Os discos da minha vida #10: Like an Old Fashioned Waltz
Eu não vos disse já que passei os anos 80 a descobrir a música dos 70? Este é mais um caso flagrante: Sandy Denny e o seu soberbo Like an Old Fashioned Waltz (discordo da grafia, para mim é old-fashioned, com hífen, mas respeito a da capa). Descobri-o por mero acaso, em 1984, num jantar em casa do meu amigo João Navarro, muito mais velho [o do jantar de aniversário com lampreia no Dom Pepe, no mês passado - eu não saltito nas amizades, conservo-as como coisa preciosa; uma vez declarado o estatuto de amigo... é para todo o sempre]. Nesse jantar, eu e o Vítor éramos gritantemente umas crianças ao pé daquela gente toda. Quando passámos à sala para o café e os digestivos, nós dois alapámos de imediato junto do gira-discos. Lembro-me - lembramo-nos todos, que ainda hoje o João fala disso - de uma criatura muito irritante e poseuse que lá estava, uma tal Kitty, levada por uma grande amiga do João, uma Maria da Luz que tenho pena de não ter visto mais vezes. A Kitty era intragável. A Kitty achava que sabia de tudo e metia-se em todas as conversas para só dizer disparates. A Kitty era tão obtusa que nem percebia que os outros só por educação lhe respondiam coisas imprecisas como «ah, pois...». A Kitty, pior ainda (grave, muito grave), resolveu meter o bedelho na requintada escolha de música que eu e o Vítor, fartos dela até à raiz dos cabelos desde o momento em que nos tínhamos sentado à mesa, íamos pondo, enquanto ela debitava tolices e lugares-comuns na roda mais vasta do outro lado da sala. A Kitty... vai de dar sugestões. Que nem eram más, há que dizer, não fora o tom de voz estridente - ai o que eu ligo a vozes, ai o que eu abomino gente que fala alto! - com que exigia coisas que até poríamos como todo o gosto e dizia aos miúdos «Isso não! Ponham antes Aretha Franklin! (ou Otis Redding, ou Marvin Gaye, ou Louis Armstrong, ou...)
Ora eu, verdade seja dita, sou rapariga de bom feitio, muito bom feitio. Um feitio angelical. Todos os meus amigos são unânimes em confirmá-lo. A Teresa faz tudo pela harmonia, a Teresa é capaz de fechar olhos, ouvidos e, consequentemente, boca, só para manter a paz. Mas a Teresa não tem sangue de barata. A Teresa, quando suficientemente provocada, é capaz de ser muito cabrinha. À décima imposição da Kitty, a afinfar valentemente no Baileys do João, a Teresa fez uma cara perplexa e perguntou venenosamente e com ar inocente, a bater as pestanas: «Mas olhe lá... tirando pretos, gosta de quê?» A pergunta caiu com precisão cirúrgica num daqueles momentos de pausa nas conversas. Toda a gente ouviu. O Vítor disparou como uma seta para fora da sala, para ir rir para o corredor. Senti-me ilibada quando percebi o riso abafado da Maria da Luz, que se devia sentir bastante desconfortável com a companhia parva que tinha levado. Os outros convidados riam abertamente e com gosto. O João, claro, não deu por nada. E eu, escusado será dizer, ganhei uma inimiga. Mais uma... Até hoje, e é com tristeza que o digo, nunca a deliciosa proclamação de Oscar Wilde «I choose my friends for their good looks, my acquaintances for their good characters, and my enemies for their intellects» teve eco em mim. Os inimigos (mais inimigas, vá-se lá saber porquê) que a vida me tem prodigalizado são do mais medíocre. Um desconsolo pegado. Falta-lhes arcaboiço intelectual, falta-lhes cultura, falta-lhes mundo, falta-lhes TUDO, e assim não tem graça.
Abstenho-me de esclarecer agora que na minha réplica impaciente à insuportável Kitty (que levou três discos de empréstimo, concedidos por um João muito reticente - até hoje, 24 anos passados, não voltaram ao aprisco... CABRA!!!) não havia nada de preconceituoso, acho que já todos sabem o ódio que lhes tenho, aos preconceitos. Estamos conversados?
Voltemos ao disco: Like an Old Fashioned Waltz nunca mais me largou. Descobri-o graças a Solo, música que, por si só, é suficiente para o tornar obrigatório. Atravessei noites insones com ele no repeat, Solo a tocar um número ainda mais imoderado de vezes, tamanha a minha obsessão por esta música.
Like an Old Fashioned Waltz estava na mala do carro que me roubaram em 1999, e foi dos mais difíceis de substituir. De repente, tinha-se evaporado do mercado. Só se arranjava em leilões e a base de licitação nunca era abaixo dos trinta contos. Tê-los-ia pago, se não houvesse outra maneira, mas acreditei sempre que acabaria por ser reeditado. E foi, para minha grande felicidade e mais uma noite em claro, quando o recebi.
Segunda-feira voltarei a falar de Sandy Denny. Hão-de perceber porquê.
Good morning, good afternoon,
And what have you got to say?
Well I'm waiting, but I can't stay long,
It's such a lovely day.
There's a time to be talking
And a time when it's no use.
Right now I think the things you say
Are liable to confuse.
I've just gone solo.
Do you play solo?
Ain't life a solo?
What a wonderful way to live,
She's travelling all over the world.
Why, the fame and all the golden
Opportunities unfurled.
No time for the gent with the Mulliner Bentley
And heaven knows what else.
Why, he wouldn't even stand a chance
With all his oil-wells.
She just went solo.
Do you play solo?
Ain't life a solo?
I've always lived in a mansion
On the other side of the moon.
I have always kept a unicorn
And I never sing out of tune.
I could tell you that the grass is really greener
On the other side of the hill,
But I can't communicate with you
And I guess I never will.
We've all gone solo.
We all play solo.
Ain't life a solo?
Fantástica a história da Kitty peste.
ResponderEliminarLinda a música, que não conhecia, obrigado.
Será por esse motivo que a Hello Kitty não tem boca?
ResponderEliminarAntónio A. A.
ResponderEliminarDisponha :)
David,
Mas que observador de primeira água! Sabe que fui procurar imagens da Hello Kitty para confirmar aquilo que tão bem assinalou e em que eu nunca tinha reparado? É que não tem mesmo!!
E eu devia estar de sobreaviso, desde que há uns meses decifrou o que era o Colosso... :)
Um beijo para si.
Mas se não forem as Kittys desta vida, qual seria a graça?
ResponderEliminarGostava de ser mais constante nas amizades do que sou, mas infelizmente temos surpresas desagradáveis.
Claro que temos, Pedro. Mas não é por isso que vamos deixar de viver a Amizade como ela merece... Há os outros, os amigos que são para toda a vida. E esses compensam largamente os incidentes de percurso.
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