terça-feira, 22 de julho de 2008

Dez anos sem Hermann Prey

Faz hoje dez anos que se silenciou esta voz magnífica que é um grande amor na minha vida. E um dos primeiros, quase em simultâneo com os Beatles (sim, sim, são perfeitamente compatíveis).

Posso não ter grandes talentos (mea culpa, mea maxima culpa), mas há um que reivindico com toda a justiça: o de reconhecer o talento alheio quando o enconto, o de saber destrinçar entre o trigo e o joio, o lobrigar deslumbrado da moeda de oiro reluzente entre os tostões de cobre de liga.

Lembro-me perfeitamente de quando conheci Hermann Prey, porque tinha dezasseis anos e foi a primeira ópera que comprei: O Barbeiro de Sevilha, uma das mais imortais óperas de Rossini (e longe estava eu de saber quanto viria a amá-lo). Um estojo magnífico, três LP. Já não a tenho, e seria uma longa e triste história, em que não me apetece remexer. Culpa da minha Mãe e das suas boas e crédulas intenções. Imaginem vocês que estão de férias no Algarve e que há um amigo que vos emprestou alguns discos; o amigo precisa deles, a Teresa telefona à Mãe a avisar que ele vai passar lá por casa. A Mãe abre-lhe liberalmente a porta, franqueia-lhe o acesso ao meu quarto com a maior das boas-fés (era menino de beija-mão e tudo o que convence as senhoras), o amigo serve-se ainda mais liberalmente do que encontra. Que me lembre, tinha cinco discos dele. Levou pelo menos uns doze, preciosos. Entre eles, O Barbeiro de Sevilha de Claudio Abbado, com Hermann Prey e Teresa Berganza. Não tão estranhamente como isso... nunca mais me atendeu o telefone. Quando nos cruzámos por acaso numa noite de Stone's, largos anos depois, já havia CD, e eu já tinha superado aquela mutilação, porque já tinha o disco. Cobardemente, até por ter percebido que a vida dele estava um caos, não toquei no assunto. Mas ainda dói.

Quem É Hermann Prey? — nada de conjugações no passado, que ele é imortal. Um barítono de timbre maravilhoso, uma voz que é um embalo para os ouvidos, um grande actor numa época em que quase todos os cantores de Ópera eram umas estacas em cena (levantavam um braço... e olha lá!). O maior Figaro da segunda metade do século XX (o que abrange o Barbeiro e As Bodas de Figaro, de Mozart). O incomparável Papageno daquela Flauta Mágica que é o meu amor maior na Ópera. Desse papel, em que o público de Viena, de Munique e de Nova Iorque (só para citar as maiores casas de ópera) o idolatrava, não há, estranhamente, registos em filme. Estranho, muito estranho...

Há muitos meses, deixei no filme do Youtube que aqui ponho abaixo (a primorosa realização de Jean-Pierre Ponnelle de que voltarei a falar) um comentário extasiado: «He is simply PERFECT! My favourite baritone ever, and what a fine actor! How I wish someone had footage of his wonderful Papageno!» Um outro comentador viria a pegar na minha deixa de maneira mais consistente e a deixar este comentário: «There is some with his "alter ego" Fritz Wünderlich as Tamino!... For this reason, I FIND IT HARD, VERY HARD TO BELIEVE THAT THERE IS NOT ONE SINGLE VIDEO CLIP WITH HERMANN PREY AS PAPAGENO!!! Either it is esconsed in a shelf of any German or American TV corporation; or it is hidden in a safe by a truly heartless "fan"!...
IN THE NAME OF ART, HE/SHE WHO HAS IT, PLEASE, PLEASE, RELEASE IT - NOW!!! It has been 10 years since this great man has left us! WHAT BETTER HOMAGE COULD WE PAY HIM?...»

Este comentário deixou-me com a pulga atrás da orelha. O comentador parecia-me português... comentei a seguir: «You're SO right! Next 22nd of July will be ten years since he left us! Have you read his autobiography, "First Night Fever"?
I have a strong suspicion you're Portuguese. So am I :)»

Assim nascem afinidades. Passámos, eu e o João Pedro, a trocar mensagens em privado. Hoje recorri a ele, que não pôde socorrer-me. Não é dramático, antes é um pretexto para voltar a falar mais alongadamente do grande Hermann Prey.

