Dame Joan Sutherland e o 25 de Abril
Já sei que ninguém, ou quase ninguém, vai ler este post. Pacienciazinha, como eu costumo dizer. Quem sabe da minha paixão por ópera sabe, por arrasto, da minha paixão pela voz desta senhora. Só cantou em Portugal uma vez, uma única, tinha eu treze anos. Escusado será dizer que não a vi. Três récitas da Traviata, a 18, 21 e 24 de Abril de 1974. Como pontaria, não se pode pedir melhor! Falei disso num post antigo, especulei um pouco, na ignorância do que teria acontecido:
O facto de só ter havido três récitas da Traviata da Sutherland, a última das quais a 24 de Abril, faz-me pensar que deviam estar agendadas pelo menos mais uma ou duas, e que foram canceladas por motivos óbvios. Estou a imaginá-la no hotel, na manhã seguinte, certamente querendo saber das críticas... e os militares todos na rua. Duvido muito que os jornais se tenham lembrado de que a maior soprano do mundo tinha cantado na véspera em S. Carlos...
Há uns tempos consegui arranjar a autobiografia dela – uma compra anedótica. O livro está esgotado na Amazon, chegou-me às mãos através de outros livreiros (Alibris, registem o nome, é gente da maior confiança). Uma hardcover em segunda mão e absolutamente impecável que me custou menos de cinco dólares, as despesas de correio foram um pouco mais elevadas. Não sei quanto custará o empolgante relato autobiográfico daquela pessoa ex-ligada ao presidente do Porto, mas é de certeza mais caro...
Verdade seja dita, o livro da minha querida Dame Joan é decepcionante. Ela é tão boa senhora que não diz mal de ninguém, é sempre tudo gente extraordinária (e eu à espera de juicy details acerca de cabrices de bastidores, de duetos penosos com tenores de bafo empestado de álcool, graças a Deus quase sempre mais baixos do que ela, etc...), limita-se praticamente a contar o que cantou, com quem e onde. Mas conta como foi a sua passagem por Lisboa, valha-nos isso! Eis a resposta da grande Dame Joan Sutherland à já famosa questão “Onde é que estavas no 25 de Abril?”:
«Adam [o filho] came home from Aiglon for his Easter holidays, then flew off to Lisbon to stay with a school friend, soon followed by us [ela e o marido, o maestro Richard Bonynge] for our performances of La Traviata. We had chosen to stay at Estoril and travel the few kilometres along the coast to rehearsals at the lovely Teatro Nacional de San Carlos. [sic]
I was very happy to have sent my own costumes from the Australian 1965 tour in advance as the production was extremely stark, the same chairs appearing in every scene, whether in Violetta’s house or Flora’s party. The chorus gowns were not too inspiring and I was also happy to have the new wigs made for the Who’s Afraid of Opera series. Alfredo Kraus was Alfredo Germont and it was, as always, a great pleasure to work with him and Giorgio Zancanario as Papa Germont.
Rehearsal time was very short and we worked on Good Friday evening and Easter Monday. On Easter Saturday and Sunday [13 e 14 de Abril] we did some sightseeing to Sessimbra, Setubal, the Pink Palace, and Sintra and attended a bullfight, finding it very exciting and quite a spectacle. The bulls were not killed in Porugal we were assured. [ao menos isso, ai o que eu odeio tourada!]
Adam had joined us at our Estoril hotel [só podia ser o Palácio] and was very upset that he was not permitted to enter the Casino there, due to his being under age. He was further aggravated when told he could not enter the theatre without a dinner-jacket on the opening night of La Traviata [dantes era assim] – the only performance he could attend as he was flying back to Switzerland the next day for his final term at Aiglon. He ultimately sat in a stage box which still had a grill from the last century to screen those not wanting to be seen in the theatre. He thought that was very special. He had on a business suit and tie but rules were rules, even for the son of the prima donna and conductor.
We were entertained by Ambassador Kelly and his wife Margaret at the Australian Embassy and found them a delightful pair. I still see Mrs Kelly in Australia occasionally.
The final performance was held in the large nineteenth-century circus arena [o Coliseu] which had a greater audience capacity than the lovely theatre – and an odour of animal excrement and sweat. [?!] This was not so noticeable on stage but almost overpowering in the dressing-rooms. However, the audience was wildly appreciative and the curtain calls were very numerous [sempre modesta, foi o delírio!], and we arrived back in Estoril in the early hours of the morning very tired and happy.
