segunda-feira, 1 de julho de 2013

E a coerência, senhores? (e tanto revisor sem trabalho)



A isto chamo eu jornalismo do bom e do melhor. Reparem que no título da notícia a ainda secretária de Estado do Tesouro e agora parece que ministra das Finanças (será também ministra de Estado?) aparece como Maria Luísa, já no corpo da notícia aparece com o seu nome verdadeiro, Maria Luís. Eu cá, no lugar da senhora, afinava. Diria como o Guimarães, o tio de Dâmaso (Dâmaso Cândido de Salcede), que vivia em Paris e que lá passava por M. de Guimaran, «embirro que me estropiem o nome.» 

Eu sei como estas coisas podem acontecer, ou pelo menos sabia, no jornalismo jurássico (corriam os anos históricos de 1989 e 1990). Tive vários exemplos na saudosa Patada (ver posts anteriores aqui). Nós esforçávamo-nos imenso, mas a verdade era que o jornal já era uma bandalheira vergonhosa e sem remédio. Já não tínhamos jornalistas, os poucos da velha guarda que ainda se tinham aguentado já tinham saído, desgostosos. As notícias publicadas não eram mais do que transcrições de telex da LUSA e de telefotos de uma agência estrangeira cujo nome tenho aqui na ponta da língua e que teima em fugir-me.

Triste é reconhecer que trabalhávamos que nem doidos para produzir obra de tão fraca qualidade. Eu rangia os dentes em surdina quando o director vinha sentar-se ao meu lado, ao fim da tarde, para me ditar o editorial, com a pergunta petulante «Então, Teresa, como é que vamos dirigir-nos hoje ao país?»

Éramos uma equipa pequena mas muito coesa, cada um lançava mão a tudo o que pudesse fazer para ajudar. Eu já tinha trabalho de sobra com a agenda, cinco páginas diárias a meu cargo, em que o que me fazia suar sangue era mesmo a cabra da astrologia (já contei) — imaginem o que é ter de inventar diariamente 36 coisas diferentes (amor, saúde e dinheiro) para 12 signos, mas se era preciso fazer outras coisas arregaçava as mangas (eu e todos, seja feita justiça).

Vivíamos a época pós-queda do mundo de Berlim (nem sei contar-vos a emoção que foi essa noite naquela redacção, mas posso confirmar-vos que não foi mesmo culpa da Helena, que tinha ido viver para lá três dias antes). Surge uma telefoto de uma estátua de Lutero (Martinho Lutero, como o conhecemos em Português) a ser deposta, mudada de local em Dresden — antiga Alemanha de Leste, mas notem que a unificação só viria no Verão seguinte — ou meramente removida para limpeza, já não me lembro. Escrevi rapidamente o texto, fi-lo passar em disquete (ainda se lembram?) à Graça, que estava a tratar da paginação, e que recebia a informação dos títulos, que tudo reunia maquinalmente, confiante, e depois paginava em Page Maker (meu querido menino, que saudades desse programa!), tudo medido ao milímetro, com ferramentas que só a Apple tinha, que Windows era coisa que ainda não tinha sido criada.

Um bocado depois, devia passar das nove da noite e começávamos a ficar nervosos, o jornal tinha de ir para a gráfica a horas, alguém me tinha trazido caridosamente um prego atafulhado de alho (como eu gosto) da rua, eu a roê-lo e a conceder-me uma folga de breves minutos, passo pelo computador da Graça e deito uma olhadela interessada., para ver como estava aquilo a correr-lhe. Deparo com um título na página em que ela estava a trabalhar: «Martin Luther... qualquer coisa». Ia passar adiante, em direcção à secretária do Rui, que estava a trabalhar a primeira página. Qualquer coisa me fez estacar como um cavalo espantado. Seria a mesma notícia que eu tinha transcrito coisa de uma hora antes? Martin Luther para mim era e é Martin Luther King, Jr., um dos heróis do meu Pai, um dos mártires da luta pelos Direitos Civis, assassinado em Memphis no dia em que o meu Pai fez 34 anos, 4 de Abril de 1968.

