quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Os Discos da Minha Vida #19: White Mansions

Foi nas férias grandes dos meus 14 anos que li E Tudo o Vento Levou pela primeira vez. Em três dias de leitura febril devorei as mais de mil páginas daqueles dois volumes. Não conseguia parar de ler, pura e simplesmente. Dessa primeira leitura, que viria a ser muitas vezes repetida, como acontece com os livros que nos são muito queridos, ficou-me para sempre um enorme fascínio pela Guerra da Secessão e por aquela civilização levada pelo vento. A adolescência é uma idade de paixões, e eu acrescentei mais essa às outras que já tinha: a II Guerra Mundial, o antigo Egipto, o naufrágio do Titanic, a Atlântida. A partir daí passei a ler tudo o que encontrava sobre a matéria.

Fiquei obviamente doida para ver o filme, numa época em que ainda não havia leitores de vídeo e muito menos de DVD. A imagem da capa do livro era inspiradora e fazia-me sonhar: Vivien Leigh transportada nos braços arrebatados de Clark Gable — julgo que nunca, na história do cinema, dois actores encarnaram tão bem a imagem que nos tinha ficado da leitura do livro. Vivien Leigh era Scarlett (e a busca da protagonista é hoje lendária, já as filmagens tinham começado e ainda não havia Scarlett, papel para o qual nomes tão notáveis como Katharine Hepburn ou Bette Davis tinham prestado provas; aparentemente, as duas únicas actrizes que não cobiçavam o papel eram Greta Garbo e Lassie), Clark Gable era Rhett Butler, parecia que Margaret Mitchell o tinha em mente ao escrever o livro. Felizmente nessa época os muitos cinemas de Lisboa (muitos mais do que os que temos hoje) faziam reposições nos tempos mortos do Verão, foi assim que vi muitos dos grandes clássicos e foi assim que vi E Tudo o Vento Levou no Verão seguinte, no Tivoli. Três vezes. Mesmo tendo ficado danada com aquilo que considerei serem desvios desnecessários do livro. E furiosa por no ecrã nem sequer surgir uma personagem que me era muito querida, Will Benteen, eliminada no processo de condensar aquele livro gigantesco.

A introdução já vai longa, mas era importante para chegar a White Mansions, disco de 1978 que conheci no ano seguinte e foi paixão fulminante que se mantém acesa até hoje. É um álbum conceptual que conta uma história, tal como o subtítulo nos informa. Uma história da guerra civil americana. As músicas de Paul Kennerley ganham voz e vida com nomes pouco conhecidos, tirando o grande Waylon Jennings no papel do Drifter, uma espécie de narrador que acaba por funcionar aos meus olhos como um trovador moderno. O disco de vinil original era uma coisa linda, vinha com um soberbo livro de fotografias da Guerra da Secessão que a edição portuguesa não se deu ao trabalho de incluir.

Muitos anos mais tarde, já em 1994, quase com 34 anos, tive um momento mágico, um daqueles momentos em que de repente descobrimos que temos afinidades insuspeitadas com outra pessoa. E foi por causa deste disco. E começo a prever que este post vá ficar muito longo.

O Vítor sempre foi o meu melhor amigo, lugar indisputado e indisputável. A seguir vinha o Nuno, que era também o amigo com quem eu saía sempre, eternamente disponível, mesmo já casado (a Mafalda, um amor, não se ralava nada, até chegava a dizer com toda a naturalidade, ao atender o telefone: «Deve estar em casa da Teresa. Tem o número?»). O Nuno era o fiel companheiro de noitadas e neuras, de Tim Buckley, Sérgio Godinho, Simon & Garfunkel, livros do Guilherme e dos Cinco, Proust, Stendhal e Thirtysomething, um nicho de intimidade que nunca mais terei. Eu era a melhor amiga do Nuno, a confidente e cúmplice (tanta cabrice que fizemos juntos!). E o Pedro era o melhor amigo do Nuno. Como tal, eu e o Pedro acabávamos por estar muitas vezes juntos em noites de estúrdia que hoje me fazem calafrios só de lembrar. O elo era sempre o Nuno, eu gostava muito do Pedro, o Pedro gostava muito de mim e a coisa ficava por aí. E foi assim durante 14 anos.

