Ghostville
A hora de almoço é para mim uma hora abençoada, de tempo só meu e tempo de que sou bastante ciosa. Tenho um vício adquirido na infância, um dia contarei como e porquê, o de ler enquanto como. E não poucas vezes é com tristeza disfarçada que renuncio à leitura quando chega alguém do Colosso que, vendo-me sozinha, pede licença para se instalar à minha mesa. Adeus leitura, adeus música! Sim, porque também oiço música enquanto leio. A minha irmã ainda hoje descreve a rir como eu era exímia na gestão simultânea de quatro coisas tão diversas como ler, ver televisão, fazer tricot e fumar.
Devo dizer (há doidos com coisas piores) que às vezes a escolha do prato é determinada pelo livro que tenho em mãos. Se for uma brochura volumosa (também por isso prefiro sempre as encadernações) torna-se incompatível com um prato que requeira faca e garfo, aí opto pelas massas. A Teresa sugere-me sempre os pratos do dia, há este de que gosto muito, aqueloutro que elogiei na semana passada. Eu aponto-lhe o livro, impossível, preciso da mão esquerda livre para o segurar, venha o tagliatelle salsa rosa!
Às vezes, muitas vezes, quando uma música mais especial me entra de repente ouvidos adentro, suspendo a leitura, o olhar perde-se-me no vazio, fico apenas a ouvir. Foi assim hoje, quando começou a tocar este I Believe (When I Fall In Love It will Be Forever), na voz cristalina de Art Garfunkel. O original é de Stevie Wonder, mas a versão de Art é um daqueles raros casos em que a cover supera em muito a matéria-prima.
De caminho, e porque a memória é coisa muito caprichosa, formou-se nítida na minha mente uma imagem com vinte anos certos, de Março de 1991, e de uma interminável e tensa viagem Madrid-Serra Nevada, de carro. Uma relação à distância é coisa dura de manter, pede a todo o momento sacrifícios e uma grande dose de paciência, e os conflitos podem surgir do nada. Era o caso, mas era suficiente para deixar que aquele silêncio pesado se tivesse instalado durante muitos quilómetros, cada um recolhido às suas poderosas razões e sem ceder.
Mas esta era uma das nossas (muitas) músicas, às primeiras notas uma mão a pedir tréguas estendeu-se para a minha, e tudo acabou num sorriso. Tamanho o poder da música.
Tão grande que o feitiço musical se mantém ainda hoje, conseguindo fazer-me voltar ao passado. A música continua a emocionar-me, o resto perdeu-se algures já muito lá atrás, num caminho que não voltaria a querer trilhar. E ainda bem, porque foi caminho de demasiado sofrimento.
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