domingo, 2 de novembro de 2008

I Les Misérables - IV

Jean Valjean é a personagem central de Os Miseráveis. Jean Valjean somos todos nós, e isso é bem a medida da genialidade de Victor Hugo. Jean Valjean, para mim, será sempre Colm Wilkinson. Nunca o vi em palco, tremenda mágoa, mas é ELE.

Quando a história começa, Jean Valjean cumpre trabalhos forçados há dezanove anos por ter roubado um bocado de pão. Eram outros tempos, estava-se em plena Revolução Industrial (alguém por aí terá lido Sem Família, de Hector Malot?), a propriedade era o valor maior, contava mais do que a vida humana.

Dezanove anos depois dão-lhe liberdade. Javert, que virá a ser a sua Némesis, adverte-o de que já não tem um nome, é só um número: 24601.

Poderia ter sido isso, poderia ter sido assim. Mas Jean Valjean encontra o bispo. E o bispo (lembram-se? Apaixonei-me perdidamente por ele no primeiro capítulo do livro, na minha adolescência) salva-o. Saído da cadeia, Jean Valjean é escorraçado por todos, todas as portas se lhe fecham. Acaba por encontrar guarida em casa do bispo, onde passa a noite. O bispo vive em enorme pobreza, tudo o que recebe é imediatamente dado aos que têm ainda menos. Mas tem dois bens preciosos, que a irmã e a criada cuidam com desvelo amoroso: dois castiçais de prata (provavelmente o bispo ainda não tinha olhado para eles com olhos de ver, ou já os teria convertido em ajuda para os necessitados). Jean Valjean rouba os castiçais. A polícia prende-o e leva-o à presença do bispo, o legítimo proprietário. O bispo mente com toda a firmeza: há ali um engano, os castiçais foram por ele oferecidos a Jean Valjean. A polícia parte. O bispo diz a Jean Valjean que acaba de lhe comprar a alma: desse dia em diante Jean Valjean é um instrumento de Deus e da Sua infinita bondade (podem ouvir aqui).

«But remember this, my brother
See in this some higher plan
You must use this precious silver
To become an honest man
By the witness of the martyrs
By the Passion and the Blood
God has raised you out of darkness
I have bought your soul for God!»


Assim será. Jean Valjean, todo revolta, debate-se contra o amor que não esperava. Mas o amor é mais forte, o amor opera o milagre. Jean Valjean muda. Encontramo-lo anos mais tarde, sob o nome de M. Madeleine, próspero proprietário, presidente da câmara. E justo, benevolente. Os castiçais de prata acompanham-no sempre, como lembrança da figura redentora do bispo.

Até um certo dia... Javert continua a perseguir Jean Valjean e julga tê-lo encontrado. O verdadeiro Jean Valjean luta com a sua consciência. Centenas de pessoas dependem agora dele. Mas poderá deixar um inocente pagar pelas suas culpas? M. Madeleine... Jean Valjean... 24 601...

Who Am I? A letra é desnecessária, está no vídeo. «My soul belongs to God, I know/I made that bargain long ago



Jean Valjean, julgo, é a maior personagem da literatura universal. A seguir vem Pierre Bezukhov, de Guerra e Paz (a personagem que, sendo já a minha favorita do livro, me fez apaixonar por Anthony Hopkins, tinha eu doze anos). Só depois vem o meu querido Afonso da Maia. Notem que estou a falar da grandiosidade de construção de uma personagem. Adoro-os a todos, mas as minhas personagens favoritas serão sempre Lizzie Bennet, de Jane Austen — a primeiríssima! —, seguidas pela Zé de Enid Blyton nos Cinco e, claro, pelo Guilherme (a saudade do Nuno a ferir outra vez).

Aqui, em Bring Him Home, quando resgata Marius pelos esgotos de Paris, depois de caída a barricada. Todo ele generosidade e abnegação. E aquela nota final a prolongar-se no infinito, a mostrar o extraordinário cantor que Colm Wilkinson é....



Jean Valjean é uma personagem universal e intemporal. Nele o bem e o mal lutam entre si, e o bem sai vencedor. Jean Valjean é um modelo: não é perfeito, mas tem, depois do encontro com o bispo, um ideal de perfeição. Ao qual tenta ser fiel. No momento da morte (muito lhe será perdoado, porque muito amou) suplica a Deus «forgive all my trespasses and take me to Your glory». Os fantasmas de Fantine e Éponine estendem-lhe as mãos, chamam-no, com aquelas maravilhosas palavras que foram bem a vida de Jean Valjean: «To love another person is to see the face of God


Jean Valjean morre em paz e rodeado de amor. É nesta fase do campeonato que os olhos inchados de tanto chorar já me dificultam a visão do palco, por melhores que sejam os lugares. Um gigantesco agradecimento ao Blanco, concierge do Westbury, onde tínhamos ficado, que nos proporcionou um Les Misérables absolutamente perfeito (house seats), o melhor de todos os que já vimos. E mesa no Nobu, coisa impossível à época. E lugares soberbos para An Ideal Husband, do meu amado Oscar Wilde... I Blanco.

O retrato abaixo é dessa noite memorável de Fevereiro de 1999. Eskisito, socorro! Isto está outra vez distorcido!


4 comentários:

  1. A obra já a li e partilho do entusiasmo. Em palco nunca vi !!!

    :(

    Boa semana!

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  2. É curiosa a sua abordagem acerca das personagens. Nunca, mas nunca consegui ter essa perspectiva, tratando-as como pessoas reais, independentes da obra que lhes dá vida. Vou ter de aprender a ler com outros olhos ;)

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  3. Está para breve o filme. Colm Wilkinson será o Bispo

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  4. Muito obrigada pela informação, não fazia ideia, tão longe tenho andado de tudo.
    Acabo de verificar que já está em fase de pós-produção. O cast é de peso

    http://www.imdb.com/title/tt1707386/

    e confesso que estou doida para ver os Thénardier. Russel Crowe parece-me talhado para o papel de Javert e Hugh Jackman dispensa comentários (vi-o em Oklahoma). Em suma: fiquei em pulgas. Obrigada!

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