Quando o Pedro se mudou para a quinta no Cartaxo eu e o Nuno passámos a ir visitá-lo com frequência. Saíamos de Lisboa ao fim do dia, copos no Oásis, jantar no Pátio, Horta da Fonte a seguir, conversa até raiar o dia no gigantesco salão da quinta, nas noites de Inverno eu encostada à lareira mais alta do que eu. Foi numa dessas noites que o Pedro me convidou para jantar na semana seguinte, quando fosse a Lisboa. Era coisa inédita em 14 anos de amizade, sempre tínhamos funcionado um em relação ao outro como satélites de que o Nuno era o planeta. Aceitei o convite, evidentemente. Só a meio da viagem de regresso a Lisboa contei ao Nuno, que me ripostou a rir: «Estava a ver quando é que me dizia. O Pedro disse-me que ia convidá-la para jantar.»

A amizade é de facto uma coisa peculiar, e cada amizade é um mundo. Se na minha e do Vítor nunca houve lugar para qualquer ponta de ciúme de outras amizades (o Vítor até ficava feliz por o Nuno poder acompanhar-me tanto, numa época em que ele podia fazê-lo tão pouco), a do Nuno, como descobri nessa altura, era possessiva. No fundo não achou grande graça a que os seus dois grandes amigos pudessem tornar-se verdadeiramente grandes amigos um do outro. Ao nosso jantar no Bacalhau de Molho seguiu-se, naturalmente, uma ida ao Stone's. E o Nuno apareceu, out of the blue, com o João Pedro a reboque (soubemos depois que o tinha arrebanhado no Centro de Bridge, para não ir sozinho). O Pedro ficou irritado, deve ter sido aquela coisa dos alfas nas matilhas. Eu, inexplicavelmente, senti-me constrangida.

Como tal, quando o Pedro parou à minha porta ao fim da noite, estendi-lhe a cara para um beijinho rápido, morta para me safar. Ele encarou-me a direito. «Não me oferece um whisky?» Não era conversa de engate, conhecíamo-nos havia 14 anos e o Pedro sempre tinha sido o arquétipo do cavalheiro (a visitor from Charleston, mas isso fica para depois). Sem qualquer vontade, e só para não ser indelicada, concordei.

O Pedro só tinha estado em minha casa uma vez, e tinha ficado deslumbrado com a minha música. »As coisa que aqui tem, Teresinha!» Nessa noite quase madrugada voltou a maravilhar-se, a colecção já tinha crescido. E depois, não sei porquê, referi White Mansions. Este disco da minha vida. O Pedro não conhecia, tentei explicar-lho da maneira mais eloquente possível, com palavras que devem ter andado por aqui:

«É um disco muito especial, que recria uma civilização perdida, a do Sul antes da Guerra da Secessão. É nostálgico e passa-nos de alguma maneira uma sensação que não sei explicar-lhe bem. Uma civilização morta, a elegância, a graça, graça como a entendia a Grécia antiga...»

«Sedução, perfeição, simetria da arte grega...» — interrompeu-me o Pedro.

Arregalei os olhos, que devem ter ficado do tamanho de pires pregados nele, e já a encherem-se de lágrimas. Porque incosncientemente eu tinha ido ao encontro dessas palavras de Ahsley Wilkes em E Tudo o Vento Levou, eram justamente as palavras que eu procurava e tão bem definiam White Mansions. O Pedro tinha-se antecipado porque conhecia o livro tão bem como eu e lhe votava o mesmo culto apaixonado.

O disco deve ter tocado duas ou três vezes. O tempo de eu e o Pedro discutirmos até à exaustão aquele livro que nos é tão caro. Há quem o considere um subproduto da literatura, mas não é o nosso caso.

Como banda sonora deixo-vos uma colagem das minhas três músicas favoritas. Dixie, Hold On (Dixie são os Estados do Sul, aqui a Confederação). Last Dance & The Kentucky Racehorse, que só pode ter sido inspirada na cena da festa de Twelve Oaks, o último baile, mesmo antes do rebentar da guerra; um ou dois meses depois, o Vítor foi aos Estados Unidos, com uma passagem em New Orleans, pedi-lhe que me encontrasse um livro sobre cavalos do Kentucky, o Pedro era apaixonado por cavalos e tinha muitos na quinta, alguns autênticas estrelas de competição. Sabedor da conversa daquela noite, e porque não encontrou o que lhe tinha pedido, trouxe-me um livro sobre Charleston. Para o meu visitor from Charleston. Ainda não havia Internet nem Amazon. They Laid Waste to Our Land. Provavelmente a minha preferida de todo o disco. O fim da guerra, a capitulação, a amargura, o preço da derrota.

