segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A televisão emprestada

Como quase todos nós, não nasci em berço de ouro e o meu Pai não tinha  os milhões de Aaron Spelling. Como tal, quando fui viver sozinha não me foi oferecido um deslumbrante apartamento de quatro metros de pé direito e vista para o Tejo. Fui viver sozinha quando pude sustentar-me e arcar com as minhas despesas. E sempre tive muito clara na minha cabeça que uma casa era coisa para se ir montando devagarinho, como fosse possível.

Levei bastante de casa da minha Mãe, até coisas de que ela abdicou generosamente, como uma certa estante antiga para livros que é uma coisa linda. O Rui ofereceu-me o frigorífico. Necessidades imediatas eram o esquentador e o fogão, que comprei logo. E uma mesa de cozinha com cadeiras — a cozinha era enorme e foi durante muito tempo o espaço de convívio. O resto viria depois, quando pudesse, à medida que pudesse.

A minha simpatia vai toda para pessoas que, como eu, foram montando uma casa devagarinho e com amor. Lembro-me da minha encantadora cozinha, toda em cor-de-rosa e branco, de voltar a pé do trabalho, da Rua Augusta para a Rio de Janeiro (sempre adorei andar a pé), a entrar em cada lojinha da Almirante Reis, muito antes das lojas dos 300 dos indianos que depois, misteriosamente, se transformaram em lojas dos chineses. E de comprar coisinhas para a casa. Um organizador de talheres, um caixote do lixo (cor-de-rosa, consegui, de metal e com alavanca), acessórios para pendurar as chávenas, sei lá eu!

Quando fui viver sozinha uma televisão não era, decididamente, coisa prioritária. A minha amiga Nita emprestou-me uma que tinha arrumada, ainda a preto e branco. Era do Filipe, meu afilhado, então com oito anos, tinha sido empréstimo do pai. A Nita entretanto tinha comprado outra a cores para o quarto do Filipe e aquela estava na despensa. Fiquei muito grata, era menos uma despesa, e aquele ecrã de 36 centímetros cumpria perfeitamente. Além do mais, o aparelho era leve e cómodp de transportar entre a sala, o quarto e a cozinha, onde havia tomadas.

O tempo foi passando e eu sempre com a mesma televisão. Até ao dia em que, estando a passar a ferro na cozinha, a levei para lá e a instalei em cima da máquina de lavar roupa. Mergulhada nos meus pensamentos (há tarefas domésticas que, ocupando as mãos, libertam o pensamento), não me apercebi de que a máquina tinha entrado na centrifugação. Quando o barulho me acordou do meu devaneio só fui a tempo de ver a televisão a deslizar tampo fora. Ainda corri, mas já não fui a tempo de lhe acudir, estatelou-se no chão de pedra e fez-se em muitos bocados muito tristes.

Telefonei imediatamente à Nita, a contar. Ela tranquilizou-me. O Pedro (o pai do Filipe) já nem devia lembrar-se daquela televisão tão antiga, eu que ficasse caladinha. Fiquei caladinha, fui comprar uma televisão nova à D. Dulce. Uma ou duas semanas depois (não foi mais), o grande azar. A mãe do Pedro partiu um pé, ficou imobilizada, teve de ir para casa dele por uns tempos. E o Pedro pediu à Nita que lhe devolvesse a velha televisão, para instalar no quarto da mãe.

Quem estraga velho paga novo, diz a sabedoria popular. Assim aconteceu comigo. E foi assim que a Tia Maria Luísa se viu com uma televisão a cores e com comando, comprada na D. Dulce e mandada entregar directamente na casa do Pedro. Igual à minha, que tinha comprado poucos dias antes.

19 comentários:

  1. Eu nunca tive televisão no quarto e quando vim para a faculdade, não tendo televisão só para mim, também não comprei. Há alturas em que as casas em que estou já têm na sala ou em que colegas de casa levam, mas vou no quarto ano de faculdade, grande parte destes sem televisão, e não lhe sinto falta nenhuma.

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  2. A falta é muito relativa, sim.
    Não estou para gastar um dinheirão numa televisão plana, ou plasma, ou LCD, ou lá como se chama. A minha televisão da sala ainda é um caixotão enorme e pesado. Mas preciso dela para ver os filmes que compro.