Hoje fica apenas a homenagem tão merecida. Para terem uma muito vaga ideia da minha devoção por este senhor, conto-vos muito brevemente uma história. O meu primeiro contacto com a Internet foi em Agosto de 1998, quando a instalaram na empresa onde eu então trabalhava. O Sr. Gabriel (ainda hoje o meu recurso para as emergências informáticas) foi lá instalar a coisa, deu-me umas explicações básicas. À época, o período jurássico da Internet, ainda não havia Google (que Deus o abençoe para todo o sempre), havia outros motores de busca como Alta Vista, Yahoo e já nem sei que mais. Lembro-me como se fosse hoje das três primeiras buscas que fiz, bem reveladoras da minha pessoa: 1 - Castle Howard; 2 - Joan Sutherland; 3 - Hermann Prey...

Fiquei gelada. Hermann Prey, o meu Hermann Prey... tinha morrido menos de duas semanas antes, a 22 de Julho. Para variar, a imprensa nada tinha dito. Nada de surpreendente, se considerarmos que eu só soube da morte do grande Sir Georg Solti pela minha assinatura da Opera, religiosamente recolhida na Buchholz, morreu menos de uma semana depois da princesa Diana, mas vendia um número substancialmente inferior de revistas. O que li nessa minha terceira e histórica pesquisa na Internet alagou-me de uma tristeza que persiste até hoje. «It was with deep sadness that the musical world received the news of the death of Hermann Prey. The renowned German baritone died following a heart attack at his home outside Munich (Germany) on Wednesday night, July 22, 1998.» Podem ler a notícia toda aqui, copiei-a, juntamente com a localização, para um documento de Word que me tem acompanhado nestes dez atribulados anos, ao longo de demasiados computadores.

Voltarei a Hermann Prey antes de ir de férias. Antes disso, terei de contar a reclamada história do meu encontro com Dame Vanessa Redgrave, há pouco mais de uma semana. Está solenemente prometida.

Agora deixo-vos com o Figaro de Hermann Prey, que nem vou adjectivar. Papageno fica para outro dia.





6 comentários:

  1. Infelimente com ele só tenho Winterreise (irrepreensível) e precisamente A Flauta Mágica de que fala (ainda que não na versão completa), a mesma em que a Rainha da Noite é a minha adorada Deutekom (tinha de falar dela!;)

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  2. Decididamente, já tinha reparado, mas a cada regresso confirmo: temos gostos musicais muito parecidos! (vd este post)

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  3. Sempre aprendendo contigo... E a Florida como está? Saudades. beijinhos

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  4. Sim, uma magnífica voz, um excelente actor, um cantor de ópera completo. Não vejo o vídeo do youtube, simplesmente porque esta é a obra que eu tenho em dvd, com todas as suas qualidades, julgo que você a tem em cd... um magnífico barbeiro, inesquecível.

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  5. Teresa,
    Gosto muito de Hermann Prey, mas dizer que é o melhor Figaro rossiniano do século XX falta-lhe muito e mesmo muito. Isso vê-se logo nesta ária. Os grandes Figaros gravados da segunda metade do século são Tito Gobbi, Sesto Bruscantini e Giuseppe Taddei, todos italianos, condição necessária e suficiente para este epíteto. Pessoalmente a gravação do Gobbi, em que a Callas é a Rosina, é aquilo que podemos chamar a perfeição total.
    O Hermann Prey é inultrapassável na ópera e opereta alemã romântica, Wagner excluído. A sua voz contem um sorriso que não se encontra em mais ninguém.
    Um beijinho
    Raul

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  6. Raul,

    Venero Tito Gobbi, e tenho a versão do Barbeiro que refere (e que detesto). O papel de Rosina, cá para mim, não é para a Callas. Ele, Tito, é um grande Barbeiro, sim senhor, mas não me convence totalmente (em contrapartida, será sempre o Scarpia supremo).

    Mas adorei a sua frase sobre Hermann Prey: «A sua voz contém um sorriso que não se encontra em mais ninguém.»

    Que coisa tão bonita de se dizer!

    Um beijinho.

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