quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Coisas que me incomodam

Em boa verdade, o verbo incomodar aqui é um eufemismo. Não gosto mesmo nada disto, deixa-me profundamente desconfiada.

Tudo começou numa tarde de fim de Agosto, no metro. Avança pela carruagem um miúdo a tocar acordeão e com um cãozinho pinscher em equilíbrio precário em cima do instrumento, de pé, as patitas afastadas. Primeiro sorri, porque ele era um amor, depois abri a carteira, o gesto que se espera de quem, como eu, adora animais. Até contei ao Victor, porque o cãozinho era muito parecido com Cucci.

Dias mais tarde, ao fundo da Rua Augusta, deparo com os dois, o tocador de acordeão e o cãozinho. Estão quase sempre lá.

Parei a uma certa distância, a observar, cheia de suspeitas tenebrosas, cheia de vontade de saltar à jugular do miúdo. Os turistas que andam em bandos por ali (raro é o dia é que não sou abordada para tirar uma fotografia a um grupo, se é um casal e vou a passar, eu própria sou capaz de me oferecer para o fotografar, a clássica fotografia com o arco como fundo, a estátua de D. José a espreitar por trás e o rio, tão azul nos dias de sol, a dar o remate final) acham todos muita graça. E eu não percebo o que possa haver de engraçado num animalzinho numa imobilidade forçada, com um cesto improvisado para recolher donativos pendurado na boca. E isto horas a fio. Se passo lá à hora do almoço, estão lá. Nas muito raras vezes em que lá passo no regresso a casa, sinal de que saí do colosso a horas minimamente cristãs (antes das oito, entenda-se...), é certo e sabido que continuam lá. Ou continuavam, que estas fotografias foram tiradas em dias diferentes e as últimas já têm mais de duas semanas. Agora anoitece mais cedo e começam a vir os primeiros frios...

O pior é que isto está a alastrar, parece ter-se tornado moda. Se a coisa parece resultar para um, há logo outro que pega na ideia e a repete. Portugal é assim. Lembro-me de, no fim dos anos 70, os centros comerciais abarrotarem de lojecas cheia de bonecada pindérica (supostamente queridinha) com dizeres obtusos como "és tão fofinha!" ou indigências mentais semelhantes. Nos anos 80 houve a moda das croissanterias. Abriu a primeira no Campo Pequeno e, em poucos meses, tropeçava-se noutra a cada cem metros, por toda a cidade.

Poucos dias depois, dei com este pekinois à hora do almoço, ainda lá estava perto das oito horas. Parei para lhe fazer festas, a mão sub-repticiamente a investigar-lhe o focinhito, a tentar perceber se a sua obstinação em manter a boca fechada (e os cães respiram pela boca!) não teria marosca por trás. Não tinha, é certo. Deve ter sido muito bem treinado - prefiro nem pensar como. Já viram este olhar de imensa tristeza? Acham isto normal?

Já se sabe que, parecendo tratar-se de uma moda, os seguidores não tardam em aparecer. Agora há mais um. E até o instrumento é sempre o mesmo. Haverá algures uma escola a dar formação acelerada em acordeão para produzir todos estes tocadores que surgiram de repente, vindos sabe-se lá de onde, com cãezinhos o mais pequenos possível, para atrair maiores simpatias e moedas de valor na proporção inversa do seu diminuto tamanho?

Não gosto disto. Não gosto mesmo nada disto.

As fotografias (ando sempre com a máquina na carteira) são de 28 e 31 de Agosto e 19 de Outubro.


Now playing: The Chieftains - Women of Ireland (Barry Lyndon OST)
(click to listen)

ADENDA: esqueci-me de mais estas, de mais um cãozinho. Sem comentários.







13 comentários:

  1. Na "invicta" há alguns anos também lá havia um miudo desses... pensei tantas vezes na melhor maneira de lhe roubar o cão... mas o raio do puto não se distraia nem por nada.

    E não gostava nada que fizesse festinhas no cão... se calhar era por não deixar moeda nenhuma, mas eu jamais incentivaria tal negócio dando moedas!

    Consola-me o facto de saber que esses caes não estão magrinhos, provavelmente seguram o cestinho por amor ao dono... tenho esperança que assim seja.

    beijos d'enxofre

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  2. Também não gosto disso. Há algo de "freak-show" em todo esse cenário, e deixa-me sempre triste a o olhar resignado e subsmisso do animal, sabe-se lá à custa de que sevícias...

