quinta-feira, 28 de setembro de 2006

E que tal abrirmos os olhos?

Quem me conhece melhor sabe como sempre pugnei pelo direito à diferença e sabe do meu enraizado ódio ao preconceito. Mas o preconceito é uma coisa insidiosa, traiçoeira, com tentáculos inesperados e insuspeitos.

Por portas travessas cheguei a este nome: Quentin Crisp. Nada de extraordinário, para quem souber da minha paixão pelo teatro (OBRIGADA, Dr.ª Teresa não sei quê, minha professora de Inglês no 7.º ano – um dia contarei a história, digamos só, to cut a long story short, que passa por Oscar Wilde e John Osborne). Com muitas referências cruzadas de permeio, cheguei a este título. The Naked Civil Servant. As recomendações eram mais que suficientes, a começar no actor – John Hurt. O Calígula de I Claudius, o Elephant Man, o protagonista de 1984 (que nunca vi... mas li o livro, muito antes do ano fatídico).

Confesso que não estava preparada para a vaga de emoção que este filme me trouxe. Já o vi três vezes em dois dias. Que pena ser tão curto, fica-se à espera de mais!

E de repente dei comigo a ter de equacionar de maneira diferente coisas que para mim eram dados adquiridos. E a ter vergonha. Vergonha de mim. Vamos lá, quem sou eu para estabelecer fronteiras entre o que é admissível ou não? Mais uma vez, quem me conhece melhor sabe que tenho histórias delirantes passadas com pessoas com uma orientação sexual diferente. Ainda assim, subtilmente, eu tinha uma barreira. Não sei explicá-la (talvez soubesse... melhor não). A culpa, devo dizer, não era inteiramente minha. Acreditem em mim, não encontrarão nunca ninguém mais enraizadamente anti-homossexual do que um homossexual. Não sei explicar, sei que é assim, tantas vezes assisti. Os adjectivos – que não são meus - não são nada bonitos. Começam em bicha e vão por aí fora.

Este filme (The Naked Civil Servant, caso já tenham esquecido o assunto) representou para mim um despertar. Nem vou perder tempo a falar de como é bom ainda haver coisas que, mais perto dos 50 do que dos 40 (é verdade, let’s not slip into denial) ainda nos agarram pelos ombros e nos fazem de repente ver tudo a outra luz.

John Hurt, magistral como Quentin Crisp, fez-me perceber que eu (que me julgava tão liberal, imaginem só...) era mesmo assim odiosamente preconceituosa. Os meus amigos gay têm um ar masculino. Pior ainda, bem sei que um gay com maneirismos está liquidado à partida. É um mundo duro, acreditem, e só os mais fortes sobrevivem – e só sobrevivem enquanto tiverem um palminho de cara e um corpinho musculado para exibir num mercado que é bem mais exigente que o do heterossexual comum. A idade é um peso. Ninguém diz a sua. Até há uma expressão generalizada: tem-se X anos... in gay years. Confesso que isto me faz impressão. Posso não estar irrepreensível... mas toda a gente sabe a minha idade. Como nunca a escondi... agora seria demasiado tarde. Aquele universo de faz de conta constrange-me. Até posso ser cúmplice, é certo. Posso atestar que tal pessoa é dez ou quinze anos mais nova que eu quando tem a minha idade ou até é mais velha. Não me custa nada. Fico só brevemente a pensar onde fica verdade. E no fim dou comigo a rir e a pensar que a verdade importa muito pouco. Se soubessem o calibre de alguns dos anormais que já me passaram pela frente de certeza que achariam que qualquer aldrabice da minha parte era legítima.

Voltemos a The Naked Civil Servant. Este filme agarrou-me pelos ombros, abanou-me, fez-me pensar. Há quase seis anos fui de propósito a Paris para estar no Père Lachaise a uma certa hora de um certo dia, com umas certas flores. Era uma promessa antiga. No 100.º aniversário da morte do meu idolatrado Oscar Wilde (30 de Novembro de 2000), à hora exacta, eu estava no cemitério em sentida homenagem. Até tenho um retrato (ai... aqui vêm memórias de músicas, os S&G e o Bookends Theme...).