What was our surprise and alarm when our charming driver telephoned about 8 a.m. on the next day to tell us there had been a Revolution around 2 a.m. and no one could leave the country. All flights were cancelled and we would have to stay. We then heard from Ambassador Kelly who was very calm and practical, telling us that in his opinion it would all quieten down in three days and we’d be able to leave. The border was closed for three days and we sat in Estoril and enjoyed the fine food there and surrounding towns.
Regina Resnik was preparing a production at the San Carlos and was confined to her Lisbon hotel, with cannons pointing from the square at her windows and some firing guns [?!]. She was very anxious and was glad of our reassurance via our Ambassador that the crisis would be over in three days. He finally facilitated our exit from a chaotic airport.»
Regnery Publishing, Inc. – Washington, DC
Copyright © 1997 by Joan Sutherland
Copyright © 1997 by Joan Sutherland
(com a devida vénia, e esperando não estar a meter-me em sarilhos)
Viva Teresa,
ResponderEliminarvou fazer uma entrada à Dame Joan, só para lhe provar que li o seu post: é um prazer voltar a pisar este espaço depois de pequena uma ausência por motivos de saúde, sem gravidade!
agora a parte pior é que tenho de confessar a minha quase total ignorância sobre ópera, logo um tema que lhe é tão querido..
não significa isto falta de sensibilidade musical, apenas outras apetências e escolhas que fui fazendo. claro que estou sempre de ouvidos à escuta para o que surge, desde que de fonte idónea..
não sei se foi intencional da sua parte (ou se sou eu que faço filmes), mas acho curioso assinalar o dia 10 de Junho com um post (fantástico!) em que a data de 25 Abril é também assinalada se bem que por outros motivos.
deve ter sido para si uma descoberta incrível o livro da Dame e aposto que delirou antecipadamente quando resolveu partilhar com os seus amigos esta espécie de efeméride!
olhe que só por isso, sou bem capaz de ir à Fnac procurar discos da Sutherland para ouvir..
beijo grande e bom domingo!
Estás enganada, posso não comentar mas leio tudo o que escreves.
ResponderEliminarConfesso que o post de hoje me foi particularmente dificil de ler, porque o meu inglês é idêntico ao do Tarzan, mas penso que entendi a generalidade e, tens razão para ela era sp tudo maravilhoso, o que, francamente, me soa a falso, então não viu nada que não gostasse? Nem resmungou nada pelo cheiro a excrementos animais no Coliseu... (teria lá estado um circo)?
No prox. post em inglês, solicito tradução, ou tridento-te!! (ar ameaçador)
beijo d'enxofre
ps - hoje parece-me que vou estar com "ar ameaçador" todo o dia, a diabba-minorca acordou-me às 6 da manhã... grunfffff
Kuska,
ResponderEliminarPois é, eu tinha estranhado a sua ausência, como lhe disse, até perguntei por si ao António. Ainda bem que não foi coisa grave e está recuperada!
Confesso que não houve nada de deliberado neste post em matéria d data, mas quando o publiquei e vi no canto inferior direito do pc a hora e a data... sorri. Calhou, apenas.
Relativamente a discos da Sutherland, este país continua a vergonha de sempre, a sorte é agora haver Internet e podermos ter tudo em casa com a maior das facilidades. Fui espreitar a página da Fnac à procura de um disco em concreto, "The Art of the Prima Donna", gravado logo após a sua mítica primeira Lucia di Lammermoor, o papel em que ela mais se celebrizou (e que, santa paciência, ninguém canta como ela), achei que esse disco seria uma grande apresentação, além de ter sido a célebre "rosette" do Penguin Guide para música clássica, uma distinção muito cobiçada por só ser atribuída a gravações verdadeiramente excepcionais. Está indisponível, para variar. Mas há na Amazon, e até fica mais barato...:http://www.amazon.co.uk/Art-Prima-Donna-Thomas-Arne/dp/B00004XQ8G/ref=sr_1_1/202-7119445-9379045?ie=UTF8&s=music&qid=1181459596&sr=1-1
Um beijo.
Diabba,
ResponderEliminarTenho reparado que andas muito arredada cá do meu cantinho, mas como te encontro a comentar outros... descansei.
