sábado, 29 de dezembro de 2012

A máscara da morte

Esta fotografia representa bem o que de melhor há na blogosfera, e não encontro imagem mais eloquente para agradecer tantas silenciosas passagens por aqui, tantas mensagens privadas de desconhecidos. Longos, fortes e quase sempre inexplicáveis são os tentáculos de amizade que podem crescer na Internet. O Pedro fica aqui como embaixador.

O Pedro é bruto como as casas, mas eu gosto dele. O Pedro diz que eu sou bruta como as casas, mas gosta de mim. O Pedro irrompeu pelas cortinas sempre obstinadamente fechadas da minha cama, só eu, a música e os livros. E o Bóbí, claro, 24 horas por dia a pôr-me quimioterapia nas veias durante uma semana, mas do Bóbí falo noutro dia. Nunca nos tínhamos visto, mas eu reconheci-o logo. Há mais fotografias nesta sequência, nela aparece também o enfermeiro Paulo, o melhor enfermeiro do IPO. Adoro uma em que estamos os três, mas o enfermeiro Paulo tem horror a exposição e eu respeito isso. E ainda demos belas gargalhadas juntos quando vimos estas fotografias e o decote demasiado revelador da minha camisa de noite. «Não tem vergonha? Este decote é imoral!» Um alfinete-de-ama resolveu a coisa num instante.

A máquina do café (óptimo café e só por 40 cêntimos, diga-se de passagem) daquele piso estava avariada, o Pedro, eu e o inseparável Bóbí, que até dava um jeitão para pousarmos os copos, descemos ao rés-do-chão. Foi então que lhe falei da máscara da morte, de certeza que ele se lembra. Fui tosca e vaga nas palavras, não sabia explicar bem, talvez eu própria já a tivesse e não soubesse reconhecê-la no espelho. É um não sei quê que aprendi instintivamente a identificar há anos ali no IPO. Qualquer coisa indefinível na cor da pele e na estrutura óssea da cara que me fazia encolher toda por dentro numa pena imensa, ao mesmo tempo que ficava com a certeza de que aquela pessoa não ia safar-se. «Não sei explicar melhor, mas no meu quarto há uma senhora assim, tem a máscara da morte», disse eu ao Pedro.

Nessa mesma noite, lá pelas três ou quatro horas, acordei sobressaltada com um barulho de metal a cair no chão, provavelmente um tabuleiro. As minhas cortinas sempre fechadas impediam-me de ver em volta, mas eu era a mais nova das seis mulheres daquele quarto, e a que tinha maior mobilidade. «É preciso alguma coisa? Posso ajudar?», perguntei baixinho. A resposta foi firme e conciliadora, era da enfermeira de serviço, estava tudo bem, eu que descansasse.

De manhã cedo, ao levantar-me para ir com o Bóbí à casa de banho, arregalei os olhos para o espaço a que faltava uma cama, virei-os numa angústia para a senhora da cama ao lado da minha, nem precisei de perguntar nada. «Morreu esta noite», foi a resposta lacónica. Olhámo-nos demoradamente, numa mudez que era de medo por nós e de respeito imenso pela grande ceifeira que nessa noite tinha estado ali mesmo ao nosso lado. A cama ausente era a da senhora de quem eu tinha falado ao Pedro, a senhora a quem reconheci a máscara da morte. Não sei como se chamava.


7 comentários:

  1. Teresa,

    sou uma silenciosa que por aqui tem estado à espera de notícias. Hoje dei um pulo quando vi o aviso de 3 posts novos. Que boas notícias! E já agora, porque é que a Teresa nunca referiu que é tão bonita? ;)(Sou a Sofia do vídeo dos Beagles - Beagle Freedom Project - não se deve lembrar como é normal... mas tenho passado sempre por aqui desde então.)
    Um beijo.

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  2. Mas que arrepio... que dor ter de lidar com a partida de alguém assim ao nosso lado.

    Valha-nos essa fotografia, o sorriso lindo do Pedro e o seu ar de mulher satisfeita pela amizade que a vida lhe deu. Mesmo com decote!

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  3. Teresa,
    Já vi essa máscara várias vezes.
    Que bem estão os dois!
    É bom vê-la tão bem, este ano o Reveillon vai ter um sabor especial.
    Saúde, muita saúde é o que lhe desejo.
    xx

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  4. Viva, Teresa!
    Parabéns pela coragem e por escarrapachares tudo aqui desta maneira. Decerto poderá ajudar alguém que precise de perceber como estas coisas funcionam.
    Parabéns pela força, pela luta que lhe deste; uma luta difícil, que eu bem sei.
    Um abraço e um beijo para um novo ano sorridente.

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  5. Esta fotografia é um bom exemplo de como se pode estar bonita, mesmo com o Bóbí ao lado!
    As histórias da vida (ou da morte), essas, é que, muitas vezes, não são bonitas. Mas nada como encará-las de frente!
    Parabéns!

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  6. Não consigo imaginar a angustia... fiquei com o coração apertadinho do lado de cá, não a conheço pessoalmente, mas adoro vir aqui sempre espreitar, ler o que escreve, "ouvir" as suas histórias... estou do lado de cá a torcer para que recupere rápido.
    Força!
    Tuli

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  7. Sofia P.,
    Como se engana, minha amiga! Como se eu pudesse esquecer esse vídeo que revi tantas vezes, dividida entre angústia e felicidade pelo desfecho, e que mostrei particularmente a tantas pessoas?

    A todos os outros, com quem tenho contactos em particular, um grande beijo, e sabem que estão sempre comigo. Esta mensagem é mesmo só para a Sofia P., por mais tardia que seja. E com a minha enorme gratidão..

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