sábado, 20 de julho de 2013

Um lugar no coração

Uso deliberadamente, com a certeza antecipada de que ela não se importa, a mesmíssima fotografia que a Ana Vidal usou ontem no Delito de Opinião para falar da sua relação com o IPO. Temos falado com frequência ao telefone e descobri que a Ana é a única pessoa que tem por aquela casa os mesmíssimos sentimentos que eu. Com frequência combinámos que, de uma das próximas vezes que eu tivesse de lá ir, ela iria comigo. Calhou ontem. Vale a pena ler o que a Ana escreveu e que poderia ter sido escrito por mim, certamente com outras palavras e seguramente menos bem. Temos ambas uma relação de afecto imenso com aquela casa de medo, sofrimento, muitas vezes de morte, mas que para nós foi de também de ressurreição, e com essa ressurreição vieram muitas outras coisas. Para a Ana, que, graças a Deus já não ia lá havia tanto tempo, foi (sinto) em parte uma peregrinação. Mostrei-lhe as coisas novas, apresentei-lhe pessoas com quem nos cruzávamos e que me saudavam, a minha passagem por lá suficientemente recente para que lembrem a minha cara e o meu nome entre milhares de doentes, apresentei-lhe a minha querida Luísa. Devíamos, agora que penso nisso, ter ido aos pisos de internamento dar um abraço a enfermeiros e auxiliares, ambas passámos por lá com quinze anos de diferença e sei agora que fomos exactamente o mesmo género de doente. A bem-disposta, a que tem sempre uma graçola a dizer, a que se disponibiliza para ajudar os outros, nem que seja apenas para tocar a campainha fora do alcance de mãos mais alquebradas do que as nossas, a que se levanta da cama para ir restituir  um objecto caído, seja uma revista ou um telemóvel, a que consola, a que silencia todas as conversas sobre a doença comum, "aqui não se fala disso!"

A seguir, de alma cheia, almoçámos juntas numa esplanada ali perto (retrato no meu mural do Facebook, para quem a ele tiver acesso, acho que não ficámos nada mal), na conversa boa de sempre, eu interessadíssima no novo projecto da Ana, ela a contar, eu a fazer perguntas. E espero que a sugestão que lhe dei, numa inspiração súbita, se concretize, já começámos a trabalhar para isso, cada uma por seu lado.

A Ana voltava para Sintra, eu ainda tinha de ir ao El Corte Inglés resgatar o meu Dupont (contei a história aqui, devem lembrar-se) antes que ele levasse descaminho, recusei risonhamente a boleia que a Ana me oferecia, estava apenas à distância de uma estação de metro, e subi o resto da Columbano. Nisto passo por uma loja em que nunca tinha reparado, já que normalmente subo e desço pelo outro lado da avenida, que anunciava em grandes cartazes que os vestidos estavam com 50% de desconto. Nem me lembro de quando foi a última vez que comprei uma peça de roupa, mas adoro vestidos e entrei para espreitar. Incrédula, confirmei com a empregada que o desconto era de 50% sobre o preço marcado (14 euros!), ela disse que sim. Fui para os provadores com quatro. O de seda preta com bolinhas brancas (essa história das polka dots não funciona comigo, para mim são bolinhas e ponto final, já embirro que chegue que mesmo a peça mais banal hoje receba das bloggers ditas de moda nomes estrangeiros, em inglês, nomes que há trinta e tal anos eram parcimoniosamente utilizados, e em francês, porque a moda começou em Paris) encantou-me, até porque tinha as cavas americanas que adoro (uma mania que eu tenho), e os meus braços já começam a poder ser vistos de cavas, agora que ganhei algum peso. Mas estava-me enorme na cintura e nas cavas, requeria arranjo, descartei-o. Levei os outros três para o balcão Um de ganga, e eu adoro vestidos de ganga, um de tecido alinhado em envelope, a fechar com um laço na cintura atrás, um cor-de rosa, com flores brancas muitos discretas bordadas, uma pérola  pequenina a fazer o olho da flor), e disse à menina que no cor-de rosa teria de me fazer um desconto especial, faltava uma pérola. Ela, amorosa, olhou em volta, não fosse estar alguém a ouvir, baixou a voz e disse-me num sorriso conspiratório que ficava por cinco euros, até porque dificilmente serviria a mais alguém. Registou os outros dois e saí da loja com três vestidos que me custaram o total de 15 euros, a empregada engraçou comigo (cheerfulness goes a long way) e arredondou todos os vestidos para cinco euros

Mas não há bela sem senão. Enquanto estava no provador, o anel de prata e ónix que estava no dedo médio da minha mão esquerda (bem visível no retrato do meu almoço com a Ana que está no Facebook) saltou para o chão, a pedra soltou-se e ficou ligeiramente lascada. Ainda ponderei tentar colá-la aqui em casa, mas achei que era preferível levá-la à ourivesaria em que comprei o anel. Ficou lá, vamos ver.

Enfiei-me no metro com a missão de ir ao Corte Inglés resgatar o meu Dupont. Tinha sido suficientemente clara quando me telefonaram com aquele absurdo orçamento de 158 euros. Ia só levantar um isqueiro que não funcionava. Não sei qual foi a parte de "não pago isso, devolvam-me o isqueiro como está" que os senhores espanhóis não perceberam. O que sei é que me limparam e afinaram o isqueiro de alto a baixo, lindo, reluzente e com gás (que também não é barato). O que sei é que a empregada do stand da Dupont no Corte Inglés voltou perdida de riso com ele na mão e uma explicação sumária: não sabia qual era a parte de "não pago esse arranjo" que eles não tinham percebido, o facto era que tinham mesmo arranjado o isqueiro. E como eu tinha sido categórica na minha recusa de aceitar o preço do arranjo... era grátes. Despedi-me da menina com um beijinho e estou aqui a olhar para o isqueiro com olhos ternos, até porque o passo seguinte é deixar de fumar. Mas reformemo-nos deste vício terrível com o Rolls Royce dos isqueiros em plena forma!