O teu comentário tão sucinto de ontem nas Tágides fez-me rir, e prova que essa má disposição de que falas já se tinha instalado ontem, não venhas agora culpar a Diabba filha!
Duvido que o teu inglês seja igual ao do Tarzan, uma vez que percebeste perfeitamente tudo o que leste. Mas não, nada é falso, ela é que é naturalmente uma pessoa encantadora, generosa (o Pavarotti deve-lhe provavelmente a carreira ou, pelo menos, sem ela é possível que tivesse levado muito mais tempo a chegar onde chegou)e com um enorme sentido de humor.
Beijo grande, arruma lá esse ar ameaçador!
Hoje acordei com uma força... há muito tempo que não me sentia assim. Decidi mudar o template e a música do blog para algo mais positivo, mais alegre. Sinto-me bem e vim cá contar-te. Bom domingo.
ResponderEliminarbeijinhos
Sim, tambem o li ate ao fim, como faco com todos, principalmente porque gosto de opera. Mas como a Diabba diz, este texto nao me soa genuino. Uma pessoa nao pode estar sempre satisfeita. Ainda menos um musico. De onde pensas que sai o fogo e a expressividade? nao sera concerteza de alguem com sangue de barata.
ResponderEliminarMinha querida amiga, como sabes, nada do que escreves me é indiferente e adorei ler o ponto de vista da senhora à guerra e à populaça portuguesa.
ResponderEliminarAchei estranho, tal como tu, o cheiro a esterco e a suor. O coliseu sempre foi das salas mais requisitadas para espectáculos de alto gabarito e habitualmente penso que até tinha umas condições de limpeza fenomenais. Se bem que nessa altura ainda não fosse nascido pelo que não posso afiançar. Seria rebentamento de cano de esgoto? ;)
Como sempre, apreciei a tua fantástica escrita. E a ausência de erros. Tão importantes nos dias que correm, tão habituais em ti!
Uma beijoca grande
Teresa, vim mesmoa gora de miniférias, e deixo-te já este desafio. Passa Aqui
ResponderEliminarVou ter tanto que lewr! :)
Obrigada por teres ido regar as plantas enquanto estive fora ;) Beijos
Estás enganada, não ando nada arredada, venho espreitar todos os dias, às vezes mais que uma vez, mas... espero que haja gente que siga o meu exemplo, quando não tenho nada para dizer... não digo! ;-)
ResponderEliminarbeijo d'enxofre
Desafio para si na minha estação! (e, sim, li o seu post!!!)
ResponderEliminarBeijinhos
Maria,
ResponderEliminarAinda bem! Já fui espreitar, só que não comentei.
Beijo grande.
Melóes Melodia,
Não concordo. O texto é genuíno, tão genuíno como a autora. Que, evidentemente, não está sempre satisfeita - não é propriamente o Pangloss de Voltaire.
De onde saem o fogo e a expressividade não sei, criatura sem talentos que sou. Ela tem-nos, sendo ao mesmo tempo uma pessoa de íondole extraordinariamente boa e amistosa. Talvez para isso tenha contribuído uma vida muito serena e estável e um casamento muito feliz. Tal como a Edita Gruberova.
O exemplo oposto é a Callas, que foi profundamente infeliz. Mas todas tinham esse tal fogo. Qual a explicação?
Um beijo.
Morsa,
ResponderEliminarPois é, estranhei aquela refrência, não consigo percebê-la.
Quanto à ausência de erros na minha escrita... bem sabes que isso é para mim coisa obrigatória! Não tolero erros. Já ela ser fantástica... é das tuas lentes cor-de-rosa... :)
Um beijo.
Diabba,
Retiro o que disse, depois do muito que falámos ontem. Eu também nem sempre comento, mas leio.
Beijo!
Thunderlady,
ResponderEliminarComo vês... apressei-me a obedecer :)
E foi um prazer "regar as plantas".
Beijo.
Picas,
Já fui espreitar... Já comento no sítio próprio: na sua estação.
Um beijo.
Ora aí está um verdadeiro relato de uma revolução...o que para nós foi um momento alto, para a Joan foi uma surpresa estranha...bizarro ver as coisas por outros olhos.
ResponderEliminarEskisito,
ResponderEliminarMuitíssimo bem observado!