Aquilo que verdadeiramente importa? Eu ainda tinha preconceitos. Talvez ainda conserve alguns, noutras áreas que não são para aqui chamadas. Mas sabem que mais? Pouco me importa que um homem use baton, verniz de unhas, tudo o resto. Não conheço ninguém assim. E depois? Têm direito a isso, a essa escolha. QUAL É O PROBLEMA?

Se eu tivesse conhecido Quentin Crisp em vida ter-lhe-ia dado um abraço apertado a querer dizer PERCEBO.

E sabem que mais? Irrita-me ser tão irritantemente normal. Normal para mim pode muitas vezes ser sinónimo de poucochinho.

10 comentários:

  1. Está fantástico este teu texto, Teresa. Fiquei cheia de vontade de ver o filme e de, provavelmente, questionar também o meu conceito de 'despreconceituosa'. Está na lista. Beijo enorme :)

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  2. O texto só tenta homenagear um filme extraordinário, Carla. Vou enviar-to, que não está cá editado. Não tem legendas, o que graças a Deus não constitui qualquer problema para ti. Digamos que vais perceber 99% do que se diz. Isto porque aparecem brevemente algumas personagens com um inglês cockney, e eu não consigo pescar quase metade do que dizem.

    O mesmo me aconteceu numa peça fabulosa que vi há uns anos em Londres, Vincent in Brixton, uma coisa comovente sobre um período em que o Van Gogh (sim, o Vincent do Starry, Starry Night)viveu em Londres quando era muito novo e ainda não tinha começado a pintar. Uma das personagens falava um cockney cerradíssimo. De vez em quando eu dava uma cotovelada discreta ao Victor a questionar com um franzir de sobrancelhas o que tinha ele dito. O Victor, cujo inglês é cem vezes melhor que o meu, encolhia resignada e eloquentemente os ombros num gesto que poderia ser traduzido por... beats me! Também não percebia.

    O filme fica-te desde já prometido. Os extras são fabulosos. Duas entrevistas com o verdadeiro Quentin Crisp.

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  3. Obrigada, Teresa querida :) À tua conta, vou tendo uma lista fantástica de músicas, séries e filmes :) Tenho a certeza que também não vou pescar nada dessa parte do filme que referes, mas não há-de ser por isso que vou desanimar. Um beijo muito grande :)

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  4. Cara amiga gostei do seu texto, tal como de outros que já tive oportunidade de ler nos mails que me envia. A questão preconceitos é muito vasta pois a definição de preconceito, ultrapassa as linhas mestras de conduta social que nos impõem na infância e prolonga-se pelos meandros de tudo aquilo que somos ou procuramos ser enquanto indivíduos. A nossa busca por quam somos e em que espaço nos inserimos leva-nos a ser vítimas do dedo acusatório dos que não são como nós nem nos procuram compreender. Não presisamos de ser homosexuais, basta sermos diferentes, não semos mesquinhos e não nos importarmos com as trivialidades que compõem a vida da sociedade em que vivemos. Somos marginais de uma sociedade robotizada e escrava da mais cruel das ditaduras, a democracia. Mas tudo isto pra dizer que adorei o texto.
    Beijos
    António

