Pedro
Este post é uma cópia do publicado esta madrugada, já clareava, no blóguio do Liceu. Cheguei tarde do jantar, imensas fotografias na máquina para mandar a todos, aos que puderam estar presentes, aos que não puderam, aos que não quiseram. Imensas coisas para contar e para comentar. Mas o que me enchia insuportavelmente era isto, esta perda. Passava das três da manhã, mas telefonei ao Vítor. Que não se lembrava do Pedro, que diz sempre a rir que as boas memórias do Liceu que tem são as minhas, contadas por mim - e sabe todas as histórias de cor. O Vítor, mesmo não se lembrando do Pedro, afligiu-se enormemente. O primeiro de nós a partir... Também o Manel, que me telefonou esta manhã. Também outros que me telefonarão na segunda-feira...
Eu sou várias pessoas ao mesmo tempo, há muito que vivo reconciliada com essa ideia. Haverá neste post coisas que não perceberão, porque fazem parte de um jardim secreto só nosso. Ainda assim, ponho-o aqui. Porque o melhor de mim está naqueles anos, naquele tempo, naquele grupo. Et in Arcadia Ego.
Eu sou várias pessoas ao mesmo tempo, há muito que vivo reconciliada com essa ideia. Haverá neste post coisas que não perceberão, porque fazem parte de um jardim secreto só nosso. Ainda assim, ponho-o aqui. Porque o melhor de mim está naqueles anos, naquele tempo, naquele grupo. Et in Arcadia Ego.
Partiu o primeiro do nosso grupo. O Pedro. O Pedro, que eu lembro com nitidez absoluta neste quinto ano longínquo - cada vez mais longínquo, meu Deus! «A que distância (...), nem o acho!» - palavras obcecantes de Álvaro de Campos. O Pedro que eu lembrarei sempre assim, como nesta imagem distante do último dia de aulas do nosso 5.º ano, este arcanjo loiro e lindo.
A notícia foi-nos trazida pelo João, chocado e entristecido, ainda o reduzido grupo desta noite estava pela metade, ainda estávamos na luz mágica do ante-crepúsculo glorioso de Lisboa na varanda virada para o rio, antes da chegada dos outros, neste jantar do Liceu que foi tão bom como são todos, mesmo tendo hoje sido muito poucos.
O João tinha sabido ontem, por acaso. A isto chegou a dispersão neste grupo amarrado por laços tão fortes e antigos? É bem verdade que há meses - era Setembro, um calor sufocante de Verão tardio, o João e eu a almoçarmos no Martinho e a pormos os sumários em dia - eu me tinha mostrado desagradada, o Pedro nunca respondia aos e-mails que eu regularmente enviava a todo o nosso grupo. Pior, recebia uma mensagem de não entrega. O João não deu importância, «fala para o Grupo Pestana». Mas o endereço que eu tinha era justamente já o do Grupo Pestana! E agora já nem aí apanhava o Pedro! Os números de telefone que tinha estavam desactivados. Mas nunca pensamos no pior, a verdade é essa. O pior é impensável. Achei que ele se estava nas tintas para nós, que tinha outras coisas, que tinha coisas mais importantes. Fiquei secretamente magoada, que eu levo este nosso grupo muito a peito.
O Pedro morreu em Outubro, ainda com 46 anos. Teria feito 47 a 7 de Novembro, era dos mais novos deste grupo todo em escadinha, quase todo nascido em 1960. Como é possível não termos sabido antes? Será que este nosso grupo significa realmente alguma coisa? Das últimas vezes que falei com o Pedro, já ele tinha ido viver para o Algarve. Tinha optado por uma vida mais calma, com mais qualidade, tinha projectos. Teve umas trapalhadas de saúde que acompanhei, lembro-me de na altura ter falado com a mulher dele, a Graça - encantadora, calorosa, só tem rival na Isabel, a mulher do Zé Afonso, outro encanto -, era coisa de pouca importância, o Pedro prometia vir ao próximo jantar... que teria sido há uns quatro anos... Tempus fugit...
Agora que o Pedro nunca mais se sentará connosco a rir das mesmas sempiternas memórias que são revisitadas jantar após jantar, deixem-me contar-vos as memórias mais vivas que dele tenho. São as minhas, vocês terão as vossas. Há aqui uma caixa de comentários, como bem sabem...