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  3. Também fui montando casa como pude, aos poucos. Quando fui para a primeira já tinha dinheiro de parte para a equipar e mobilar, mas o frigorífico era velho e dado (deu o berro pouco depois, é o único electrodoméstico em que já vou no terceiro exemplar, azar meu, tudo o resto sobrevive na sua primeira edição), tal como o aparelho de televisão e o VHS. Quando mudei para esta casa já maior, levei a mobília do T1, que ficou a "nadar". Ainda "herdei" uma mesa e cadeiras de cozinha (bem boas, mantenho-as), e tinha duas divisões quase "nude" :D Numa delas (interior) enfiei estantes metálicas de arrecadação (velhas), que anos depois deram lugar a um roupeiro de canto, comprado em duas tranches. Poupava, e só comprava quando havia para pagar a pronto. Candeeiros e abatjours (para além do que já tinha) só uns dois anos depois de lá estar, até aí era a magnífica lâmpada pendurada no tecto. Cortinados, tapetes, idem: e ainda hoje dou graças à abertura do IKEA (2005?), onde me abasteci de muita coisa que noutros sítios não podia comprar. Os meus pais ofereceram umas coisas aqui e ali, e lá se foi fazendo. Hoje tenho a casa já bem recheadinha, ainda há muitas coisas a melhorar e obras de manutenção a fazer, mas gosto de a ir compondo aos poucos, conforme a necessidade e possibilidade.
    E não é que agora o raio da televisão anda com achaques? Que falta de sentido de sobrevivência, o dos electrodomésticos.

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  4. Izzie,
    A mim cada compra feita com esforço, cada nova aquisição para a casa deu-me uma sensação de conquista. Aposto que a ti também.

    Qual é o problema com o (ou a, nunca sei) IKEA? A minha secretária e ss minhas estantes do escritório são de lá e adoro-as. Todas brancas, e eu gosto tanto de branco.
    Esta gente devia aprender com o Chez Larsson, mantenho.

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  5. Eu amo o (ou a, também nunca sei)IKEA, e só não lhe perdoo o ter aberto em 2005, já tinha eu mudado havia dois anos. Muita falta de me fez, que arranjei uma estante e secretária baratinhas no aki, mas não são tão giras como as ikea. Cada vez que entrava numa loja de mobiliário e via o preço das estantes até tinha uma paragem cardíaca.
    E sim, é um fantástico sentimento de conquista. Até a loiça na cor desejada, a torradeira, a varinha mágica, são compras boas de fazer. E ainda hoje tenho a casa como prioridade, difícil é entrar na Loja do Gato Preto e sair de lá sem ao menos uma canequinha (uma vez uma amiga arrastou-me para fora, juro).

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  6. Partilho desse gosto em ir mobilando a casa aos poucos. Quando juntei os trapinhos tinha apenas a mobília de quarto, uma televisão (que ainda hoje existe), a mesa da cozinha e dois sofás. Fiz “campismo” em casa durante imenso tempo e ainda hoje recordo essa época com um sorriso.
    :))

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  7. mudei-me para a minha 1ª casa com um colchão, uma televisão (oferta promocional na compra do colchão) e um candeeiro e assim fiquei por uns bons 3 meses até adicionar à lista um sofá. como nem me tinham instalado as luzes no tecto andei durante as primeiras três semanas com o candeeiro para trás e para a frente, ligando-o às tomadas das divisões em que me encontrava.
    no dia em que fechei o "negócio" da cama e da mesa de jantar comecei a chorar e deixei a vendedora boquiaberta sem saber o que se passava!

    é muito boa essa sensação :-)

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  8. Izzie,
    Posso agora, e de uma vez por todas, resolver a questão do género da loja de que tanto gostamos, porque recebi um e-mail muito simpático, de que transcrevo a parte que interessa:
    « correctamente diz-se "a Ikea" com acentuação no "e" e não "o Ikea" à francesa, com acentuação no "a". Digo-lhe isto com toda a certeza do mundo. Trabalhei 14 anos numa empresa fornecedora da Ikea, ainda nem sequer se sonhava em abrir lojas cá em Portugal. Tinham um escritório em Leça da Palmeira que coordenava as vendas dos fornecedores portugueses para as diversas lojas Ikea por essa Europa e Estados Unidos fora. Eu tratava directamente com esse escritório e falava muitas vezes com a sede na Suécia. Os suecos diziam "Ikea" acentuando o "e" e os portugueses diziam "a Ikea" também com acentuação no "e". Nunca ouvi ninguém dizer "o Ikeá" até começar a ser publicitada a primeira loja que abriu em Portugal. Não sei quem foi o iluminado que se decidiu pelo masculino afrancesado. »