Para acabar o meu dia, à saída da ourivesaria em que deixei o anel de prata e ónix para consertar, cruzei-me com o Quico. Vejo-o pouco, mas sinto que o Quico é um anjo bom na minha vida. Poupo-vos a cena lamechas de abraços e festas entre os dois. O Quico é aquele cãozinho a que falta o braço esquerdo. O Quico é um exemplo para todos nós, tamanha a sua alegria de viver.

Foi um dia bom. Foi um dia bom e bonito.

9 comentários:

  1. Minha cara Teresa, ando há já algum tempo para lhe deixar um comentário, não sei bem o que me levou a fazê-lo hoje, talvez o relato simplTerete dia especial, me tenha inspirado a fazê-lo! Esta normalidade aflitiva, com que fala do IPO, para mim a casa do pânico, desconcerta-me e ao mesmo tempo acalma-me. Vivo neste momento uma situação bem triste com um familiar que também é doente oncologico, e desde Setembro que vivo angustiada, ansiosa, enfim a Teresa calcula! Fico muito feliz por vê-la a recuperar-se, este comentário é para lhe dizer isso, e agradecer-lhe as palavras que me deixou no blogue (a Teresa foi a minha segunda seguidora de sempre no blogue), e motivou-me a fazer posts todos os dias, dizendo-me que assim o blogue cresceria, para além do esperado. Assim fiz, desde esse dia que sigo o seu concelho, e o blogue é hoje para além de uma ferramenta de trabalho imprescindível, o aliado que me ajuda a superar, este período tão escuro da minha vida. Portanto o meu obrigada, duas vezes, Teresa, o meu primeiro por este relato de normalidade, que hoje em dia me foge, e que ganhou contornos de jóia rara, e depois pelo incentivo de me aprimorar profissionalmente. Um beijinho muito grande, estou-lhe muitíssimo grata.

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  2. Cheers! E queres saber uma coisa engraçada, mais uma coincidência? O meu Dupont é igualzinho ao teu. :-)

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  3. Os animais são quase sempre um grande exemplo para nós. Conheço uma cadelinha sem a perna direita que corre mais depressa que o Usain Bolt. Além disso, é atrevida, sempre que se encontra com a minha Lucy vem com ar de quem diz: "Olha que comigo ninguém brinca!" As duas medem-se de alto a baixo e só depois se permitem uma à outra cheirarem-se. Mas sempre com muito respeitinho ;) E é uma grande lição que tiramos: para nenhuma das duas, a "deficiência" de uma delas é impeditiva de se encararem com a dignidade que se merecem. Sem constrangimentos nem preconceitos.

    Também já li o belo texto da Ana Vidal. Só espero que a minha mãe encontre a força que vos sustentou às duas. A poucos dias de fazer a segunda sessão de quimio, caiu-lhe mesmo o cabelo, o que se pensava que só acontecesse depois. Que ela, um dia, possa encarar aquele sítio de frente e sentir-se grata por ter sobrevivido é o que eu também lhe desejo.

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  4. Ângela,
    Ânimo, menina, por favor! Não vou contar-lhe das vezes que desanimei, das vezes em que tive muito medo. No IPO houve sempre caras, vozes e mãos amigas a sustentarem-me. Viva um dia de cada vez, acreditando que no fim há luz. Para mim e pata a Ana (e os nossos SOB não eram dos mais fáceis) foi assim. Nós temos mesmo um imenso afecto pelo IPO. Confie, entregue a Deus,Ele não vai faltar-lhe.

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  5. Irra, Ana, se eu acreditasse em bruxas um dia destes tínhamos de ir a uma. Até a porcaria do Dupont é igual?!

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  6. Cristina,
    Sabes que peço diariamente pela tua mãe, tenho muita pena que estejas geograficamente tão longe dela, e que te sintas tão impotente.

    O cabelo é só cabelo, bem sei, mas é uma parte importante da nossa identidade enquanto mulheres. A mim, como sabes, não caiu (mas eu já tinha o tique de puxar por ele, convencida que estava de que no dia em que ficasse com uma madeixa nas mãos ia rapar a cabeça). Há em Lisboa uma casa muito boa especializada em perucas, a minha Mãe recorreu a ela e tinha sempre uma cabeça linda, é na Praça das Flores. Eu não ia usar peruca, toda a gente me conhece há mais de 30 anos com o mesmo penteado, teria recorrido a lenços. Mas uma senhora mais velha tem necessidades diferentes, se precisares de detalhes conta comigo.

    O Quico? Oh, o Quico é realmente um ser inspirador na minha vida, De cada vez que o encontro fico envergonhada, tão melhor do que eu sinto que ele é.

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  7. P.S. Desculpa, Cristina. A casa de perucas é na Praça da Alegria.

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  8. O que eu gosto de vestidos e por esses preços então. E O isqueiro arranjadinho, muito bom.

    Tenho uma grande admiração por todos aqueles que dão graças à vida e a valorizam, aqueles que lutam todos os dias para sorrir, quando lhes dá vontade é de chorar, que se levantam da cama, que têm náuseas e dores, as físicas e as outras mas que se recusam a baixar os braços. Tenho um doente oncológico na família e sei o quanto são heróis.

    Que todos os dias sejam bons e bonitos. Que hoje seja um bom dia.

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