Memória 1: Inverno. A Isabel Almeida (a Carocha, não se armem em santinhos, que eu bem sei que era como lhe chamavam!) tinha um casaco comprido encarnado debruado a branco - faz um bocadinho Pai Natal, claro... Faltou um professor qualquer, estava tanto frio que ninguém saiu da sala e o Pedro aparece com o casaco vestido, calças enroladas acima do joelho, a cantar em voz de falsete Oh Christmas Tree...! Hilariante! Aqui para nós, acho que ele tinha um fraquinho pela Isabel-Carocha, e não me parece que seja só a Lianor Vaz que há em mim...
Memória 2: Visita de estudo (EXTRAORDINÁRIA, nesse dia despertei para os Impressionistas!) ao Museu Gulbenkian. Não sei como começou, sei como acabou. O Pedro estava a meter-se comigo, eu ignorava-o. Às tantas exagerou. Não me lembro do que foi que me fez passar dos carretos, só me lembro de lhe ter atirado um estaladão que pôs toda a turma em silêncio, professora incluída, e lhe deixou o braço bem rosado. Mais tarde, cá fora, veio pedir-me desculpa, Continuo sem conseguir lembrar-me do que originou tamanho disparate.
Memória 3: 18 de Maio de 1979, já universitários. A despedida de solteiro do Zé Afonso, que ia casar com a Isabel Cristina. Uma boîte do Estoril. Só fui pelo muito que gostava do Zé Afonso - nesse dia tinha morrido a minha adorada cadelinha Fiorella. O Pedro, que na altura tinha namoro com a Alexandra, apareceu. Eu estava realmente de rastos, ele fez questão de me levar a casa.
Querido Pedro, hoje não há grafonolas ideais ou grafonolas kitsch neste blóguio. Hoje só há Música para ti. Espero que gostes, porque é a melhor que tenho para te oferecer. É Mozart...
Depois de muito hesitar, optei pela Gran Partita - quando nos encontrarmos desse lado explico-te mais detalhadamente porquê. Agora, por agora, as magníficas palavras de Peter Shaffer, na boca de um Salieri dividido entre o ódio nascido da inveja e a homenagem incondicional, na extraordinária peça de teatro (uma das mais deslumbrantes noites da minha vida, no Old Vic, David Suchet como Salieri ) que viria a transformar-se no genial Amadeus, são bastante:
A notícia foi-nos trazida pelo João, chocado e entristecido, ainda o reduzido grupo desta noite estava pela metade, ainda estávamos na luz mágica do ante-crepúsculo glorioso de Lisboa na varanda virada para o rio, antes da chegada dos outros, neste jantar do Liceu que foi tão bom como são todos, mesmo tendo hoje sido muito poucos.
O João tinha sabido ontem, por acaso. A isto chegou a dispersão neste grupo amarrado por laços tão fortes e antigos? É bem verdade que há meses - era Setembro, um calor sufocante de Verão tardio, o João e eu a almoçarmos no Martinho e a pormos os sumários em dia - eu me tinha mostrado desagradada, o Pedro nunca respondia aos e-mails que eu regularmente enviava a todo o nosso grupo. Pior, recebia uma mensagem de não entrega. O João não deu importância, «fala para o Grupo Pestana». Mas o endereço que eu tinha era justamente já o do Grupo Pestana! E agora já nem aí apanhava o Pedro! Os números de telefone que tinha estavam desactivados. Mas nunca pensamos no pior, a verdade é essa. O pior é impensável. Achei que ele se estava nas tintas para nós, que tinha outras coisas, que tinha coisas mais importantes. Fiquei secretamente magoada, que eu levo este nosso grupo muito a peito.
O Pedro morreu em Outubro, ainda com 46 anos. Teria feito 47 a 7 de Novembro, era dos mais novos deste grupo todo em escadinha, quase todo nascido em 1960. Como é possível não termos sabido antes? Será que este nosso grupo significa realmente alguma coisa? Das últimas vezes que falei com o Pedro, já ele tinha ido viver para o Algarve. Tinha optado por uma vida mais calma, com mais qualidade, tinha projectos. Teve umas trapalhadas de saúde que acompanhei, lembro-me de na altura ter falado com a mulher dele, a Graça - encantadora, calorosa, só tem rival na Isabel, a mulher do Zé Afonso, outro encanto -, era coisa de pouca importância, o Pedro prometia vir ao próximo jantar... que teria sido há uns quatro anos... Tempus fugit...
