ponto de vista do entretenimento.

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  10. Só a escolha de um actor tão contrastante fisicamente do rei é simbólico das intenções deturpadas meramente comerciais. Temos perdido grandes oportunidades de ver qualidade, sobretudo com os recursos actuais dos quais se esperaria uma superioridade qualitativa e rigorosa, mas que é engolida pelos requisitos de estética e de show que os consumidores exigem. Mea culpa que pelo Rhys me propus a ver a série, o tema interessava-me mas o actor era um aliciante superior e não devia ser assim.

    *Teresa, recebeu o meu email? Nunca dei tanto uso ao F5 :)

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  11. Provocação,
    Acabo de ver o seu e-mail. Eu tenho a caixa do blogue reencaminhada para a minha caixa pessoal. Ora a sua mensagem foi parar à pasta de spam e, como tal, não foi reenviada.
    Respondo-lhe a seguir ao almoço, sim? :)
    Beijinho.

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  12. Meus amigos,
    peço desculpa por ter começado por responder à Provocação, mas é que de facto havia uma mensagem dela que foi parar à caixa de spam.

    Vamos lá então:

    Paulo,
    Já falámos suficientemente sobre este assunto em privado. Confessa que apetece ir a correr ouvir mais uma vez Anna Bolena. :)

    Teresa,
    Os disparates ortográficos foram amplamente troçados na página da Amazon. Já para não falar nos genealógicos. Um homem que se proclama descendente em linha recta de Jane Seymour (Semor, como ele escreve), sabendo nós que a senhora morreu depois de dar à luz um único filho, que morreu com 16 anos sem deixar descendência...

    Julie,
    Isso é porque questionamos tudo, e não damos nada como certo. E porque vamos investigar. O artigo é excelente no conteúdo, tem erros de forma que me fazem suspirar por bons revisores nos jornais. Que MJNP escreva ablações (extracções, remoções) por abluções (lavagens) é lamentável. Não é gralha, é só ver a posição das letras a e u no teclado.

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  13. Gi,
    Não vi Roma, mas está nos meus planos (basta atentar nos nomes das minhas gatas para perceber o meu fascínio por esse período). Recomendo vivamente a série muito velhinha da BBC em seis episódios, The Six Wives of Henry VIII, um episódio por cada mulher. Que tenho, claro. Merecia mais episódios e mais dinheiro, mas o rigor histórico é total. Quando a comprei estava a um preço ridículo, provavelmente agora ainda estará mais barata. A não perder.

    I.
    O mesmo conselho. A NÃO PERDER. Tal como em I, Claudius, esse prodígio, o orçamento pobre redundou em benefício da densidade psicológica. Henrique VIII, o jovem garboso do 1.º episódio, que rivalizava com Francisco I, vai envelhecendo (e engordando abjectamente) diante dos nossos olhos, ao mesmo tempo que a personalidade vai ficando cada vez mais tirânica.

    http://www.amazon.co.uk/Six-Wives-Henry-VIII-Complete/dp/B000KF0WXK/ref=sr_1_1?ie=UTF8&qid=1302555809&sr=1-1

    Dez libras pela série completa, minhas amigas. Cinco estrelas unânimes em trinta críticas.

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  14. Julie e todas,
    Não conheço os livros de Samson, mas posso recomendar entusiasticamente os de Alison Weir. Começou por ser historiadora, ultimamente já se aventurou no romance histórico (são os tempos, pronto, há que pôr comida na mesa), já li o seu The Lady in the Tower, sobre Ana Bolena e a sua queda. Muito bom. Li também Innocent Traitor, sobre Lady Jane Grey, rainha por nove dias e executada com 17 anos. Muito bom.

    Mas, para mim, o seu melhor livro continua a ser o primeiro que li, há muitos anos: The Six Wives of Henry VIII. A minha opinião pode não ser totalmente imparcial, porque adoro biografias.

    http://www.amazon.co.uk/Six-Wives-Henry-VIII/dp/0099523620/ref=sr_1_6?s=books&ie=UTF8&qid=1302556338&sr=1-6

    (concordem que o preço é uma anedota)


    Alison Weir alia a uma investigação histórica rigorosa e implacável aquilo que eu mais peço a uma biografia: a interpretação psicológica do retratado. Neste caso são sete as pessoas retratadas. Henrique VIII e as suas seis mulheres. Na verdade são mais. Cromwell, Sir Thomas More (canonizado pela Igreja, personagem admirável, não obstante algumas coisas que me arrepiam), Maria Tudor, filha de Henrique VIII e Catarina de Aragão.

    Acreditem em mim, minhas amigas: isto lê-se com um prazer sôfrego. Qual The Other Boleyn Girl, qual quê! (também li, claro).

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  15. Eu precisava mesmo disto: mais sugestões de livros e séries. Sou uma escrava da amazon, é o que é!

    Vou já pesquisar isso tudo.

    Tenho na prateleira para ler Wolf Hall, de Hillary Mantel, também sobre a época. Parece que o Pulido Valente gostou (coisa rara) e é bem pesquisado.

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  16. I.,
    Também tenho Wolf Hall para ler. Encomendei-o quando ganhou o Man Booker Prize em 2009, li umas 50 páginas (que não me agarraram extraordinariamente, o que não quer dizer nada num livro tão extenso) e interrompi porque me chegou às mãos qualquer coisa muito palpitante (já não me lembro o quê). Está em cima da minha secretária no Colosso até hoje. A ver se o retomo.

    Ainda sobre séries: a seguir à que já referi, não se pode perder Elizabeth R, com Glenda Kackson. Fabulosa (ganhou dois Oscars, retirou-se da representação e dedicou-se à política).

    http://www.amazon.co.uk/Elizabeth-Disc-Box-Set-DVD/dp/B000E6D1KQ/ref=sr_1_3?s=dvd&ie=UTF8&qid=1302599686&sr=1-3

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