segunda-feira, 3 de junho de 2013

Um concerto memorável e uma alcunha detestável

Mais vale começar pela alcunha que é minha há mais de trinta anos: Viúva Negra. Aquela gente do Centro de Bridge é implacável e não resiste a uma boa piada (não posso verdadeiramente levar-lhes a mal, sofro da mesma doença, não resisto a uma boa piada, mesmo que seja contra mim). Ora acontece que eu tive brevemente, aos vinte anos, um namorado, e quando dei comigo a inventar desculpas consecutivas e diárias (cada uma mais inventiva do que a anterior) para não ir jantar com ele percebi que não me restava outra saída senão pôr fim àquilo. E foi o que fiz. Só não esperava que ele reagisse TÃO mal. Ali mesmo, anunciou-me que ia suicidar-se. Eu tinha apenas vinte anos, mas já tinha lido muito, como tal não fiquei verdadeiramente perturbada. Quem quer suicidar-se fá-lo em silêncio e sem ameaças. Era apenas uma má reacção a uma ruptura que ele não queria, não havia suicídio em perspectiva. O pior foi que nas semanas seguintes fez de mim a chacota de meia Lisboa, porque pôs-se a telefonar a amigos e conhecidos a participar a sua decisão, frisando sempre que era por minha causa. Passando ele metade do dia no Centro de Bridge, e à velocidade a que estas coisas correm, alguém me pôs imediatamente a alcunha da qual nunca mais consegui livrar-me: Viúva Negra. Mas descansem, o menino está hoje vivo e parece-me que muito bem na sua vida sem mim. Alguém me disse que casou com uma condessa belga e que vive num castelo. Contas feitas, até devo ter-lhe feito um grande favor ao acabar com ele. Mas a história correu Lisboa, que é uma aldeia. E lembro-me de um dia em que a Clara (minha amiga de sempre do tempo do Liceu) me telefonou a contar uma história surreal ouvida na véspera no Bananas de um menino que andava a telefonar aos amigos a despedir-se porque ia suicidar-se por causa da ex-namorada. Engoli em seco e tive de confessar que a ex-namorada era eu.

Nunca mais me livrei da alcunha, mas nunca pensei que pudesse perdurar por tantos anos. Há outras alcunhas no Centro de Bridge, acreditem que a minha ainda é das mais favoráveis. Há duas meninas (que devem ter a minha idade ou são até mais velhas) que toda a gente conhece como a Macaca e a Sabão Macaco. Achei aquilo tão ofensivo que nunca quis saber quem eram as detentoras de tais alcunhas, e que obscuras razões teriam levado a tais epítetos. Aquela gente é implacável, repito.

Nos princípios de Julho de 1994 (treze anos depois, portanto), numa ida ao Cartaxo com o Nuno para estarmos com o Pedro, jantar no Pátio seguido de Horta da Fonte, o costume, o Pedro começou a tentar convencer-me a ir ao concerto dos Pink Floyd em Alvalade, no dia 22. Despachei-o. Já não tinham Roger Waters, seria uma fantochada, nem morta me apanhariam lá. O Pedro insistiu imensas vezes, eu recusei outras tantas. Já exasperado, participou-me que ia comprar bilhete para mim e que me levaria nem que fosse amarrada. Em boa hora o fez, porque foi um dos concertos da minha vida, só inferior ao primeiro de Leonard Cohen e ao primeiro de Joan Baez, ambos no defunto Dramático de Cascais.

Na tarde do concerto, o  Nuno chegou primeiro a minha casa e desatou a rir. «Eu sabia que você havia de estar a ouvir Pink Floyd». O Pedro chegou pouco depois e também riu, mas não conhecia os discos tão bem como nós. E trazia cocaína. Em grande quantidade, porque o Pedro era muito rico. Eu dispensei alegremente, «thanks, but no thanks». Se a minha mesa da sala falasse, perdia-se nas contas às linhas de coca que se fizeram naquele tampo de vidro. «Teresinha, não quer?» «Não, obrigada. E não me deixem nada cá em casa». Tive em tempos uma curiosidade quase doentia pela cocaína, a droga nobre, a dos grandes intelectuais. Experimentei e não percebi qual era a graça (e parece que era de primeira categoria). Melhor para mim, que a verdade é que morro de medo de drogas, já tenho problemas que cheguem na minha vida.

O que já não é muito normal é terem-me enfiado uma quantidade enorme daquilo no bolso da camisa de ganga, com a desculpa de eu ter tão bom ar que nenhum polícia se lembraria de me revistar à entrada do concerto.  O que ainda é menos normal é o facto de eu, que até me considero pessoa medianamente inteligente, não ter percebido que tamanha quantidade, a ser detectada pela polícia, seria automaticamente vista como sendo para tráfico, não mero consumo. E a tonta e inocente Teresa, com um medo desgraçado de drogas, teria ido parar a uma esquadra, só porque o Pedro comprava por atacado e oferecia a maior parte.