Agora que o Pedro nunca mais se sentará connosco a rir das mesmas sempiternas memórias que são revisitadas jantar após jantar, deixem-me contar-vos as memórias mais vivas que dele tenho. São as minhas, vocês terão as vossas. Há aqui uma caixa de comentários, como bem sabem...
Memória 1: Inverno. A Isabel Almeida (a Carocha, não se armem em santinhos, que eu bem sei que era como lhe chamavam!) tinha um casaco comprido encarnado debruado a branco - faz um bocadinho Pai Natal, claro... Faltou um professor qualquer, estava tanto frio que ninguém saiu da sala e o Pedro aparece com o casaco vestido, calças enroladas acima do joelho, a cantar em voz de falsete Oh Christmas Tree...! Hilariante! Aqui para nós, acho que ele tinha um fraquinho pela Isabel-Carocha, e não me parece que seja só a Lianor Vaz que há em mim...
Memória 2: Visita de estudo (EXTRAORDINÁRIA, nesse dia despertei para os Impressionistas!) ao Museu Gulbenkian. Não sei como começou, sei como acabou. O Pedro estava a meter-se comigo, eu ignorava-o. Às tantas exagerou. Não me lembro do que foi que me fez passar dos carretos, só me lembro de lhe ter atirado um estaladão que pôs toda a turma em silêncio, professora incluída, e lhe deixou o braço bem rosado. Mais tarde, cá fora, veio pedir-me desculpa, Continuo sem conseguir lembrar-me do que originou tamanho disparate.
Memória 3: 18 de Maio de 1979, já universitários. A despedida de solteiro do Zé Afonso, que ia casar com a Isabel Cristina. Uma boîte do Estoril. Só fui pelo muito que gostava do Zé Afonso - nesse dia tinha morrido a minha adorada cadelinha Fiorella. O Pedro, que na altura tinha namoro com a Alexandra, apareceu. Eu estava realmente de rastos, ele fez questão de me levar a casa.
Querido Pedro, hoje não há grafonolas ideais ou grafonolas kitsch neste blóguio. Hoje só há Música para ti. Espero que gostes, porque é a melhor que tenho para te oferecer. É Mozart...
Depois de muito hesitar, optei pela Gran Partita - quando nos encontrarmos desse lado explico-te mais detalhadamente porquê. Agora, por agora, as magníficas palavras de Peter Shaffer, na boca de um Salieri dividido entre o ódio nascido da inveja e a homenagem incondicional, na extraordinária peça de teatro (uma das mais deslumbrantes noites da minha vida, no Old Vic, David Suchet como Salieri ) que viria a transformar-se no genial Amadeus, são bastante:
«On the page it looked nothing. The beginning simple, almost comic. Just a pulse - bassoons and basset horns - like a rusty squeezebox. And then suddenly - high above it - an oboe, a single note, hanging there unwavering, untill a clarinet took it over and sweetened it into a phrase of such delight! This was no composition by a performing monkey! This was a music I'd never heard. Filled with such longing, such unfulfillable longing... It seemed to me that I was hearing the voice of God.»
Tenho
Até sempre, Pedro! We'll meet again...
Teresa, minha querida, como ja tinha escrito um dia por aqui, a perda, quando se sabe definitiva, doi. A magoa do abandono deu lugar a dor da perda e essa e das poucas dores para a qual nao ha palavras de conforto. E chorar serenamente, abrir o bau das memorias, sentir a presenca da pessoa, como esse oboe que paira sobre o pulsar do mundo e deixa-lo entrar devagarinho.
ResponderEliminarE este misterio e sem duvida "the unanswered question".
Um grande beijo.
Já te disse que gosto muito de ti, não disse?
ResponderEliminarÉ o oboé, disseste tudo. E a minha tristeza torna-se quase doce, só por perceber que percebes.
Gosto tanto de ti!
OBrIGADA.
Teresa, "morrer é só não ser visto. Morrer é a curva na estrada". A morte no fundo apenas termina a vida. Não termina a relação. E prova disso são as tuas memórias.
ResponderEliminarMortes não anunciadas. Parece que são ainda piores que as outras, não é? Mas que digo eu? As anunciadas são terríveis também. Sofre-se por antecipação. Não sei, não sei.
ResponderEliminarBeijos por te lembrares de dia 19. Foi 1 dia antes, mas não interessa. Tenho saudades tuas. E beijos para ti, por todos os Pedros da tua vida.
Um silencioso beijinho, Teresa. Lamento...
ResponderEliminar