Um beijo.
Após uma ausência de alguns dias, eu li!
ResponderEliminarE gostei.
Um dia perguntaram a Sutherland qual a melhor voz da Ópera.
A resposta foi pronta:
"Ghiaurov nos seus primeiros tempos!"
Nunca esqueci.
José,
ResponderEliminarBem-vindo seja! Tenho estranhado a sua ausência, mas deduzi que tivesse ido para fora, dado não haver grande movimentação nos seus cantinhos.
Não podemos questionar o facto de Sutherland ser uma grande autoridade na matéria. E ele tinha de facto uma voz espantosa! Além de ser marido da nossa querida Freni.
Mais uma perda...
Um beijo.
Teresa,
ResponderEliminarFui vezes sem conta ver ópera ao Coliseu, mais precisamente entre 1964 e 1976, e esse cheiro a que a Sutherland se refere é maior verdade das verdades e até achei piada porque os "cheiros" nunca se esquecem e ao ler as referidas linhas fiz uma viagem ao passado.
Raul
Raul,
ResponderEliminarEm primeiro lugar, seja muito bem reaparecido! Já tinha saudades dos seus comentários.
Agora explique-me: a que se devia o cheiro?
Um beijo.
Teresa,
ResponderEliminarObrigado, mas muito trabalho. Agora vou de férias e na quarta-feira espero estar em Portugal.
O cheiro? Era tão óbvio. Eu vi, quando criança, muito circo lá. Aliás, sempre associei o Coliseu a circo. Mas naquele tempo seriam talvez cavalos (estou a especular), haveria lá estrebarias, resquícios dos tempos circenses.
Curiosa a referência à grande Regine Resnik. Esta estava a preparar uma Elektra, onde era encenadora, juntamente com o marido, e interpretava a Klytmenestra. A récita do domingo à tarde eu vi-a e, nessa altura andava na tropa, fui vê-la com o camarada de armas, tendo comprado o bilhete no próprio dia. A ópera só foi ao S.Carlos e nós fomos para o "galinheiro". Saí "esmagado", pois era o meu primeiro contacto com Ricardo Strauss. Ainda hoje, fecho os olhos e estou a ver a Resnik.
O que é "estranho" é as entrelinhas da Sutherland, pois li algures, não me lembro onde, mas juro que li, que também não me lembro em que situação, a Resnik vendo passar os soldados da Revolução saudou-os com "V" da vitória. Este facto assenta como uma luva na personalidade da grande "singing actress".
Eu acho que já escrevi aqui: eu tinha bilhete para a Traviata no Coliseu, mas como estava na tropa e em Gaia, achei melhor não vir, porque apercebi-me que teria talvez problemas, pois havia muitos rumores dentro dos quartéis.
Raul
Agora compreenderás porque é que o livro te saiu tão barato: é que não tem detalhes escabrosos sobre os comportamentos do pessoal VIP e conhecido! ;-)
ResponderEliminarE, sem isso, sabemos que não vende lá muito (a senhora ex-íntima do presidente do FCP é que tem olho para essas coisas...).
Beijos
Raul,
ResponderEliminarA história da Resnik é de facto curiosa.
Que pena não ter chegado a ver a Sutherland! O meu amigo Artur, 17 anos mais velho do que eu, viu a Callas quando cá veio e depois mais algumas vezes lá fora, além de a encontrar muitas vezes em Paris, que ele sempre se moveu entre o jet set internacional. É aliás muito amigo da viúva do Karajan e já ficou muitas vezes como convidado nas casas dela de Salzburg e de Saint Moritz. Viu também a Sutherland, foi aliás pela mãe dele, absolutamente por acaso, que eu descobri há naos que ela cá tinha cantado (conto a históia no post de 7 de Novembro passado).
Um beijo.
Actriz,
Pois é... sem detalhes escabrosos não há vendas... Mas olha que o livro está esgotado, eu só o arranjei em segunda mão. Foi uma óptima compra.
Beijos.
Eu li. Li hoje e li tudo.
ResponderEliminarTambém tenho a auto-biografia da Sutherland, que confesso ser uma pouco aborrecida, mas que consulto muitas vezes para enquadrar algumas passagens da sua vida.
A passagem por Lisboa é um exemplo.
Cumprimentos
Alberto
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