Banda sonora: 
White Mansions: Dixie/Last Dance & The Kentucky Racehorse/They Laid Waste to Our Land

11 comentários:

  1. http://smileyousmile.blogspot.com/2011/03/white-mansions.html

    Achei estes comentários sobre o disco em questão, talvez goste de ler, Teresa. Cumprimentos Teo Bastos

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  2. Gostei muito, Teo, obrigada!
    Especialmente desta parte:

    «Everyone involved sings and plays wonderfully, and with real intensity. The songs range from slow ballads to classic country rock, battlefield singalongs, gospel and a waltz thrown in for good measure. It's an all round good album, and great for anyone like me who prefers music with country influences to out and out country. It's also great being able to hear artists like Jessi and Waylon, whose voices I have long appreciated, in more of a country-rock environment. There is unfortunately only a small input from the wonderful gospel voices that make up 'the slaves' characters, but I guess the album theme (the situation from the point of view of the white southerners) limits their involvement.»

    Uma das fotografias que aparecem é do livro que vinha com a edição em vinil, e que o CD não traz. Uma pena!

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  3. Fiquei curiosíssima para ouvir este disco. Sou uma apaixonada pelo Sul, é uma daquelas viagens que não hão-de ficar na gaveta se Deus quiser. As southern belles. Nova Orleans. Hoodoo. Marie Laveau. A tradição de hospitalidade e elegância. Gone with the Wind é um dos meus filmes favoritos e também gosto do romance Scarlett, que foi escrito por uma especialista na velha dixieland ( a série adaptada do livro, no entanto, é uma solene porcaria). Graças a si, tenho mais um must-have na minha lista.

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  4. Sissi,
    O disco é fabuloso e, tal como eu disse acima ao Teo (que já o encomendou e deve estar a recebê-lo). está baratíssimo na Amazon britânica.
    Também eu tenho essa paixão pelo Sul, e sonho fazer uma das Plantation Tours. Charleston. Savannah, New Orleans e Atlanta são cidades marcadas no meu afecto.

    Li Scarlett quando saiu (estava morta de curiosidade) e confesso que odiei. Não reconheci as personagens, Scarlett não era Scarlett, Rhett não era Rhett, toda aquela interminável parte na Irlanda é absurda e chatíssima.

    A minha pergunta é só uma: alguma vez leu o livro original? :)))

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  5. P.S. Idem para a série. Aquela gente não tinha nada que ver com os protagonistas que nos habituámos a adorar-

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  6. Essa viagem ao sul dos EUA é uma grande ideia, pena que o $$$ anda tão curto nos dias que correm. Só conheço o estado de NY, por onde andei durante uma semana, além de NYC e DC, onde passei 2 dias. Espero um dia voltar e fazer mais alguns milhares de milhas por aquela terra magnífica. Há muitos lugares fantásticos a conhecer e outros, autênticas referências culturais, a visitar e pagar tributo.

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  7. Teo, espreite esta etiqueta da Gota:

    http://gotaderantanplan.blogspot.com/search/label/USA%202008%20-%20Rocky%20Mountains

    Com a sua paixão por música, acho que vai gostar especialmente do post sobre Red Rocks.

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  8. Teresa, já tive o prazer de ler esses "posts" há alguns meses. Você só tem mais um ano que eu, mnas já leva uns Km largos de avanço em conhecimento do mundo, etc. :-) Ainda bem que publica essas coisas todas, pois o prazer é grande quando lemos e motiva-nos a buscar esse mesmo gozo.

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  9. Li sim, é um daqueles livros de companhia que volta e meia vou buscar :). Talvez tenha apreciado a sequela porque vi a série primeiro - odiei, só se salvou o meu adorado Sean Bean. Quando encontrei o "Scarlett" à venda torci o nariz, tive-o na estante imenso tempo e quando finalmente o abri, foi um alívio...não era, nem de perto nem de longe, tão mau como a versão televisiva. Depois, eu sou um coração de manteiga com as personagens que adoro. Fico com tanta pena que a história acabe que prefiro ter mais alguma coisa para ler do que despedir-me delas para sempre. Claro que o original é inimitável, é certo que o romance tem o seu quê de bodice ripper (um defeito que mal ou bem, tolero)mas a riqueza de detalhes, cores, figurinos acabou por me prender. Quanto à Irlanda, não me incomodou por uma questão pessoal...tenho sangue irlandês e um fraco enorme por tudo o que lhe diz respeito. Mas compreendo que fosse um turn off para a maioria dos outros leitores. :)

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  10. Sissi,
    Achei a expressão "livro de companhia" muito feliz, e este (o original) também é um dos meus.

    Com toda a simpatia que tenho pela Irlanda (basta ser a pátria do meu amado Oscar Wilde), aquelas partes eram intragáveis. Como o livro. Aquilo era mesmo muito mau, desculpe. :)

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  11. Não me melindra nada...sei perfeitamente que devo ser um dos únicos seres no planeta que gosta do livro :).

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