sexta-feira, 13 de junho de 2008

Fernando Pessoa — 120 anos hoje


Lembro-me bem do seu olhar.
Ele atravessa ainda a minha alma,
Como um risco de fogo na noite.
Lembro-me bem do seu olhar. O resto…
Sim o resto parece-se apenas com a vida.

Ontem, passei nas ruas como qualquer pessoa.
Olhei para as montras despreocupadamente
E não encontrei amigos com quem falar.
De repente vi que estava triste, mortalmente triste,
Tão triste que me pareceu que me seria impossível
Viver amanhã, não porque morresse ou me matasse,
Mas porque seria impossível viver amanhã e mais nada.

Fumo, sonho, recostado na poltrona.
Dói-me viver como uma posição incómoda.
Deve haver ilhas lá para o sul das coisas
Onde sofrer seja uma coisa mais suave,
Onde viver custe menos ao pensamento,
E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol
E acordar sem ter que pensar em responsabilidades sociais
Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.

Abrigo no peito, como a um inimigo que temo ofender,
Um coração exageradamente espontâneo,
Que sente tudo o que eu sonho como se fosse real,
Que bate com o pé a melodia das canções que o meu pensamento canta,
Canções tristes, como as ruas estreitas quando chove.


Sempre achei que a classificação do espólio de Fernando Pessoa tinha aspectos questionáveis. Sempre tive a convicção íntima e secreta de que este maravilhoso poema, que há muitos anos sei de cor e pelo qual cheguei a ter verdadeira obsessão — como pela obra dele, de resto — era de Álvaro de Campos. Pouco importa.

Fernando Pessoa, um dos homens da minha vida, nasceu no ano em que também Os Maias, a obra imortal de Eça, viu a luz do dia. Por volta dos vinte cinco anos, e depois de algumas contas, descobri que já devia ter lido Os Maias mais de cem vezes. Nem me atrevo a arriscar o número presente. O mesmo acontece com Fernando Pessoa, sobretudo com os heterónimos Álvaro de Campos e Alberto Caeiro. Nunca vou de férias sem levar os dois. Idem para Os Maias. E para Oscar Wilde. E para, pelo menos, um volume de À la Recherche du Temps Perdu. E costumam estar sempre todos à minha cabeceira.

Acresce que não será exagero dizer que Alberto Caeiro, há muitos anos, numa noite inesquecível, me salvou a vida.

5 comentários:

  1. Vale a pena dizer que Álvaro de Campos também é o meu preferido dos heterónimos? Caeiro a seguir, e também gosto muito de alguns poemas assinados com o próprio nome. Enfim, o homem era geniial.

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  2. Não, Aninha, não era preciso dizer... :)

    Um génio.

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  3. muitos gênios e um só
    muitas "pessoas" neste incrível ser

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  4. Quem vive assim os livros e a cultura merece o meu aplauso. Os 120 anos sobre o nascimento de Fernando Pessoa fizeram-me ter acesso e recer algumas coisas sobre ele. E, também, que há muito que o deixo de lado nas minhas leituras.

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  5. Ando a ler há anos 'O livro do desassossego'. Ainda hoje peguei nele. Sublinho-o quase página sim, página não. E tenho muitos, inúmeros, poemas de Pessoa e dos heterónimos (Caeiro, para mim também é o favorito), passados em letra de menina aplicada, em quatro ou cinco cadernos pautados. Nos meus tempos de rato de biblioteca, em que ia buscar livros de poesia para devorar e copiar os poemas de que mais gostava, ao som da música da saudosa rádio 'Nostalgia'. Agora, já não tenho tempo para nada disso. E tenho saudades. Muitas, muitas...

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