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  5. Olá Teresa como vai?
    Gostei do seu texto, trouxe-me muitas coisas à memória, algumas delas já quase esquecidas na profusão de recordações que me inundam a alma e algumas ainda me perturbam os sentidos pela intensidade com que as vivi. Fui um homem de muitos lugares, tantos que de alguns nem recordo mais o nome, só o espaço e as vivências de noites com perfumes vários, som e luzes mesclados de pessoas que se empurravam na procura de uma nesga de espaço, enquanto seguravam o copo na mão. Eram noites de Lisboa, Cascais, Algarve e tantos outros lugares que para mim todos me pareciam iguais. Lembro-me que adorava dançar aquelas músicas como Song For a Guy do Elton John ou Born To Be Alive do Patrick Hernandez...rsss. A verdade é que sempre fui bom dançarino e conjuntamente com um amigo meu apelidado de "Travolta", muitas vezes as pessoas abandonavam a pista para nos deixar sózinhos no centro dançando para admiração dos presentes e suspiros femininos. Nessa altura a música era a minha vida. Tinha discotecas que me guardavam as novidades para eu ir ouvir e escolher aquelas que queria juntar a uma vasta colecção. A discoteca Roma era um local obrigatório e também uma outra que ficava na Rua do Carmo e que só funcionava com importações. O engraçado é que nesta minha busca nunca engraçei com a música brasileira, ainda hoje não engraço na totalidade...rsssss. Sou um hippie de armário e aquilo a que chamam um roqueiro convicto. A música que mais me diz é a da década de finais de 60 e começo dos 70, depois os blues, se calhar não necessáriamente por esta ordem. Fui e acho que ainda sou um filho do Woodstock com alma de negro criado nas plantações de algodão. Um avô criou-me o vício das guitarras quando eu tinha 4 ou 5 anos de idade e ainda dura actualmente, sem uma guitarra por perto sinto-me nú. Se existe algo constante na minha vida são a música e as guitarras. Quando tocava chamavam-me o rei do rock ou Toni do rock, na altura não percebia bem porquê, hoje faz mais sentido. Mas hoje escuto talvez mais Sinatra do que rock. O seu texto trouxe-me muitas coisas à memória, mas talvez a mais importante seja o facto de que fiz muitas coisas que outras pessoas desejariam ter feito, tive o que muitas pessoas gostariam de ter tido e conheci gente que muito mais gente gostaria de ter conhecido e hoje estou em paz comigo, aqui no meu canto um ilustre anónimo igual a tantos outros que tal como eu saborearam a vida d uma forma diferente seja qual forma tenha sido. Acho que a Teresa também saboreou bem a vida e continua, isso é bem patente no que escreve. Continue minha amiga pois tirando os bons momentos vividos e as nossas recordações, tudo o mais é efémero.
    tenha um bom dia minha querida amiga na companhia das suas companheiras felinas
    Beijinhos
    António

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  6. Querido António,

    Eu já devia ter-lhe respondido ontem, mas complicações várias impediram-me.

    No entanto, a sua frase Fui e acho que ainda sou um filho do Woodstock com alma de negro criado nas plantações de algodão tinha um apelo irresistível e enviei-lhe por mail uma certa música que é muito querida. O Mr Bojangles, naquela que considero ser a versão definitiva, a dos Nitty Gritty Dirt Band.

    A sua menção ao Elton John fez-me sorrir, porque é um dos meus eternos. Venero tudo o que ele compôs até ao Captain Fantastic. Não tenho um único disco posterior. Já o Born to Be Alive (e sei que concorda comigo)faz-me calafrios. Considero-o uma das canções mais hediondas de toda a história da música, de parceria com um certo Ring My Bell de uma Anita Ward (seria?), de um I Love to Love (Tina Charles) ou de um Hurray, Hurray, It's a Holi-Holiday daqueles Boney M. que não consigo lembrar sem repugnância e que estão para a música como o Paulo Coelho está para a literatura. A mera audição de 30 segundos de cada um destes monumentos é suficiente para me pôr fisicamente mal disposta. Juro que é verdade, a minha irmã é testemunha. Uma vez, há muitos anos, levou para casa um disco dos Boney M. que pôs inocentemente a tocar. Na tal musiquinha, eu supliquei-lhe que tirasse aquilo. Ela estranhou, e só quando viu que eu estava a ficar com uma cor esquisita - devia ser verde - percebeu que a coisa era séria e apressou-se a fazer desaparecer o famigerado coiso.

    Ainda gostaria de lhe dizer mais algumas coisas nesta trip into memory lane, mas neste momento estou aflita com trabalho.

    Um grande beijo para si e obrigada pelos mails giríssimos que me manda.

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  7. A melhor frase é mesmo o nºao haver ninguém mais anti-homossexual que os próprios. É mesmo isso.
    Beijos

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  8. Belíssimo texto, Teresa. E aguçou-me ainda mais a curiosidade para o filme. Se não o encontrar, emprestas-mo?

    beijo

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  9. Ana,
    Faço questão de te enviar uma cópia, é o meu pequenino presente de Natal para ti.
    Grande beijinho.

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  10. Depois de ler este seu texto, sinto-me duplamente agradecida pelo comentário que deixou no meu cantinho :)
    Tenho de pedir ao sr. Henrique dos filmes para me arranjar uma cópia porque morro de curiosidade :)

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