quinta-feira, 21 de maio de 2009

Entrada da semana, por Rato

7.02.1935 — 21.05.2009

Eu não poderia tê-lo homenageado melhor. O Rato disse tudo. E devo-lhe muito, a João Bénard da Costa.

João Bénard da Costa foi sempre um “cinefils”, um filho do cinema. Os pais iam ver filmes todos os sábados, uma prima anotava-os, toda a gente lhe contava enredos, e ele próprio começou cedo a ir sozinho.

Mas a “cinefilia aguda” só se desenvolve a partir de 1969. «O Cinema, até entrar para a Gulbenkian, não tem um lugar muito importante na minha vida. É uma coisa de que gosto muito, como de literatura, pintura ou música, sobre a qual escrevo ocasionalmente, mas não é exclusiva — até é relativamente marginal nos anos 60, uma música ao longe.» (revista “Pública”, 2001).

O que acontece em 1969 é que Bénard vai organizar a secção de cinema no serviço de Belas Artes da Gulbenkian, com ciclos que hão-de marcar milhares de espectadores.

Que os havia, e muitos, nesse Portugal de interditos, provou-se logo na primeira sessão, em 1973, com “Roma, Cidade Aberta” apresentada pelo próprio Rosselini. Em cima da hora a censura ainda quis actuar, mas conteve-se por o realizador já estar em Lisboa. Tendo dormido e até ressonado na sessão — porque detestava rever os próprios filmes —, Rosselini acordou com uma ovação de 10 minutos, entre gritos de “Abaixo o fascismo!” e “Liberdade! Liberdade!” Henri Langlois, o mítico director da Cinemateca Francesa, estava lá, e viu nessa explosão a emergência do 25 de Abril.
Foi também nesse ano que João Bénard começou a ensinar Cinema no Conservatório. Só deixou de dar aulas em 1980, quando — a convite de Vasco Pulido Valente, então secretário de Estado da Cultura — entrou para a Cinemateca Portuguesa como subdirector. Em 1991, sucedeu a Luís de Pina na direcção, até hoje.
Ao todo são quase 30 anos de trabalho que, além de criarem o Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, fizeram da casa lisboeta uma parceira de Paris, Bruxelas, Madrid, Lausanne ou Helsínquia em inúmeros ciclos, capaz de trazer cineastas como Claude Chabrol ou Jean-Marie Straub e de cruzar na programação actores, fotógrafos, artistas plásticos ou escritores.



O que Bénard escreveu em livros, catálogos e incontáveis “folhas-de-sala”— sobre Buñuel, Lang, Sternberg, Hawks, Ray, Hitchcock, Mizoguchi, Dreyer, Renoir, Oliveira, Buñuel, Capra, Godard, Bergman, Lynch, Cronenberg ou César Monteiro — representou para muita gente toda uma nova possibilidade de ver cinema, e dentro dele a infinita possibilidade humana.
Depois, nos anos 90 de “O Independente”, esse universo fundiu-se com a própria vida de Bénard em crónicas que alternavam “Os Meus Filmes da Vida” com “Os Filmes da Minha Vida”.
Quem, entre os que o leram, não sabe como se apaixonou por Esther Williams ou Alida Valli (e Gene Tierney?, e Anna Karina?, e a Isabella que a Ingrid Bergman teve com Rosselini?)
Quem consegue pensar em “Johnny Guitar” sem pensar em João Johnny Bénard (que sobre este filme mil vezes disse “Porque era ele, porque sou eu”)?
Como Godard, Bénard acreditava que não há o mais belo dos filmes, porque 100, 300 ou 500 são, naquele momento, o mais belo dos filmes.
(Alexandra Lucas Coelho in PÚBLICO)

«Muitas vezes ouvi a banda sonora de Johnny Guitar sem ver as imagens. Tudo vem, por acréscimo, toda a memória do filme se repovoa. Mas, para que isso suceda, é preciso haver memória, é preciso ter-se visto o filme. Se é verdade que Johnny Guitar é também uma ópera, não o é menos que está dependente daquela única e irredutível mise en scène.
(...)
Johnny Guitar não se explica. Conta-se (vê-se) outra, outra e outra vez como as histórias que se contam às crianças, até que tudo se saiba de cor e se aprenda que tudo está certo nelas. É a Imitação de Cristo dos cinéfilos. Basta abrir-se ao acaso e encontra-se a frase certa. Basta ver pela sexagésima oitava vez e encontra-se a resposta certa para o que se está a viver.»
(in "Os Filmes da Minha Vida / Os Meus Filmes da Vida", Novembro de 1990)


3 comentários:

  1. (assistindo à cena, once more:) What takes us sooo long to do the right thing?

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  2. Saber que já não o vou ver nas minhas visitas semanais à Cinemateca, com aquele porte digno de senhor que só apetece venerar pelo que fez pela nossa cultura, custa muito. Custa mais ainda, no sentido em que o egoísmo é intrínseco ao comum mortal em que me insiro, ter um piupiu ao ouvido que me diz que a Cinemateca nunca mais será o que era.

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