Bittersweet
O jantar de horas no restaurante simpático, doze anos de conversas a pôr em dia, as duas tão concentradas em tanto que havia a repartir que não me lembro de nenhuma de nós ter olhado uma única vez em volta, a ver quem estava ou deixava de estar (e há sempre gente conhecida naquele restaurante).
A conversa a durar ainda mais horas em casa da Nusha, a casa que tão bem conheço de há tantos anos, a casa que conheço tão bem que notei cada alteração, por mais insignificante que fosse. «Esta gravura não estava aqui» (e acabo de me lembrar agora, enquanto escrevo, que o lugar dela dantes era no hall, junto da escrivaninha que lá continua). A casa de banho ainda e sempre com a estante de partituras em frente à retrete, com uma revista aberta (sempre achei uma coisa sábia, aquela ideia da estante, ora estava lá um livro, ora uma revista, às vezes livro e revista até coabitavam). O antigo quarto do Miguel de repente a parecer-me surpreendentemente pequeno, muito mais pequeno do que a memória que eu dele tinha (e lá veio a velha história da Trincha, que voltou a fazer-nos rir, ainda hei-de contá-la aqui, foi pouco antes do nascimento da Marta). A Marta que eu vi nascer e que já é mãe, e o antigo quarto da Marta, todo cor-de-rosa e branco, que eu conheci antes da chegada da sua futura habitante, hoje um escritório. Ao lado do quarto da Marta, o antigo escritório, em que tantas horas trabalhei e também tanto ri (e lá voltaram as histórias das criadas, e lá rimos outra vez como umas doidas a lembrar a Floripes, e quando a Floripes arranjou um namorado que a levava ao Hipopótamo — andava a tentar pô-la a render, como percebi imediatamente quando a Floripes, deslumbrada, me veio contar que aquelas raparigas que lá trabalhavam «Ó menina Teresa, têm roupa que nem a D. Nusha!»). O escritório que lembro tão bem naquele dia 16 de Setembro de 1986, por volta das duas e meia, eu e o Rui concentradíssimos no ecrã do computador (ainda era o Apple IIC, credo!), a analisarmos qualquer coisa, a Nusha (uma das mulheres mais bonitas que conheci) a aparecer à porta e a anunciar calmamente: «Meninos, não é para alarmar ninguém, mas acho que me rebentaram as águas.»
Ao todo, foram nove horas de conversa, de confidências, de revelações, às vezes penosas. Às seis da manhã fomos vencidas pelo cansaço, vim para casa. A conversa foi apenas interrompida, que muito ficou por contar, comentar, revelar.
Duas outras revelações resultaram desta noite.
A primeira, surpreendente, é que sempre fui genuinamente amiga da Nusha, sem pensar sequer nisso, via-a sempre como uma espécie de prolongamento do Rui. Lembrámos conversas que tínhamos tido há vinte anos, há vinte e muitos anos, coisas dolorosas minhas a que ela assistiu, momentos difíceis meus em que ela foi solidária, momentos meus de grande felicidade em que ela se alegrou comigo e por mim. Se isto não é Amizade vou ali e já venho.
A outra revelação não é bem uma revelação, é mais uma confirmação. Somos mulheres fortes, as duas. Vivemos muito, coisas boas, coisas más. Rimos, chorámos, enfrentámos dificuldades. Acabámos por não nos sair mal de todo. Continuamos a saber rir, até e principalmente de nós. Continuamos a achar que o copo está meio cheio, no matter what. Daí a banda sonora. E sei que a Nusha, ao ouvir este I'm Still Here desse génio chamado Stephen Sondheim saberá ler todas as entrelinhas e saberá do que estamos a falar (e que eu nunca contaria aqui).
«No mundo, só comigo, me deixaram
Os deuses que dispõem.
Não posso contra eles: o que deram
Aceito sem mais nada.
Assim o trigo baixa ao vento, e, quando
O vento cessa, ergue-se.»
Ricardo Reis
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