De minha casa seguimos para o bar do Jockey, o ponto de encontro marcado. Os bilhetes tinham sido comprados pelo Paulo, o dono do Pátio. Calhou ter a lista à minha frente (éramos para aí uns vinte) e de repente esbarrei com um nome: Viúva. Soprei irritadamente ao Pedro «Isto já chegou ao Cartaxo? Agradecida!» O pobre Pedro balbuciou umas desculpas frouxas que não me convenceram.

Entrei no Estádio de Alvalade com carradas de cocaína no bolso da camisa. Nem lhe toquei, sabe-se. O Pedro também não, firmemente ao meu lado com a Sofia, a filha mais velha, a fazer trio connosco. 

E o concerto a que ele me obrigou a ir é bem uma gratidão eterna que tenho para com o Pedro. 22 de Julho de 1994. Parece que foi visualmente uma coisa espantosa, porcos voadores e coisas assim. Não vi nada, só fiquei a saber quando quem também tinha ido me contou no escritório na segunda-feira seguinte, eu estava completamente mergulhada na música, o Pedro também, a Sofia bem apertada naqueles braços enormes do pai.

Depois do concerto ainda passámos em minha casa, tamanha era a minha precisão de ouvir Brain Damage, que eles não tinham tocado. E depois saímos alegremente para o Stone's, e para a Kapital, e para o Kremlin, e para o Alcântara-Mar. Muito boémia fui eu, santo Deus!

Pequena nota final, só para o João, namorado de há muitos anos. Aqui vai a história que lhe prometi, devida à minha deplorável alcunha. A primeira vez que fomos juntos ao Stone's (e acho que ainda nem tínhamos namoro) demos logo com o Pedro nas escadas, ao entrar. Eu nem sabia que se conheciam. Isto foi em 83, dois anos depois da história que comecei por contar. O Pedro deu-lhe um abraço e comentou sarcasticamente «Tu... com ela?! Olha que esta menina é a maior responsável pela taxa de suicídios de Lisboa!» O João não percebeu, mas riu. Eu ri mais amareladamente. No dia seguinte voltámos, e lá estava também o Pedro (pudera, estávamos lá todas as noites!). «Outra vez com ela?! Olha que eu já te avisei!»



Banda Sonora: Pink Floyd - Comfortably Numb


7 comentários:

  1. Vi esse concerto, ainda hoje gosto de os ouvir, não tinha cocaina mas um charro fumei.

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  2. Só desejo que esse charro lhe tenha sabido bem, Helena. O único charro que fumei em toda a vida pôs-me a vomitar vergonhosamente uma noite inteira e a ver tudo cruzado no dia seguinte. Decididamente, eu e as drogas, quaisquer drogas, temos uma incompatibilidade total.

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  3. Grande concerto! Também marquei presença!!!
    Numa era sem telemóveis ficámos com o bilhete de um grande amigo (até a esse dia :)) porque ele nesse dia tinha a benção das fitas e o combinado era depois encontrar-nos à entrada. O desgraçado foi de t-shirt cor de rosa para a benção uma vez que depois ia para o concerto da melhor banda da história. Escusado será dizer que encontrar o P. mesmo com uma t-shirt fluorescente era como encontrar uma agulha num palheiro...mesmo em cima da hora tivemos que tomar uma decisão difícil, ou perdia-mos todos o concerto ou entravamos com o bilhete dele no bolso e perdiamos ali um amigo!
    Vimos e adoramos o concerto e ele ouviu na rua. Já nos perdoou ;)
    Bj

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  4. Está uma pessoa muito sossegada a ler aqui o post e dá de caras com a santa terrinha. Não fazia ideia que fazias parte dos grupos de Lisboa que iam em romaria até à Horta da Fonte :)

    (e sai daqui mais um abracinho, isso dos dentes em breve se resolverá e tenho a certeza que vais voltar a ter um sorriso lindo de que consegues orgulhar, força***)

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  5. Té,
    Mas aposto que ele terá levado um bom tempo até vos perdoar!

    Charlotte,
    Ora espreita aqui um post com mais de quatro anos. :)
    http://gotaderantanplan.blogspot.pt/2009/03/velha-horta-da-fonte.html

    Quanto aos dentinhos, cá ando neste calvário. Mas já faltou mais, obrigada.

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  6. Já agora, um esclarecimento a todas: parece que a imagem que aqui pus é de um concerto em Coimbra, avisou-me um amigo. Só não sou mais tonta porque não treino.

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  7. Também tive um namorado que, qualquer coisa que o contrariasse, ameaçava suicidar-se. E era logo naquele dia! "Fixem esta data", costumava ele dizer, "haverão de a recordar por toda a vida"! Ele há taras! Há três ou quatro anos, ainda estava vivo, vi-o de fugida...

    Também sempre tive medo de drogas e terá sido essa a razão por, apesar de ter convivido com gente que usava as mais variadas drogas, ter experimentado apenas o incontornável charro. Não me senti mal, como tu, e até lhe achei piada. Senti-me leve e bem-disposta. E com um apetite incrível, que me fez devorar bolachas! Repeti a experiência duas ou três vezes e decidi cortar, antes que me viciasse. A bem da minha linha ;)

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