O prego a arrefecer, eu agoniada só da asneira que estava a prever, pedi à Gracinha que puxasse o texto da fotografia que já tinha carregado. Ela atirou as mãos para o céu num gesto de desespero. Se eu não tivesse passado por ali naquele momento teria saído uma notícia perdida de estúpida sobre qualquer coisa a acontecer à estátua de Lutero em Dresden, cujo título o designava como Martin Luther. Corrigimos a tempo. Como corrigimos outras coisas. Houve dias em que tive ataques de fúria, principalmente com uma jornalista que pretendia ser do social e que, além de não ter a mais remota noção de como escrever sem erros, era arrogante, gorda e feia. Mandei-lhe alguns memos delicados, um não tão delicado quando me mandou uma notícia sobre Elizabeth Taylor acompanhada de uma fotografia disparatada (e logo aquele jornal, que tinha um arquivo fotográfico sem preço). Era qualquer coisa como «Acho que começa a confundir o social com a mera cultura geral. A fotografia que me passou não é de Elizabeth Taylor, é de Farah Diba, ex-imperatriz da Pérsia, actual Irão. E aproveito para lhe dizer que na outra fotografia que me mandou o célebre chicote de Indiana Jones não é de ouro. É de couro.» Claro que fiz um inimiga para o resto da vida.

A jornalista nem se pronunciou sobre o chicote de Indiana Jones. Quanto à fotografia de Farah Diba em vez de uma de Elizabeth Taylor, limitou-se a um negligente «Ora, quem é que vai saber?» O trabalho ficou para mim, que tive de ir ao arquivo fotográfico. Mal ou bem, por mais esterco que fosse, o jornal estava nas nossas mãos, no que dependesse de mim não ia avacalhar.

Sei que houve um tempo em que o então chefe de redacção, a viver em França, lia este blogue com assiduidade. Calhámos um com o outro (como diria o grande Eça), para começar porque tínhamos canetas Montblanc iguais.  Quando era ele a escrever o editorial entregava-mo com toda a confiança e dizia simplesmente «mexa onde lhe apetecer, corrija sem piedade.» O Jorge era tão maníaco do Português como eu, éramos capazes de perder dez minutos de tempo que não tínhamos em volta de uma frase, a tentar melhorá-la. Jorge, ainda está aí?

E o Rui Paulo?


9 comentários:

  1. Farah Diba ou Liz Taylor? «Ora, quem é que vai saber?»
    Adoro.

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  2. Evidentemente! Tão parecidas, nada conhecidas mundo fora (a não ser por aquela imbecil). Ainda me lembro do nome daquela imbecil profunda. Deixa cá ver se a encontro no Google.

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  3. Tenho para mim que se perdeu, há muito, o brio profissional.

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  4. Querida Teresa, por causa deste post desatei a ler tudo o que escreveu sobre A Patada. Caramba. Era mesmo assim??? Absolutamente hilariante.

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  5. Não tem nada a ver com o post, embora tenha adorado lê-lo, mas lembrei-me da Teresa quando andei a investigar que o Paul McCartney uma vez escreveu uma canção sobre um hotel no algarve. A história encontrei aqui:
    http://www.thebeatles.com.br/portugal/penina.htm

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  6. Helena,
    Aquela julgo que nem o perdeu, nunca chegou a tê-lo.

    Querido José,
    Era mesmo assim, acredite que não enfeitei nem um bocadinho.

    a.i,
    No blogue Beatles Forever!, que partilho com o Abel Rosa, encontra muita informação sobre essa música.

    http://teresa-beatlesforever.blogspot.pt/search?q=penina

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  7. Obrigada Teresa! Até fico envergonhada, eu aqui a pregar o conto ao vigário :)

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  8. a.i.,
    Que disparate! :)))))
    Eu é que agradeço a lembrança e a atenção.

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  9. Mas o Martinho Lutero é mesmo Martin Luther, na Alemanha, embora reconheça que, em Portugal, o nome possa causar confusão.

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