    Pelas minhas contas, a Ikea abriu pelo menos sem 2004. Sei isso porque mudei de casa nesse ano e a minha secretária (igual à da minha sobrinha Rita, então com seis anos, coisa que muito fez rir a minha irmã) é de lá. Continuo a usá-la. Só lhe acrescentei um acessório providencial que lhe deram entretanto, uma espécie de alçado com prateleiras. A secretária, que me lembre, custou 60 euros. O extra uns 30, uns anos depois.

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  9. Anna Blue,
    Parece-me que partilhamos todas esse sentimento. Sabemos o real valor daquilo que temos pelo esforço que nos exigiu. Ainda esta tarde recebi um e-mail a contar o mesmo.

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  10. Pois eu também o partilho. Sabe Deus que adoro a minha cara-metade, mas já lhe tenho dito que éramos muito mais felizes quando tínhamos metade do que temos. Foi ele que me corrompeu! :) Ou, por outras palavras, me convenceu a ter grande parte das tecno-coisas e tralhas (para mim inúteis) que agora povoam a minha casa e me dão cabo dos nervos.
    Quando começámos a namorar, em 2007, já eu vivia cá em casa há mais de dois anos. Os electrodomésticos não contam, pois vinham incluídos quando a comprei. Além da mesa da cozinha, com dois banquinhos, a minha restante mobília compunha-se pelo quarto de dormir, um sofá hediondo da Moviflor, um pouf gigante, um móvel portátil onde tinha uma televisão de 37 cm oferecida pelos meus pais e um baratíssimo aparelho de dvd para o meu cinema, e duas extravagâncias pelas quais me apaixonei à primeira vista: a estante dos livros e o candeeiro de tecto do quarto. Não tinha tv por cabo, nem internet, nem lhes sentia a falta. Lia muito mais, via os meus filmes, e essencialmente saía muito mais e fazia imensa coisa que me divertia terrivelmente. Como pôr o mp3 nos ouvidos (isso eu tinha, precisava de ouvir música!) e dançar sozinha à volta da sala, compartimento completamente vazio - numa linda figura, é certo, mas o que eu gostava daquilo. Claro que queria mobilar o resto da casa, mas o certo é que me acomodei, e ao longo desses dois anos e tal fui juntando o dinheiro sem contudo fazer qualquer outra compra... Quando decidimos viver juntos cá em casa, terminei de a mobilar e sim, deu-me um gosto tremendo cada peça de mobiliário que escolhi e comprei. No entanto, lembro aqueles tempos nostalgicamente. Hoje sinto que tenho a casa demasiado "cluttered" com os gadgets a que não dou qualquer uso e em que o meu marido é viciado, sinto que dou prioridade ao facilitismo de me sentar em frente à tv, em lugar de ler os meus livros queridos que estão ao lado na estante, sinto que conversamos menos, que saímos menos, enfim. Acho mesmo que, apesar da nossa vida ser boa e harmoniosa, éramos mais genuinamente felizes nessa época mais simples, em que não havia estas distracções. Não será necessário exagerar no estoicismo, mas por mim eliminava para aqui muita coisa. :)
    Desculpe por me deixar levar do comentário para o desabafo, Teresa. Foi ao correr da pena, digo, teclado. :)

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  11. Queen of Hearts,
    Ler o seu extenso comentário foi um prazer. Como prazer foi perceber que toda a gente que comentou (até privadamente) reteve deste post o que importava, ignorando o azar da televisão que foi para o galheiro. E o que importava mesmo era o prazer e a alegria de uma construção, neste caso a da nossa casa.

    Como contei particularmente a pessoa que me enviou e-mail sobre este assunto, a minha sala só teve durante muito tempo a tal linda estante muito antiga, era na cozinha que recebia os amigos. Comprei uma boa aparelhagem antes de comprar uns sofás. E sabe porquê? Porque a música me fazia mais falta do que assentos.

