segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Tempus fugit

A última coisa que esperamos, quando ligamos a alguém que é tão antigo na nossa vida que é de toda a vida e para sempre na nossa vida, é que nos atenda o telefone numa cama de hospital, e que nos diga com toda a calma que está internado porque teve um AVC esta manhã.

Dir-me-ão que o cenário não pode ser assim tão negro, já que até me atendeu o telefone, já que até desdramatizou a coisa. Mas eu é que sei. Há pessoas sem as quais não conseguimos conceber a nossa vida, e ele é uma delas. Sempre presente, sempre amigo, sempre terno e solícito, mesmo quando (tantas vezes!) com uma máscara abrutalhada a vestir uma sensibilidade imensa. Sempre a fazer-me rir. Sempre a telefonar-me às horas mais descabidas só para me fazer uma qualquer pergunta pateta (como eu também faço com ele), para esclarecer uma dúvida de História ou de Português, ou de Cinema, ou de Música. O meu Amigo que, no auge da cabra da minha doença, me telefonava às duas e três vezes por dia a querer saber de mim, a fazer-me rir com perguntas tão parvas que nem posso contar aqui.

Esta noite (note-se que falamos coisa de três vezes por semana) liguei-lhe só para lhe fazer uma pergunta que ando a fazer a muita gente, pergunta que depois pode desdobrar-se noutras. A pergunta? Quem foi o grande amor da sua vida? Tenho tido respostas surpreendentes, acreditem. Seria de esperar que um amigo ou amiga casados há coisa de vinte e tal anos nos dessem automaticamente o nome da mulher ou do marido. Mas não. Houve casos em que à minha pergunta se seguiu um grande silêncio, depois um grande suspiro, depois um nome inesperado. E uma história quase sempre muito antiga, uma nota de quase dolorosa nostalgia na voz de quem a conta. É nessa altura que atalho caminho e faço a segunda pergunta: o que foi que correu mal?

Como vos disse, telefonei ao meu amigo para lhe perguntar, out of the blue, quem tinha sido o grande amor da sua vida. A resposta veio sem qualquer hesitação, pronta, imediata. «Foi a João.» Dir-me-ão que, sendo nós dois tão amigos e há tantos anos, eu deveria saber. Mas não, meus bons amigos, essas coisas não são assim tão evidentes, coisas há que nunca dizemos de viva voz, mesmo àqueles que melhor nos conhecem. No caso do meu amigo, o meu amigo de toda a vida e para toda a vida, o Pedro, o meu visitor from Charleston, cavalheiro à antiga, cavalheiro até à medula, a resposta à minha pergunta foi-me extraordinariamente apaziguante, o nome da segunda mulher lançado sem qualquer hesitação. E foi já a rir que o dispensei da segunda pergunta, «o que foi que correu mal?» Nem era preciso responder, sabíamos os dois. O que correu mal foi ele. E concordou comigo.

Perguntei-lhe também sobre o Nuno, ao fim e ao cabo nós dois somos quase de certeza quem melhor e mais intimamente o conheceu. Aí o Pedro hesitou. Amor ou paixão?, perguntou ele. Amor, fui peremptória na resposta. «Paixão acho que foi a... (nome que não é para aqui chamado). Amor acho que fui eu. E você.» E voltámos a rir. O Nuno era pessoa tão pouco de se entregar que provavelmente o máximo de amor que soube dar teremos mesmo sido nós dois — é evidente que os três filhos não entram nesta equação, o que sabemos é que era sempre para nós que corria nos momentos de dor, de desorientação, era connosco que partilhava histórias incontáveis, e talvez inaceitáveis para outros ouvidos que não os nossos.

A banda sonora para tudo isto? Muitas poderiam ser as músicas, prefiro centrar-me naquela que, não sendo a melhor de todas as músicas dos Moody Blues, é a nossa comum favorita. Uma vez, há trinta anos, o Nuno ganhou ao Pedro uma garrafa de whisky no Stone's por causa dela. Eu estava com o João, o namorado nessa época, na mesa triangular por baixo da cabine. O Nuno bateu-me no ombro, «estou a contar consigo para a próxima música, apostei uma garrafa de whisky em como você sabe o que é.» Apurei os ouvidos, expectante, os olhos já postos no querido Pedro Oom na cabine. E às três primeiras notas, ainda antes da entrada da voz de Justin Hayward, encolhi os ombros (esperava coisa mais difícil, diabos!): «Moody Blues, Never Comes The Day.» O Nuno gargalhou, uma garrafa de whisky ganha. O Pedro pagou galhardamente a garrafa, e confidenciou-me que aquela era a sua música favorita dos Moody Blues. Talvez tenha sido nessa noite que a grande amizade de nós dois se tenha estabelecido com maior firmeza, por causa daquela música. E não há seguramente esteio mais forte para uma grande e imorredoira amizade do que uma grande música. Ou um grande livro. Ou um grande filme.

Enorme suspiro. Tudo isso temos em comum, o Pedro e eu. Músicas, livros, filmes.

E vós, queridos amigos? Querem contar-me os grandes amores da vossa vida? A resposta pode (e deve, muito provavelmente) ser em privado, por email ou no Facebook. Bem sabem que sou muito discreta.




3 comentários:

  1. "Quem foi o grande amor da minha vida?" O Paulo, o meu marido. Ficámos a 20 dias de festejar e comemorar 24 anos de casados e 30 anos de convivência se contar que fomos colegas, amigos e mais tarde namorados. "O que foi que correu mal?" A silenciosa e traiçoeira Paragem Cardio-respiratória, seguida do fulminante Enfarte Agudo do Miocardio, ou vice-versa, não sei bem nem tem importância.

    As melhoras do seu amigo.

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  2. Que triste, Helena, uma partida tão antes de tempo, o Paulo devia ser ainda novíssimo. Deixou-me sem palavras, confesso. Um grande beijinho para si.
    O Pedro teve alta esta tarde, graças a Deus. Muito obrigada.

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  3. Obrigada, Teresa, pelas suas palavras. Sim, o Paulo era novo, morreu um mês depois de ter feito 48 anos e 15 dias depois de ter feito uma série de análises e exames de rotina, entre eles um E.C.G com prova de esforço e uma ecografia ao coração, ninguém viu nada de anormal, até lhe deram os parabéns pela forma física que apresentava.

    Um abraço

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