segunda-feira, 24 de junho de 2013

Civilização

Campos Elísios, por volta de 1900. O mítico 202 seria algures por ali

«Eu possuo preciosamente um amigo (o seu nome é Jacinto), que (...)»

Assim começa o delicioso conto do incomparável Eça (tenho orgulhosamente uma primeira edição) que viria a dar origem à obra-prima que é A Cidade e as Serras. Ainda há menos de duas semanas reli Os Maias na íntegra, apenas mais uma de centenas de releituras, em muitas passagens a lembrar-me do Nuno, que sabia o livro tão de cor como eu, sempre a lembrar-me do Zé Pracana, que ainda no último Natal não resistiu a pregar-me uma partida. O Zé é um soberbo imitador de vozes (não queiram que vos conte o dia em que me telefonou, há muitos anos, estava a passar a novela na televisão, e eu ia dando em doida, quando achei que todas as personagens de Roque Santeiro se tinham juntado para me falar, porque o Zé fazia todas as vozes e eu ia ficando cada vez mais desorientada. Acabámos a jantar num restaurante brasileiro, acho que o Comida de Santo.

Mas a propósito do querido Zé e de Roque Santeiro, tenho uma história ainda melhor. A grande actriz que é Regina Duarte tinha nessa novela um papel hilariante, a Viúva Porcina. O Zé era grande amigo de um grande nome do fado, e visita quase diária lá em casa. No andar de cima vivia um casal, a senhora sempre muito discreta, sempre muito de olhos baixos, vestida de cores invisíveis que iam do cinzento ao castanho. Algures enquanto a novela ainda passava na televisão, o marido morreu e a senhora ficou viúva. E, ao que parece, renasceu para a vida. Largou a paleta desenxabida dos cinzas e dos castanhos, enfeitou-se toda, transformou-se de repente numa explosão de cor. O Zé, com o seu sentido de humor único, baptizou-a logo como A Viúva Por Cima. Chorei a rir quando me contou a história.

A minha capacidade de dispersão é realmente um fenómeno, porque não era nada disto que me propunha contar-vos. O meu primeiro namorado costumava dizer  que eu seria capaz de tirar sangue até ao bacalhau (também costumava dizer que "a menina, sem mim, espetava-se na primeira sarjeta", o que era verdade, porque eu tenho uma propensão natural para o desastre). Aquilo que queria mesmo contar-vos foi que sempre tive a grande sorte de manter relações muito cordiais com os numerosos namorados que a vida me foi atribuindo.

E hoje, por causa de uma música de Donovan, lembrei-me de uma saída irresistível de graça do João, namoro breve, coisa de três meses, mas ficámos amigos para a vida. Gosto muito dele, quero o melhor para ele. Se a memória não me falha, já vai no quarto casamento (eu apanhei-o no fim do primeiro, eu com 22 anos e ele com 30). Ao longo dos anos, aqueles anos em que fui tão boémia, cruzávamo-nos com frequência, Principalmente no T-Club e na Kapital. Raras vezes voltámos a encontrar-nos no Stone's, que era o meu sítio de eleição, mas lembro-me de ele me ter apresentado lá a mulher, só não me lembro se era a segunda ou a terceira. Seja como for, é história passada, que hoje está casado (e muito feliz) com outra.

Tinha eu namoro recente com aquele senhor de quem já aqui contei algumas histórias delirantes, o senhor das capas de vídeos de ópera falsas, o senhor do MG descapotável que já não existia. Eu e ele tínhamos estabelecido um acordo: começávamos a noite no Stone's, o meu céu na terra, por causa da música. A seguir passávamos para a Kapital, que não me dizia nada e já era condescendência da minha parte (numa relação há que fazer concessões), acabávamos, altas horas, no Kremlin. Que me divertia, pronto. Jamais saberei dizer o que tocava lá, era uma coisa com batida muito forte, sem qualquer melodia. Mas o sítio divertia-me, pronto.

A Kapital era para mim um tédio, confesso. Assim que via um banco livre ao balcão alapava, não tinha ponta de paciência para aquilo. O namorado ia-se assegurando do meu bem-estar (que eu exagerava) e ia circulando, eu entediada até à medula. Foi numa dessas noites, eu a soprar tédio pelas narinas, que o  João, ex-namorado, veio cumprimentar-me. Aleluia! Uma lufada de ar fresco! Alguém que me percebia Ficámos alegremente à conversa uns minutos, depois apareceu o namorado a puxar-me pela mão para irmos para o Kremlin. Não era altura para apresentações.

No Kremlin, coisa de uma hora mais tarde, voltamos a cruzar-nos com o João. A apresentação era obrigatória, resignei-me:

- João, deixe-me apresentar-lhe, o J., meu namorado.

O João, perfeito cavalheiro, estendeu uma mão cordial:

- Muito gosto, João T., ex-namorado.

Foi uma risota. O João não pagou nem mais um copo nessa noite, tanta graça o outro achou à saída dele,

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