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  12. Gostei muito, muito de ler.

    O namorado já tinha toda a mobília, dos tempos em que viveu sozinho, mas o verdadeiro recheio da casa tivemos de ir arranjando. Os electrodomésticos estão a ser comprados às prestações. Muita coisa foi-nos dada pelas nossas famílias. O resto vamos comprando, com calma, com tempo, com amor. Suponho que parte do encanto inicial reside exactamente aí. :)

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  13. S*,
    Já percebeu que está em casa amiga, rodeada de gente que viveu a mesma experiência com a mesma emoção. Ignore o resto, que este post era mesmo para si.

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  14. Ainda bem que a minha amiga me avisou. Precisava de ler isto, depois de toda esta confusão. Muito obrigada, do fundo do coração.

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  15. Não é para agradecer, S*.
    Acontece apenas que somos todas pessoas que sentem da mesma maneira. De todas nós, tenho a certeza, votos de que a casa, a primeira casa (e que emoção isso é!) cresça cheia de alegria. Já estivemos aí, sabemos como é. E damos o devido valor, todas nós.

    O resto é para ignorar.

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  16. Na minha casa foi o oposto. A necessidade faz o engenho... Fiz a escritura numa quarta, quinta tinha água, luz e gás e todos os electrodomésticos comprados e sexta fui ao ikea de camião. No fim de semana os moveis e candeeiros ficaram montados e Segunda Feira estava lá a morar. Eu precisava desesperadamente da casa e por isso foi assim, apenas graças à generosidade do meu pai. A decoração no entanto foi comprada aos retalhos e agora que tenho mais algum poder económico vou mudando os móveis Ikea para uma coisa mais ao meu gosto, mais minha. Uma casa deve-se ir fazendo, encontrando, com esforço, com dedicação. E por muito que tenha orgulho do resultado da minha maratona, um dia quero construir uma casa assim, como ela merece, cada nova peça um sentimento de vitória.

    Acompanhei toda a sega da S* e deselho-lhe tudo de bom. Quando feito a dois, a coisa tem um valor especial creio. Um dia quero passar por isso também.

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  17. Teresa, quando se procura pôr um bocado de sentimento em tudo o que se mete na (nossa) casa, as coisas são sempre mais bonitas. Bem sei que a minha casa não é a mais fashion de todas (apesar de estar bem gira!), bem sei que tem alguns defeitos, mas é a casa mais acolhedora e bonita que eu podia ter desejado. Sabes aquela sensação de "estou em casa"? Foi o que senti quando a visitei pela primeira vez... e foi isso que me levou a escolhê-la.

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  18. Raquel, e claro que vais ter, tudo escolhido ao teu gosto, pouco a pouco. Não se pode comprar tudo de uma vez, claro que não... mas se as coisas aparecessem de mão beijada, em cima de uma bandeja, também não tinham a mesma graça.

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  19. Eu ja perdi a conta a quantas casas vivi... em 2005 estava nas 14. So desde que mudei para Bristol em Jul 2009, ja vou na 4a casa.

    Mas embora esteja pelos cabelos de mudar de casa, e principalmente gastar dinheiro no processo (honorarios de agencias, empresas de transporte, comprar mobilia, vender mobilia) e o stress e logistica toda 'a volta da mudanca (empacotar, desempacotar, mudar companhia de electricidade, agua, fechar conta, mudar enderecos no banco e nas publicacoes que recebo em casa, tv licence, etc), a verdade e' que adoro decoracao e um novo desafio... um novo espaco que me faz sonhar.

    Planeio a decoracao de cada cantinho do novo espaco. Tiro as medidas, desenho a planta das divisoes, vejo a mobilia que ja tenho, penso como coloca-la, adapata-la, se a preciso de vende-la, se a posso reutilizar noutro espaco.

    Quebro o coracao quando vendo alguma coisa. As memorias. Mas tambem vejo nisso como uma oportunidade para mudar de vida, para me despegar do material e sonhar com outras paragens. Neste momento vou vender a minha cama, que tenho ha 2 anos... e fui tao feliz nela. Mas esse amor acabou, e mudar de cama tb me ajuda a mudar de vida e seguir em frente, sem chorar leite derramado.

    Beijinhos

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