    Excelente BSO, excelente filme :)

    Bom dia :)

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  3. Se pudesse,
    Arrancava os coitados dos bichos aos """""donos""""", pregava-lhes aquele tabefe (a ele e ao chulo que está algures à espera do lucro)
    Essa é a verdade!!!

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  4. Essas criancas nao tem culpa. Quando vivia na Romenia era o pao nosso de cada dia. Pior do que isso eram os ursos a dancar ao som do acordeao. Mas quem manda as criancas, esses sim, e que deviam ficar sem os olhos.
    Beijos

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  5. Que tristeza me mostras.. que tristeza. Eu tambem ja vi disso por ai, em todo o lado... alguns ate estao ensinados para irem perto das pessoas ou fazerem uma "venia" quando tem moedas. Tadinhos!!! Fico doente. Fico tao doente que nao consigo ter pena do humano, um farrapo humano, obrigado a fazer essas figuras para "sobreviver".

    Estou incomodada.

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  6. Até a minha cadela, a Paloma, fica chocada com esses espectáculos. Já não passo na Rua Augusta com ela porque começa a ganir quando passa por esses pequenitos :(

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  7. Até a minha cadela, a Paloma, fica chocada com esses espectáculos. Já não passo na Rua Augusta com ela porque começa a ganir quando passa por esses pequenitos :(

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  8. Eu também não gosto. E não daria moedas (se as tivesse). Como não daria às mães que andam a pedir com os bébés ao colo. Se ninguém der, hão-de optar por outras vias para ganhar dinheiro...

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  9. Diabba (Possum!),
    Eu sei, eu sei...
    Estamos entendidas, temos as mesmas ideias, ainda ontem falámos nisto.
    Beijo grande.

    Stephen King,
    Pois é...
    Que hei-de eu dizer mais?
    Já vi que temos a paixão por este filme em comum, é o meu Kubrick favorito, uma autêntica tapeçaria. Além de se cruzar com uma outra grande paixão minha, Brideshead Revisited. A sumptuosa mansão de Lady Lyndon é... Castle Howard. Veja o meu post de 14 de Junho.
    Um beijo.

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  10. Maria Eskisita,
    Também fico doente, essa é que é a verdade. Lembro-me sempre da "História de Um Cão de Circo", do meu querido Jack London.
    Um beijo.

    Nocas,
    Também eu. Aliás há tempos perdi a cabeça e dei um enorme estalo a um miúdo que estava a atirar pedras a um cão (graças a Deus, a pontaria não era grande coisa). O pior foi a confusão que se armou a seguir, com o povinho aos gritos a defender a criança (um matulão de pelo menos 13 anos!).
    Um beijo e obrigada pela visita.

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  11. Melões (Possum!)
    Tu nem me fales em ursos, um animal pelo qual tenho paixão! E sim, a culpa nem é das crianças. Mas olha que estes são bem crescidinhos, andam nos 17, 18, diria eu... Idade mais do que razoável para distinguir o bem do mal.
    Beijo grande.

    AEnima (Possum!),
    Como eu. Uma vez, há muitos anos, na Praça do Chile, vi, uma cena que nunca esqueci. Era quase noite e era Inverno, estava muito frio e caía uma chuva miudinha. Estava um tipo a pedir, sentado no chão, a tocar harmónica. Ao lado dele estava deitado um cão de tamanho médio, que ele tinha tapado com o seu próprio casaco, ficando só com uma camisola já com alguns buracos. Comoveu-me aquele cuidado e aquele amor. Escusado será dizer que lhe dei todo o dinheiro que levava na carteira. Nessa noite, pelomenos, devem ter podido jantar decentemente os dois. :(
    Beijo enorme.

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  12. Lalage,
    Acredito, sabes? Estas cenas são tão tristes! Mas já estou como a Diabba... pelo menos vê-se que estão alimentados!
    Um beijo e obrigada pela visita.

    Van Dog,
    Eu só dou dinheiro a idosos. De preferência, até, ofereço-lhes uma refeição. Não dou dinheiro a crianças (há organizações montadas, normalmente trabalham para um "coordenador" qualquer) nem a essas mães com crianças de ar adoentado ao colo (normalmente dão-lhes calmantes para estarem assim entorpecidas e nalguns casos... nem mães são, as crianças são mprestadas ou alugadas, sabias?).
    Só dei moedas quando vi o cãozinho pela primeira vez no metro e ao segundo, o do pekinois, porque o tipo não estava a achar graça e eu queria mesmo fazer festas ao bicho para perceber se ele tinha alguma coisa a apertar-lhe a boca.
    Beijo grande!

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